Liberdade de Expressão: vale tudo ou há limites?

Por: Fundação FHC| Notícias| 17/08/2020

Publicado por: Fundação FHC

Alemanha e Estados Unidos: como essas duas sólidas democracias lidam com a liberdade de expressão? Quando é necessário definir limites a esse direito fundamental em uma sociedade democrática? Para discutir essas duas tradições jurídicas e em que medida podem servir de baliza ao debate em curso no Brasil, convidamos dois professores/pesquisadores brasileiros da nova geração de estudiosos do direito: Clarissa Piterman Gross, professora e coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (PLED) da FGV Direito SP; e Alaor Leite, docente assistente junto à cátedra de Direito Penal na Universidade Humboldt (Berlim).


“Na Alemanha, busca-se distinguir o que é propagação de notícias falsas (fake news), o que é discurso de ódio e o que é ameaça às instituições democráticas. Essa distinção pode iluminar o debate no Brasil.”

Alaor Leite, Doutor e Mestre (LL.M.) em Direito pela Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique (Alemanha), cursa atualmente a livre-docência na Universidade Humboldt (Berlim).

 “Nos EUA, o Estado não deve restringir a liberdade de expressão com base no conteúdo, por mais imoral que ele seja. É preciso uma justificativa forte, como o mal que possa advir de determinada fala em um contexto específico.”

Clarissa Piterman Gross, doutora em Direito, Filosofia e Teoria Geral do Direito, pela Universidade de São Paulo (USP), é professora da Fundação Getulio Vargas.

Nos EUA, a liberdade de expressão está consagrada na Primeira Emenda à Constituição e nela foi introduzida em 1791, junto com outras nove emendas, para assegurar que o governo da União, previsto na Constituição aprovada em 1787, não cercearia os direitos dos cidadãos americanos. A Primeira Emenda compõe a chamada Bill of Rights, um dos documentos fundadores da nação norte-americana.

Na Alemanha, a proteção legal à liberdade de expressão não está associada à fundação do Estado-nação alemão, ocorrida em 1871 após a unificação dos estados alemães e o início do Segundo Reich (1871-1918). Reflete, isto sim, o mais traumático episódio do século 20, o totalitarismo nazista, uma máquina de destruição de vidas e das liberdades que ascendeu ao poder valendo-se dos direitos assegurados pela Constituição da República de Weimar (1918-1933). As diferenças históricas explicam em boa medida por que os Estados Unidos são mais refratários a colocar limites à liberdade de expressão do que a Alemanha.

“Essa oposição entre os modelos alemão e norte-americano é um bom começo de conversa, mas deve ser colocada em termos mais precisos, pois, diferentemente do que se imagina, a Alemanha também é bastante restritiva na imposição de limites à liberdade de expressão”, explicou Alaor. Na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial está previsto o crime de negação do holocausto. ‘’É uma exceção histórica e, de acordo com a Corte Constitucional alemã, não é preciso esperar que a negação de fatos comprovados e manifestações de ódio aos judeus produzam resultados concretos”, disse Alaor. À exceção deste caso, a legislação alemã, assim como a norte-americana, não estabelece limites à liberdade de expressão baseados no conteúdo do que é dito ou escrito.

“Segundo historiadores e constitucionalistas, a neutralidade valorativa e a ultra liberalidade da Constituição de Weimar possibilitaram o enfraquecimento da democracia e a ascensão do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (mais conhecido como Partido Nazista) ao poder na década de 1930. O próprio Goebbels (ministro da Propaganda do regime nazista) dizia que o aspecto mais risível daquela república é que ela oferecia a seus inimigos mortais instrumentos democráticos para substituí-la por um modelo autoritário”, afirmou o professor radicado em Munique.

A chegada dos nazistas ao poder foi um processo que durou alguns anos. Nas eleições de 1930 e 1932, o partido obteve um crescente número de vagas no Parlamento, mas ainda havia resistências à nomeação de Adolf Hitler ao cargo de chanceler (premiê). O incêndio criminoso do Reichstag, em 1933, acelerou a crise da democracia alemã e, naquele ano, Hitler conquistou o almejado cargo, mas com poderes ainda limitados. No ano seguinte, o líder nazista finalmente atingiu o poder absoluto com o novo título de Führer, dando início efetivo ao Terceiro Reich. Em 1939, o Exército alemão invadiu a Polônia e eclodiu a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

 

‘Democracia militante ou democracia combativa’

Daquela experiência totalitária (que se encerrou com a rendição alemã diante da vitória dos Aliados em 1945), nasceu a ideia de que a democracia deve contar com armas legais para se defender. “É o que os penalistas chamam de democracia militante ou combativa”, disse o palestrante. Quem primeiro sustentou a ideia foi o jurista alemão Karl Lowenstein, em artigo publicado em 1937, na American Political Science Review (Militant Democracy and Fundamental Rights).

Embora a legislação penal alemã preveja punições contra o crime de difamar as instituições democráticas, os tribunais são muito cautelosos no emprego das armas legais de defesa da democracia. De acordo com o artigo 90b do Código Penal alemão, é preciso ficar demonstrado que a difamação prejudica o funcionamento dessas instituições. Prevalece o entendimento de que o uso desmedido das armas de defesa das instituições democráticas pode resultar em dano grave à liberdade de expressão, e que agentes e instituições públicas têm o dever de suportar a crítica. “Este é o balanço sutil que o modelo alemão busca preservar, pois uma democracia que se defende demais corre o risco de vergastar a liberdade de expressão de maneira precipitada e, assim, se transformar em seu contrário”, afirmou.

Se a aplicação dessas punições na sólida democracia alemã parece cada vez mais coisa do passado, cresce na Alemanha a tendência à criminalização do discurso de ódio, propagado principalmente pelas mídias sociais mas também em protestos e manifestações de rua.

Alemanha discute recrudescer combate ao discurso de ódio

“Diferentemente do Brasil, onde o aspecto institucional adquire relevância no contexto atual, o assunto em voga aqui é a necessidade de recrudescer os mecanismos de combate ao discurso de ódio, sobretudo na internet, como no caso de mensagens que busquem retirar a qualidade de sujeito de direito de determinado agrupamento populacional, como imigrantes, refugiados ou minorias religiosas na Alemanha”, disse o penalista. 

Desde 2017, a Alemanha tem uma lei que regula as redes sociais e exige que as plataformas comuniquem violações às regras estabelecidas, mas neste ano o governo alemão enviou ao Bundestag (Parlamento) projeto que visa recrudescer o combate ao discurso de ódio no país. Assim como outros países europeus, a Alemanha tem experimentado um crescimento de movimentos nacionalistas com discurso xenófobo.

A propagação de desinformação e informação falsa adquire maior relevância se conectada a um contexto específico: “A mentira em si mesmo não é considerado um problema propriamente penal. Mas, no contexto eleitoral, a desinformação produzida sistematicamente nas redes sociais pode ter efeito na formação da vontade democrática.”

Segundo Alaor, ao contrário do que se possa imaginar, o modelo alemão é frequentemente criticado pelos demais países europeus e organismos da União Europeia por não ser suficientemente restritivo. “Não é essencialmente restritivo, mas opera sinceramente com as restrições. Penso que é um avanço para esse debate”, concluiu o professor, que cursa atualmente a livre-docência na Universidade Humboldt de Berlim, sob a orientação do professor Luís Greco.
 

        Saiba mais:

        Desafios à privacidade e liberdade de expressão no mundo digital.

 

Clarissa Gross: ‘EUA não restringem discurso com base no conteúdo’

“O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. Com a enunciação da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, adotada em 1791, a professora Clarissa Gross deu início a sua fala.

“Se for compreendida literalmente, a Primeira Emenda implicaria no direito de dizer tudo aquilo que se quer dizer em todo e qualquer contexto sem que ninguém colocasse um obstáculo. Então, como propõe o título deste encontro, vale tudo? A resposta seria, talvez de forma absurda, que sim”, disse a coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (PLED) da FGV Direito SP.

“Uma primeira solução para isso que soa absurdo seria dizer que nenhum direito é absoluto. Direitos, de fato, não são absolutos, e isso também é verdade nos EUA, disse a pesquisadora contemplada com o Fox International Fellowship concedido pela Universidade Yale para o ano acadêmico 2015-2016.

Segundo a palestrante, a tradição norte-americana exige pensar qual o propósito da liberdade de expressão. “Todos os problemas específicos de liberdade de expressão nos EUA são pensados a esta luz: para que serve proteger a liberdade de expressão em uma democracia? Pessoas e instituições têm a prerrogativa de se expressar livremente no debate público. Isso estabelecido, quais os critérios para determinar aquilo que excepcionalmente não está sob o escopo da prerrogativa da liberdade de expressão?”, perguntou.

Clarissa explicou que, a princípio e de forma geral, o Estado (norte-americano) não deve restringir o discurso e interferir no debate público com base no conteúdo da mensagem, convicção ou ideologia que está sendo veiculada. “Para que isso possa ser feito são necessárias justificativas fortes. A relevância do contexto e o mal iminente que possa advir de um ato de expressão podem ser critérios para sua restrição”, explicou. 

‘Teste do perigo claro e presente evoluiu no século 20’

Clarissa lembrou o famoso voto do juiz Holmes no caso Schenck vs. US (1919). Secretário do Partido Socialista, Schenck foi condenado com base na Lei de Espionagem (1917) por distribuir panfletos críticos ao recrutamento militar de jovens norte-americanos durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Recorreu à Suprema Corte reivindicando o direito à liberdade de expressão. Em seu voto, Holmes confirmou a condenação com base no “teste do perigo claro e presente” (clear and present danger test).

Ao julgar aquele caso, Holmes entendeu que o discurso de Schenck tendia a produzir um resultado ruim: a obstrução do alistamento voluntário para que os EUA pudessem continuar a conduzir seus esforços de guerra. Segundo o juiz, as mesmas palavras poderiam ter sido publicadas em tempos de paz; em tempos de guerra, não.

No mesmo caso Schenck contra os Estados Unidos, Holmes elaborou o exemplo de alguém que gritasse fogo em um teatro lotado, causando pânico, e afirmou que o direito de liberdade de expressão constitucional não seria aplicável a esse caso hipotético. “Em 1919, Holmes formula pela primeira vez o ‘teste do perigo claro e presente’ e faz essa aproximação, ou correspondência, entre o exemplo hipotético do grito de fogo, que sem dúvida traria um perigo iminente, e a distribuição de panfletos, que tenderia a comprometer o recrutamento militar.

Mas o próprio juiz Holmes mudou de posição em relação ao “teste do perigo claro e presente” no caso Whitney vs. California (1927), ao acompanhar o voto divergente do juiz Brandeis naquele julgamento. Foi, no entanto, em 1969, no caso Brandenburg vs. Ohio, que a Suprema Corte consolidou a jurisprudência em vigor até hoje. Um líder da Ku Klux Klan foi condenado pela Justiça de Ohio por divulgar filmes de natureza discriminatória que continham, inclusive, ameaças a grupos populacionais. Recorreu à Suprema Corte e houve reversão da condenação. 

Em tradução livre, a Suprema Corte decidiu que “a garantia constitucional da liberdade de expressão e de imprensa não permite a um estado proibir ou proscrever a defesa do uso da força ou da violação da lei exceto quando essa defesa incitar ou produzir uma ação ilícita iminente e for provável que incite ou produza essa ação”.

“O critério de aplicação do teste foi refinado e é hoje mais protetivo da liberdade de expressão. O contexto é mais importante que o conteúdo. É preciso haver um vínculo direto entre discurso e dano iminente e haver intencionalidade de produzir aquela consequência. Portanto, nos Estados Unidos qualquer pessoa tem o direito de manifestar suas opiniões e convicções ainda que sejam imorais, de natureza discriminatória, falsas ou contrárias a um dos pilares do próprio Estado democrático de direito. Apenas o risco de dano iminente que possa ser provocado intencionalmente pelo discurso é uma boa justificativa para sua restrição”, concluiu a palestrante.

Liberdade de expressão no mundo digital e Lei das Fake News

Após a apresentação inicial dos dois especialistas (com duração aproximada de 40 minutos), teve início a fase de perguntas e respostas, durante a qual ambos trataram de outros temas, como a necessidade de adaptar esses conceitos fundamentais à atual realidade tecnológica/digital, as consequências danosas da disseminação de notícias falsas durante a pandemia e o debate sobre o Projeto de Lei das Fake News (2630/20) que tramita no Congresso. O webinar está disponível na íntegra no canal da Fundação FHC no YouTube.

“A tecnologia alterou a infraestrutura do debate público, que antes era estruturado por mídias concentradas (emissoras de TV, rádios e jornais) e hoje acontece sobretudo nas redes sociais, de forma descentralizada e muito dinâmica”, disse Clarissa Gross. Uma possibilidade seria reestruturar o debate público a partir das prerrogativas de expressão do cidadão comum e de quem ocupa um cargo público. “Existe diferença quando um de nós diz alguma coisa sobre a pandemia nas redes sociais e quando o ministro da Saúde expressa sua opinião. Afinal uma autoridade pública representa o Estado”, continuou.

“Epidemias parem filhos penais, como no caso dos artigos 267 e 268 do Código Penal Brasileiro, que são filhos da Gripe Espanhola (1918-1920). Mas, para aplicar aqueles artigos a quem dissemina informações falsas durante a pandemia do novo coronavírus, seria necessário uma boa dose de criatividade”, disse Alaor Leite. Veja como foi o webinar “Pandemias no curso da história: lições do passado para o mundo pós Covid-19”, com o embaixador Rubens Ricupero.

Ambos concordam ser necessário colocar o pé no freio na aprovação do Projeto de Lei das Fake News. “Está havendo uma correria muito grande, falta estruturar melhor a discussão. Há ideias interessantes, do ponto de vista de transparência, mas problemas com relação à privacidade e coleta de dados. Mesmo diante do desafio de melhorar a qualidade do debate público no país, não podemos comprometer as liberdades individuais, pois ambos são essenciais em uma democracia”, disse a professora da Fundação Getulio Vargas.

“De fato há afogadilho e pressa. A emenda 13, apresentada pelo senador Antonio Anastasia, relator do PL 2630/20, vai na linha da autorregulação, próxima do modelo alemão. Mas vejo com preocupação a introdução açodada de tipos penais na nova legislação”, disse o docente-assistente da Universidade Humboldt de Berlim.

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Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.

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