Material do Observatório da Sociedade Civil discute o financiamento das ONGs no país

Por: GIFE| Notícias| 24/02/2014

Em uma roda de conversa, quando a pauta que surge são as organizações não governamentais, (ONG), parece quase impossível alguém não lançar a pergunta, com ar desconfiado: Mas, afinal, de onde vem o dinheiro destas entidades? Com a proposta de dar visibilidade sobre um dos pontos mais polêmicos – e distorcidos – no debate sobre as organizações, a fim de responder a esta questão, o Observatório da Sociedade Civil ([email protected]) – iniciativa desenvolvida pela Abong (Organizações em Defesa de Direitos e Bens Comuns), com apoio da Fundação Ford – lança um novo material chamado “O Dinheiro das ONGs – Como as Organizações da Sociedade Civil sustentam suas atividades – e porque isso é fundamental para o Brasil”.

O material (Clique aqui para acessar o arquivo) traz informações das principais pesquisas acadêmicas a respeito do tema, assim como entrevistas com nove organizações – FASE, Centro Agroecológico Sabiá, Instituto Avisa Lá, UNAS, Greenpeace, CESE e Fundo Brasil de Direitos Humanos. A publicação apresenta ainda análises de representantes da Abong, do GIFE e do governo federal.

O nosso objetivo foi traçar um panorama de como vem sendo feito o financiamento das entidades nos últimos anos e acabar com preconceitos que dificultam o trabalho das entidades. Algumas observações dadas como senso comum, como o fato dos repasses de recursos públicos serem a única (e suspeita) forma de financiamento das ONGs, não é a realidade observada. O fato é que a mídia, por diversas vezes, têm reforçado esta visão, o que dificulta a discussão. Os modelos de financiamento são muito mais complexos do que parecem. E observamos isso”, comenta Nicolau Soares, coordenador do Observatório.

A partir de dados de estudos acadêmicos atuais, o relatório do Observatório aponta que a realidade pode ser bem diferente do que a apresentada por esse senso comum. “Existem cerca de 300 mil entidades sem fins lucrativos segundo a pesquisa Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil (Fasfil), realizada pelo IBGE. Destas, 10 mil receberam recursos por meio de convênios com o governo federal, uma fatia bem pequena. Por aí se pode saber que não é do poder público que vem a maior parte dos recursos das ONGs”, explica Felix G. Lopes, pesquisador do IPEA e autor do estudo “As entidades sem fins lucrativos e as políticas públicas federais: tipologia e análise de convênios e organizações (2003-2011)”.

De acordo com a pesquisa, o governo federal dispendeu quase R$ 190 bilhões entre 2003 e 2011 em convênios com outros níveis de governo e com entidades sem fins lucrativos. Estas receberam perto de 15% do total de transferências, num valor de R$ 29 bilhões em mais de 36 mil convênios. “Em termos orçamentários, a fatia destinada pelo governo federal para entidades sem fins lucrativos – categoria que inclui, além de ONGs, sindicatos, hospitais filantrópicos, fundações e institutos de pesquisa, centros culturais etc. – sempre foi muito pequena, não chega a 0,5% do orçamento”, completa.

Mas se não vivem de recursos federais, de onde vem o dinheiro que financia as atividades das ONGs? “É uma questão muito difícil de ser respondida no Brasil, não pela complexidade do dado, mas pela dificuldade de acesso a ele. Uma parte grande dos dados está resguardada por lei na Receita Federal, sob sigilo fiscal”, explica Lopes. Essa barreira impede saber com certeza a importância das demais fontes de recursos das ONGs.

Uma das pistas apontadas pelo relatório vem da pesquisa TIC – Organizações Sem Fins Lucrativos, realizada pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e Comunicação (CETIC). Divulgado em 2013 com dados referentes ao ano anterior, o estudo ouviu 3.546 organizações de todo o país, incluindo ONGs, sindicatos, igrejas, universidades filantrópicas e outras, para estudar seus hábitos e estratégias de uso de tecnologias da informação.

Mas, ainda que não fosse seu objetivo principal, o estudo reuniu dados sobre financiamento. Segundo ele, 26% das entidades ouvidas declararam que sua principal fonte de recursos são mensalidades e anuidades pagas por associados; e outros 24% afirmam ser doações voluntárias. As entidades que declararam ter nas três esferas de governo seus principais apoiadores somam 24% do total. Considerada apenas a categoria Desenvolvimento e Defesa de Direitos, a mais próxima do campo, o peso do Estado aumenta, mas continua não sendo majoritário: 26% afirmam ter as mensalidades como principal fonte, 15% doações voluntárias, 13% citam governos municipais, 12% governos estaduais e 10% o governo federal. Outras fontes citadas foram venda de produtos e serviços e doações de instituições religiosas, empresas e outras organizações sem fins lucrativos.

Assim, é possível observar que, a principal marca da sociedade civil brasileira também se reflete em seus modelos de sustentabilidade financeira: a diversidade. Atualmente, verifica-se, cada vez mais, que as organizações têm buscado diversificar os seus financiamentos a fim de se manter.

Novos cenários

Se décadas atrás grande parte das entidades era financiada por organismos internacionais, com a melhora da situação econômica brasileira, muitas delas viram sua fonte de recursos se esvaziar, fazendo com que enfrentassem momentos difíceis. Hoje, grande parte das organizações têm se mantido com o apoio de empresas e fundações privadas, doações individuais e mesmo recursos das esferas estadual e municipal de governo.

Não pode jogar todas as fichas num só financiador. Tem que buscar editais, licitações, diversos meios”, afirma Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá, de São Paulo, a respeito do desafio das ONGs para garantir sua sustentabilidade financeira.

O que se percebe a partir das vivências das diversas entidades e é, em qualquer relação estabelecida na busca por financiamento, há benefícios, mas também muito impasses a serem enfrentados. No caso de parcerias com o poder público, muitas entidades se deparam com uma burocracia que não costumava fazer parte do seu dia a dia, como foi o caso da organização Criola, do Rio de Janeiro. “Para atuar junto ao governo, temos que passar por licitações e outros processos e uma organização como a nossa tem dificuldades de superar os entraves burocráticos destes processos. O grupo que trabalha na ONG tem mais interesses políticos do que administrativos. E quando acaba o financiamento, são as pessoas do administrativo que primeiro vão embora, levando a história administrativa da entidade”, explica Lúcia Xavier, coordenadora da entidade.

O relatório do Observartório destaca que essa dificuldade exemplifica uma das contradições do atual modelo de relação entre Estado e sociedade civil. Por um lado, a Constituição de 1988 reconheceu demandas das organizações com a criação de uma série de espaços de participação política da população e controle social, como os conselhos de políticas públicas. No entanto, as primeiras discussões sobre o marco regulatório para as OSCs, ocorridas na segunda metade da década de 1990,criaram um modelo de relacionamento que ainda hoje tem consequências: os gestores do Estado passaram a ver as ONGs principalmente como executoras de projetos gestados e definidos dentro do governo. Com isso, atraíram tanto ONGs tradicionalmente ligadas à assistência quanto entidades de advocacy e defesa de direitos, que passaram a pensar projetos em busca de oportunidades de financiamento deixando de lado as atividades em que tinham experiência: desenvolvimento de novas tecnologias sociais, organização comunitária, pesquisa, formação e análise de políticas públicas.

Essa visão criou uma série de problemas principalmente para as organizações de promoção e defesa de direitos. “Nem sempre os projetos apoiam a questão institucional. Nos últimos anos, tem sido difícil encontrar recursos que apoiem a ação política, participação em conselhos. Você capta só para a ação direta. As organizações têm tido dificuldade para bancar sua equipe, que ajuda a produzir pensamento político, tem metodologia desenvolvida, que conformou a organização”, explica Lúcia.

A parceria com a esfera municipal de governo marca também o modo de atuação da União de Núcleos e Associações de Heliópolis (UNAS), que há 30 anos mobiliza e oferece serviços básicos para a população da maior favela da capital paulista. A principal forma de financiamento da UNAS são convênios com a prefeitura de São Paulo, que correspondem a cerca de 80% dos recursos da entidade. “Trabalhar com o município não é uma opção, é consequência da municipalização das políticas. São as necessidades da comunidade que nos fazem conveniar com a prefeitura”, explica Jairo Araldi, diretor de projetos da UNAS.

O modelo de financiamento via convênios repete os problemas para garantir as atividades internas da entidade, como administração, contabilidade, atendimento ao público etc. “Com o convênio você estrutura tudo para o atendimento, mas não pode pensar nada para a organização”, conta Jairo.

Um dos principais impasses enfrentados pelas entidades é justamente as limitações do modelo de financiamento por projetos, o mais comumente oferecido por financiadores seja do poder público quanto do setor privado. “É tudo muito focado em usar o recurso para o projeto, não para o desenvolvimento da ONG. A gente tem uma equipe fixa, celetista. Tem pessoa só para cuidar de documentação, que toda hora está vencendo. Mas os formadores são todos contratados por projeto. No final do ano fica todo mundo com a espada na cabeça, sem saber se vai ter trabalho ou não no próximo período”, lamenta Cisele, do Instituto Avisa Lá.

O Observatório destaca que o foco na contratação via projetos é uma das muitas características do modelo de apoio empresarial construído no Brasil. O que se percebe são os esforços dos institutos e setores de responsabilidade social das empresas na gestão de projetos próprios. Segundo os dados do Censo do GIFE, os associados investiram R$ 2,3 bilhões em 2012. Deste total, cerca de 30% foi para outras organizações, sendo o restante gasto em projetos próprios. Segundo Andre Degenszajn, secretário-geral do GIFE, esta caraterística dos institutos brasileiros é bastante diferente de outros países. “Nos EUA, por exemplo, elas basicamente fazem doações para a sociedade civil, raramente operam. Apenas 10% são o que eles chamam de fundações executoras”, afirma.

Para Andre, três fatores fundamentais contribuem para esse cenário. Primeiro, há entre os empresários uma baixa confiança na capacidade das OSCs de realizarem suas missões. “Há uma visão de que as OSCs são pouco eficientes, pouco transparentes, têm baixa capacidade de gestão, baixa legitimidade. É um conjunto de fatores que diz respeito à visão que se tem das ONGs como organizações que promovem ações voltadas ao interesse público”, afirma.

Os outros elementos são a tendência entre os institutos empresariais de alinhar os investimentos sociais aos negócios da empresa mantenedora, assim como realizar avaliações e mensuração dos resultados do investimento social. “Os institutos avaliam ser mais fácil avaliar o impacto de projetos próprios. Se elabora o próprio projeto, tem mais facilidade potencialmente para acompanhar”, avalia Andre.

Talvez por um raciocínio semelhante, mesmo em relação aos recursos que são repassados a outras organizações, a maioria das empresas adota o modelo de financiar projetos, impondo controles e dificultando o desenvolvimento institucional das ONGs. “É mais difícil as fundações financiarem ações numa perspectiva mais de empoderamento e de criação de direitos, como controle social ou advocacy, do que financiar ações com impacto direto no beneficiário”, explica.

No relatório do Observatório, André destaca ainda que essa situação não está descolada de uma ausência de valorização do papel das ONGs na sociedade brasileira. “As organizações estão com poucas bases de sustentação política. Isso está articulado, não são coisas dissociadas. A crise financeira não será superada sem superar essa crise política”, avalia o secretário-geral do GIFE.

Ele vê uma saída interessante na busca por doações individuais, que tem avançado no país. “É um modelo que contribui tanto em termos de sustentabilidade financeira como para a criação de uma base de apoio. Uma organização que recebe R$ 1 milhão em doações de R$ 1 de pessoas físicas, além dos recursos, tem um milhão de pessoas que a apoiam. É diferente de uma organização que recebe R$ 1 milhão de uma fundação internacional. A criação de uma base de apoiadores contribui de forma relevante para essa sustentação política”, argumenta.

A atenção da sociedade

Com o lançamento deste material, assim como de outros já disponíveis na plataforma online da iniciativa, o Observatório pretende esclarecer à sociedade sobre o papel fundamental das ONGs para a organização social, o controle das políticas públicas e o fortalecimento da democracia brasileira, assim como reverter o discurso contrário ao trabalho desenvolvido pelas entidades.

O Observatório foi lançado oficialmente em fevereiro deste ano, mas desde 2011 a ideia vem sendo fomentada e ganhando corpo a partir das discussões da Plataforma por um Novo Marco Regulatório para as OSCs. Desde então, o grupo estava desenhando as estratégias para chegar a missão atual, que visa mostrar práticas de transparência, dar visibilidade às organizações e suas conquistas e qualificar o debate público sobre a organização social e a participação na esfera pública.

Segundo Nicolau, a proposta é fazer uma incidência forte junto à imprensa brasileira como meio para chegar à população e tentar reverter uma visão negativa das entidades. Para isso, o Observatório tem investido forte na elaboração de conteúdos para o site, assim como nas produções periódicas.

Outra linha de ação do Observatório, de acordo com Nicolau, é o “Panorama da mídia”, no qual é feita uma análise sobre as matérias publicadas pela imprensa a respeito das entidades. A ideia é gerar uma reflexão e, por vezes, tentar contrapor informações não corretas divulgadas pela imprensa sobre a área.

Além disso, há um esforço do Observatório em levantar pautas atuais da sociedade e destacar de que forma as ONGs têm se posicionado a respeito e podem contribuir, como é o caso do margo regulatório da internet. “Aliás, neste caso, as entidades são as que estão puxando o debate com incidência forte nas discussões”, comenta.

Para 2014, a proposta é também criar um Conselho Editoral para garantir uma pluralidade de visões e trazer novas ideias de materiais a serem elaborados pelo Observatório.

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