Limitações de um enfoque “purista” aos direitos humanos

Por: GIFE| Notícias| 27/01/2012

Ute Seela e Remko Berhout*

As críticas sobre o paradigma da filantropia tradicional (“um doa, os outros recebem”) e a concomitante falta de agências por parte do receptor pode ser relevante além do campo de suporte das pessoas nativas. Os valores culturais e os mecanismos tradicionais para a tomada de decisões têm influência significativa nos temas sobre conflito e justiça em muitas comunidades locais tribais ou não.

No entanto nós, enquanto doadores e em especial quando seguimos os enfoques dos recursos humanos, temos a tendência de dar apoio a estratégias focadas nas demandas por direitos legais ao nível do estado muitas vezes ignorando o fato de que a legislação e a prática tradicional coexistem. Práticas culturalmente mais sensíveis poderiam dar enfoques mais firmes e oferecer novas oportunidades para a prática mais eficiente de doar.

Remko Berkhout defensor dos Direitos Humanos e por extensão também financista dos recursos humanos nas últimas décadas tem alcançado resultados importantes. Depois da Declaração dos Direitos Humanos e dos convênios internacionais, o panorama legal tem passado por significativas mudanças sobre uma série de direitos básicos incluindo agora a emergência de mecanismos internacionais e nacionais de fiscalização.

Os dados dos vigilantes dos direitos globais como a Freedom House também sugerem que os ganhos no campo têm sido significativos. Ao mesmo tempo persiste a violação dos direitos humanos até em países com estruturas avançadas. Nós alegamos que esta mistura indica uma séria limitação do enfoque ”purista” dos direitos humanos entre os doadores. Em outras palavras, focar o estado como o primeiro alvo a advogar a favor dos direitos humanos pode ter negligenciado a “cultura” em potencial como uma fonte de inspiração para a ação civil.

Este assunto poderia ser discutido do ponto de vista teórico ao referir-se ao imenso debate sobre o relativismo cultural – o argumento de que o capital humano não é universal e são a cultura e a tradição que determinam como as comunidades percebem os direitos e as obrigações.

No entanto, nós preferimos um enfoque mais pragmático: se essas comunidades locais que desejamos dar apoio se identificam fortemente com a sua identidade étnica ou religiosa local em vez dos abstratos direitos legais, o que um remoto estado poderia garantir? Como alguém poderia explicar essa distância do estado? E o que podemos aprender disto? Esses são os tipos de pergunta que nós exploramos no programa Hivos knowledge. O trabalho em andamento sugere o seguinte.

A distância entre a teoria e a prática
Apesar de o estado ter a responsabilidade de acatar as obrigações das leis internacionais incluindo a igualdade dos direitos humanos para todos, a medida como estes as aplicam pode ser muito diferente. Em primeiro lugar, enquanto o estado se compromete a fundo com “o cumprimento da lei” em declarações oficiais, na prática pode não fazê-lo.

O debate público sobre a violência nas comunidades e o secularismo na Índia, por exemplo, mostram regularmente a resposta indecisa do estado indiano, embora digam que age a favor da maioria indiana. Apesar de a constituição indiana proteger amplamente os diretos da minoria, no processo da polarização religiosa desde 1990 e no surgimento de partidos indianos de direita, o parlamento e o governo têm se tornado frágil para identificar políticas que favorecem, sobretudo, os interesses dos indianos Hindutva.

Genericamente, pode-se dizer que o governo ao se deparar com pedidos conflitantes de direitos humanos faz com que as novas leis e a sua implementação estejam subordinadas a identificações e prioridades políticas e negociações de interesses.

Em segundo lugar, conseguir que um estado aja por meio do confronto ou da cooperação pode tomar tempo, custa caro e o processo é inimaginavelmente complexo, além da capacidade e conexões dos detentores dos diretos. Estudos recentes (por exemplo, da Atlantic Philanthropies) ilustram que isto pode levar a estratégias não cívicas como protestos comunitários violentos com explosões de xenofobia e destruição da infraestrutura pública.

Em terceiro lugar, os numerosos exemplos ilustram que os direitos humanos podem ser violados na prática, mesmo não havendo nada de errado com as leis. Na África do Sul, por exemplo, a frequente violência sexual e a discriminação contra os grupos LGBT persistem apesar da legislação mais progressista. As normas, os valores e as práticas da comunidade podem funcionar numa lógica fundamentalmente diferente dos direitos humanos universais.

O ponto cego crítico
Estes três conjuntos de limitações apontam um ponto cego crítico na teoria de mudanças que serve como base aos enfoques dos direitos humanos. Um elemento crucial daqui pode ser a insistência do enfoque dos recursos humanos baseado no esquadrinhamento do enfoque ocidental que tende a ver cultura e tradição como fenômenos retrógrados e invariavelmente opostos às noções de direitos humanos como uma modernidade.

Digamos que um direito “purista” tende a visualizar todas as reformas socioculturais em termos de uma reforma legal. Este reducionismo cria uma visão um tanto estreita sobre as possíveis soluções para apontar as injustiças. Também explica até certo ponto o cansaço por parte das ONGs em alguns países. As organizações da sociedade civil que são percebidas como seguidoras de uma lógica orientada pelos doadores e urbanamente tendenciosas estão perdendo credibilidade em suas próprias sociedades e sendo vistas cada vez mais como ineficientes.

Uma reportagem recente publicada na Cross – Cultural Foundation de Uganda analisa uma série de casos onde os sistemas tradicionais de governança e a “moderna” lei estadual aparecem justapostas. Um dos temas mais recorrentes é a propriedade da terra. O sistema tradicional de posse da terra ainda permanece na maioria dos países.

A terra é propriedade de famílias e passada de geração a geração sem uma administração oficial ou regulamentação. O sistema utilizado para proteger a mulher, na morte do marido, por exemplo, dá à viúva a administração da terra da família. No entanto, recentemente a ideia de propriedade privada de um indivíduo e o registro oficial já está acontecendo. O estudo da CCFU cita exemplos de parentes homens apossando-se e registrando as terras de viúvas ou divorciadas alegando que as mulheres não são as donas da terra.

Nestes casos a ideia moderna dos direitos e regulamentos individuais tem resultado numa perda de direitos e dignidade das mulheres. O estudo também menciona exemplos de como a tradicional propriedade da terra poderia ser reforçada pela documentação dos direitos e responsabilidades dentro do sistema tradicional. Os direitos e a cultura podem se fundir: o estudo o mostra.

O que podemos concluir disto? Acreditamos que ir além de um enfoque purista de direitos e introduzir uma nova cultura nas formulações das estratégias oferecem alternativas para uma ação cívica com importantes implicações para os doadores. Nós concordamos com a afirmação de que os financiadores dos direitos humanos e os financiadores da justiça social trabalham com diferentes bases: direitos individuais versus a saúde das comunidades. Nosso argumento sugere que, em vez de fechar um acordo sobre as diferenças de perspectivas, estes ‘primos’ deveriam colaborar entre si e considerar apoios mais abrangentes para as estratégias permitindo a mistura dos mecanismos do tradicional e do moderno sobre os direitos humanos e a justiça social.

Depois de tudo, parafraseando Amartya Sen: se tomamos conhecimento de que existem princípios concorrentes, não seria melhor se engajar com aqueles de diferentes perspectivas em vez de “construir castelos no céu”?


*Ute Seela e Remko Berkhout trabalham como oficiais do conhecimento na organização de desenvolvimento Hivos. Emails: [email protected] e [email protected]. Para mais informações: www.hivos.net.

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