Mulheres não reconhecem violência doméstica como crime

Por: GIFE| Notícias| 17/02/2003

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

As professoras Ana Flávia Pires e Lilia Schraiber, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, coordenaram a pesquisa Violência Contra a Mulher e Saúde no Brasil.

Lançado em dezembro, o estudo faz parte de um levantamento realizado pela Organização Mundial de Saúde em oito países. Em entrevista ao redeGIFE Lilia e Ana Flávia falam sobre os resultados do estudo.

redeGIFE – O que é a pesquisa?
Ana Flávia – É o primeiro estudo populacional de grande amplitude sobre saúde da mulher e violência doméstica no Brasil. Abrange a população de um grande centro urbano – cidade de São Paulo – e de uma região de características rurais – 15 municípios da zona da mata de Pernambuco. Fornece estatísticas sobre a prevalência da violência física, sexual e psicológica contra mulheres e meninas, além da repercussão sobre a saúde e o modo como as mulheres têm lidado com o problema.

redeGIFE – Foi feita alguma comparação com os resultados dos outros países? O que se constatou?
Ana Flávia – A comparação entre os países será feita pela coordenação internacional da pesquisa, no futuro. No momento, sabemos que as prevalências encontradas no Brasil foram mais baixas do que aquelas encontradas no Peru e próximas às da Tailândia.

redeGIFE – Por que a violência doméstica é considerada um problema de saúde pública?
Ana Flávia – Por sua alta magnitude na população e sua repercussão na saúde física e mental das mulheres que vivem ou viveram violência conjugal. O estudo, que confirma dados da literatura de outros países, revela que as mulheres que sofreram violência têm maior chance de sofrer tontura, problemas de memória e concentração, aborto provocado, ideação e tentativa suicida e problemas relacionados à bebida.

redeGIFE – Os hospitais estão preparados para atender a essa demanda?
Lilia – Não. Os hospitais e os serviços de saúde em geral não dispõem de protocolos de identificação e atendimento desses casos. Além disso, seus profissionais não são treinados para tal, ainda que nos últimos dois anos se assista a um grande movimento nas políticas de saúde, com investimento em redes de atendimento e formação de equipes. Identificar o caso de violência não tem sido a regra, mesmo quando a mulher se apresenta com traumas graves no pronto-socorro e sem uma história clara das causas do trauma, caso em que a suspeita de violência física doméstica é bastante fácil e obrigatória. São bem mais difíceis as situações de agressões recorrentes, seja de natureza física, sexual ou violência psicológica, em que não há lesões que levem ao pronto socorro ou em que há sofrimentos que são considerados sintomas comuns, como dores no corpo em geral, insônia, tonturas, cansaços freqüentes etc. O importante é que, mesmo que não se tenha protocolo de atendimento desenvolvido, os profissionais ao menos detectem os casos, façam um primeiro acolhimento e encaminhem para as redes de serviço que já existem e são especializadas neste atendimento.

redeGIFE – Muito se fala hoje em dia sobre violência, mas a violência contra a mulher não é um tema muito abordado. Por quê?
Ana Flávia – Porque o termo violência geralmente é reservado à criminalidade que ocorre nas ruas das grandes cidades. A violência nas relações interpessoais de intimidade ainda é difícil de ser desvelada, por embaraço e vergonha das pessoas que a sofrem, pela estigmatização do problema na sociedade e porque as agressões domésticas não são reconhecidas como pertencentes ao campo jurídico-criminal e dos direitos humanos.

redeGIFE – E por que isso acontece? O que se pode fazer para mudar?
Lilia – Há leis que definem agressões e quais delas se enquadram como crime, mas o não reconhecimento se dá por parte das mulheres que sofrem a violência ou de seus familiares e amigos, pois entendem a situação como do âmbito privado e desconhecem os direitos das mulheres. Assim, não acionam instituições que podem apoiá-las.

redeGIFE – Como as mulheres têm enfrentado o problema da violência doméstica?
Ana Flávia – 22% em São Paulo e 24% na zona da mata de Pernambuco nunca haviam falado da violência vivida antes da entrevista para a pesquisa. A maioria que fala sobre o problema procura pais (56% na zona da mata e 42% em São Paulo) e parentes (28% em Pernambuco e 42% em São Paulo). Em São Paulo, também é freqüente falar para amigas (41%). Dentre os apoios institucionais buscados, a polícia (18%) e hospitais e centros de saúde (16%) são os mais procurados pelas mulheres que sofreram violência física conjugal em São Paulo. Já na zona da mata de Pernambuco, 11% procuram ajuda nos hospitais e centros de saúde e 10%, na polícia.

redeGIFE – A que podemos atribuir essa diferença?
Lilia – Atribui-se à oferta dos serviços. Por exemplo, há delegacias de mulher em São Paulo, e não há na zona da mata de Pernambuco.

redeGIFE – A pesquisa diz que na zona da mata há maior índice de violência do parceiro contra a mulher do que em São Paulo, mas que essa diferença desaparece quando são analisadas mulheres com o mesmo grau de escolaridade. O que significa?
Ana Flávia – Significa que a escolaridade parece ser mais importante para explicar as diferenças encontradas do que o local onde vivem as entrevistadas. Como mulheres com maior escolaridade têm menos chance de sofrer violência e há mais mulheres nesta situação em São Paulo, a prevalência aqui acaba sendo menor do que em Recife, onde há mais mulheres com baixa escolaridade.

redeGIFE – Os números de violência contra a mulher em São Paulo e Pernambuco são muito discrepantes?
Lilia – Não são discrepantes. Eles indicam as mesmas tendências gerais em ambos os lugares. Por exemplo, nas duas regiões pesquisadas as taxas encontradas são altíssimas, e o principal agressor é o companheiro atual ou anterior. Mas há nuances entre os lugares, como essa questão da escolaridade.

redeGIFE – No que a violência contra a mulher pode afetar o desenvolvimento dos filhos?
Ana Flávia – A pesquisa demonstrou que há repercussões na saúde das crianças, uma vez que mulheres cujos parceiros são violentos relatam que seus filhos de 5 a 12 anos apresentam maiores taxas de repetência escolar em São Paulo e taxas de abandono escolar na zona da mata de Pernambuco.

redeGIFE – Por que isso acontece?
Lilia – Os filhos que testemunham violência sofrem igualmente com a situação, além do fato de que as mulheres em situação de violência apresentam maior dificuldade para a lida doméstica cotidiana e para assistirem aos filhos em suas necessidades específicas. Assim, há o sofrimento individual da criança e toda uma mudança na dinâmica das relações intrafamiliares quando há um contexto de violência.

redeGIFE – Ainda existe medo de fazer denúncia de casos de violência contra a mulher?
Ana Flávia – As mulheres que vivem a violência podem ser ameaçadas, ter medo ou não confiar que a denúncia vá representar uma melhora de sua situação. Entretanto, entre aquelas entrevistadas que buscaram ajuda em alguma instituição, a grande maioria recomendaria o mesmo procedimento para uma irmã ou amiga.

redeGIFE – O que as organizações da sociedade civil podem fazer para combater a violência doméstica?
Ana Flávia – Elas já vêm fazendo bastante, tornando o problema visível e reivindicando políticas públicas voltadas para a questão. Podem também, em parceria com o poder público, ajudar a criar programas adequados às necessidades das mulheres.

redeGIFE – Que tipo de programas?
Lilia – Programas de apoio à assistência social, esclarecimentos e encaminhamentos de natureza jurídica e orientações quanto à segurança pessoal, risco de vida e busca de assistência especializada. E, muitas vezes, já é parte da solução escutar, dar crédito ao relato e tentar, junto com a mulher, encontrar caminhos que permitam a ela lidar melhor com problema.

redeGIFE – O que os formuladores de políticas públicas também podem fazer nesse sentido?
Ana Flávia – Podem colocar o problema como prioridade, articular os diversos setores (saúde, educação, polícia, justiça, cultura, trabalho, habitação etc.) que devem estar envolvidos na solução do problema e trabalhar na prevenção e assistência dos casos. A produção de conhecimento também é importante de ser estimulada.

redeGIFE – Que tipo de conhecimento?
Lilia – Pesquisas científicas que estudem as causas da violência ou aprofundem seus impactos na saúde e mostrem os obstáculos para as mulheres reivindicarem seus direitos.

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