Nova edição do Relatório Luz aponta um Brasil em retrocesso acelerado

Por: GIFE| Notícias| 02/08/2021
Em entrevista ao redeGIFE, Alessandra Nilo, representante do GT Agenda 2030, responsável pela produção do Relatório Luz , aponta um cenário de graves ameaças e violações de direitos.

Fotos Públicas / Jade Azevedo

Em entrevista ao redeGIFE, Alessandra Nilo, representante do GT Agenda 2030, responsável pela produção do Relatório Luz , aponta um cenário de graves ameaças e violações de direitos.

Fotos Públicas / Jade Azevedo

“A atual emergência de saúde pública forçou todos os governos e instituições no mundo a testarem a promessa feita em 2015, na Organização das Nações Unidas (ONU), de ‘não deixar ninguém para trás’. O Brasil, apesar de ter assumido um compromisso similar ainda em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, está hoje  entre os países que mais se distanciam da Agenda 2030.”

O prefácio da quinta edição do Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 no Brasil dá pistas sobre um cenário de graves ameaças e violações de direitos. O título da mesma apresentação sinaliza ainda o futuro brasileiro projetado para o pós-pandemia: “O Retrato do Brasil em 2021: um país em Retrocesso Acelerado”.

Lançado no dia 12 de julho durante audiência pública no Congresso Nacional, o documento envolveu em sua produção mais de 100 pessoas de 60 organizações, pesquisadoras e peritas nos assuntos tratados pela agenda de desenvolvimento sustentável da ONU, analisando o status brasileiro atual em cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Produzida pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), a publicação monitora a implementação dos ODS no país. A coalizão reúne organizações da sociedade civil, movimentos sociais, fóruns, redes, universidades, fundações e federações brasileiras.

O grupo de trabalho foi formalizado em setembro de 2014 a partir do encontro de diversos atores da sociedade civil organizada que acompanhavam as negociações em torno da “Agenda Pós-2015”, que resultaram na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, firmada pelos 193 países-membros das Nações Unidas, incluindo o Brasil, durante a 70ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015. Desde então, o grupo atua na difusão, promoção e monitoramento da implementação dos ODS nos âmbitos local, nacional e internacional.

“Além de mostrar que estávamos em situação ruim antes mesmo da pandemia, a nova edição põe luz sobre um contexto extremamente contrário ao desenvolvimento sustentável, onde cresce a pobreza e a fome, onde o desemprego parece ser crônico e com redução substancial de investimento público em áreas estratégicas e estruturantes para o desenvolvimento das capacidades técnicas e científicas, diminuindo a capacidade, no médio e longo prazo, de respondermos ao conjunto de crises que o país atravessa”, alerta Alessandra Nilo, coordenadora geral da Gestos Soropositividade Comunicação e Gênero e co-facilitadora do GT Agenda 2030.

Para repercutir os achados da nova edição, o redeGIFE conversou com a especialista. Confira a entrevista na íntegra.

redeGIFE: Quais são os principais desafios e agendas retratados da quinta edição do Relatório Luz da Sociedade Civil para a Agenda 2030 no Brasil?

Alessandra: Um importante destaque é o fato de nenhuma das 169 metas da Agenda 2030 estar em progresso satisfatório no país, algo inédito em nossa série histórica iniciada em 2017. Na quarta edição, por exemplo, tínhamos ao menos quatro metas nessa situação. Além disso, temos, este ano, 82,8% das metas em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas, o que nos permite afirmar que o país está em retrocesso acelerado, fruto de políticas e decisões – nas diferentes esferas públicas – que alimentam as desigualdades, do crescimento da violação de direitos e de más decisões econômicas sobre o que priorizar e onde investir, agravando ainda mais a situação de populações já altamente vulnerabilizadas.

A análise também mostra irresponsabilidades como a não execução do orçamento empenhado para responder à violência de gênero e aos desafios impostos pela pandemia da Covid-19, contribuindo para as centenas de milhares de mortes evitáveis ocorridas até o momento. Além disso, aponta a diminuição do espaço cívico e ataques contra pilares da democracia, como a imprensa livre e a política de participação social, que vem se deteriorando desde o decreto 9.759, de 11 de abril de 2019.

O relatório aponta ainda um apagão de dados em curso e um maior distanciamento entre as políticas públicas e as evidências, em detrimento de crenças religiosas e ideológicas, como é o caso da atual política de prevenção à gravidez indesejada na adolescência, que nega evidências científicas sobre o tema. Além do fato de o país se tornar um ambiente cada vez menos atraente para negócios e parcerias internacionais, o V Relatório Luz dá visibilidade ao desmonte do conjunto de instrumentos de regulação e fiscalização ambiental – que tem gerado recordes de desmatamento e deterioração do meio ambiente -, ao licenciamento apressado de centenas de novos agrotóxicos por ano, ao aumento dos diferentes tipos de violência e à situação dos povos indígenas e das populações negras e quilombolas, que estão sendo deixados, propositadamente, para trás, principalmente suas mulheres e meninas.

redeGIFE: O que o “Retrato do Brasil em 2021: um país em Retrocesso Acelerado” diz sobre a recuperação no pós-pandemia?

Alessandra: Acreditamos que a observância dos princípios da Agenda 2030, que está completamente alinhada à nossa Constituição Federal de 1988, é fundamental para que o Brasil possa enfrentar a pandemia de Covid-19 e suas consequências, assim como corrigir problemas socioeconômicos que facilitam seu agravamento. O documento apresenta 136 recomendações, sendo que algumas delas impactariam positivamente na situação do país em relação a muitos ODS ao mesmo tempo. É o caso do fim da Emenda Constitucional 95, da reestruturação da política de participação social, do fortalecimento das instâncias fiscalizadoras nacionais em diferentes setores e da produção de dados.

Em muitas áreas, retrocedemos a ponto de perder décadas de investimentos e precisaremos reconstruir muito do que foi destruído em termos de políticas sociais, ambientais e econômicas. Por isso, é necessário convocarmos todos os poderes à responsabilidade de implementar a Agenda 2030, assim como de seguir investindo na territorialização e localização dos ODS por todo o país, o que só poderá ser alcançado com diálogo, bom senso e parcerias, pois as pessoas, governos, empresas, sociedade civil organizada e academia também estão sendo chamados a contribuir com a construção do nosso futuro.

redeGIFE: O que a análise do ODS 17 (Parcerias e Meios de Implementação) aponta em termos de oportunidades para uma maior atuação de institutos e fundações empresariais sobre a agenda de desenvolvimento sustentável da ONU, em articulação com a sociedade civil organizada?

Alessandra: Analisando o ODS 17, identificamos que há uma falta de integração entre as políticas, setores e instituições, nas três esferas da federação e entre os poderes da República, agravada pelos entraves criados pelo governo federal. Isso dificulta o estabelecimento de parcerias multissetoriais. O Brasil tem perdido credibilidade e se afastado cada vez mais da cooperação internacional, recuando mais de 16 anos na quantidade de projetos de cooperação técnica com outros países em desenvolvimento. Infelizmente, nosso país não é mais considerado um ambiente seguro para investimento estrangeiro por causa da polarização política e do desarranjo dos fundamentos da economia.

Muitas empresas multinacionais estão deixando o Brasil. Para haver um maior envolvimento por parte de institutos e fundações empresariais para implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil seria fundamental a retomada da Comissão Nacional dos ODS, extinta em 2019. A Comissão era um colegiado paritário, de natureza consultiva, criado justamente para articular, mobilizar e estimular o diálogo entre os entes federativos, o setor privado e a sociedade civil. A produção dos Relatórios Nacionais Voluntários, interrompida em 2017, e o alinhamento dos instrumentos de gestão federais, como o Plano Plurianual (PPA), aos ODS também seriam sinalizações positivas, assim como a priorização de investimentos em negócios, indústrias e projetos alinhados aos objetivos, com resultados e prestação de contas transparentes e com envolvimento real da sociedade civil nas etapas de criação e desenvolvimento desses negócios.

redeGIFE: Por que a escolha do estudo de caso desta edição (A pandemia da Covid 19 no Norte do Brasil) e o que ele aponta em termos de desafios?

Alessandra: O estudo de caso desta edição foi escolhido por ser emblemático da crise sanitária sem precedentes em que o Brasil se encontra mergulhado. Emblemático porque a região Norte detém os piores indicadores nacionais de condições de vida e péssima infraestrutura socioeconômica e de saneamento básico. A tragédia era, portanto, previsível, mas poderia ter sido evitada, se os governos estaduais e federal, atuando de forma articulada, tivessem se atentado à piora do quadro epidemiológico que começou a se desenhar já no primeiro semestre de 2020.

Além dos déficits históricos de saneamento básico, da rede de esgoto e da quantidade de unidades de saúde, o Norte é a região com maior concentração de pessoas por unidade familiar, dificultando o distanciamento e o isolamento social, e com o menor número de médicos por 100 mil habitantes. Esse cenário se soma à existência de comunidades tradicionais espalhadas em grandes extensões territoriais, às ameaças a esses povos e ao meio ambiente pela pressão do agronegócio, das madeireiras e das mineradoras e aos desafios relacionados ao fato de vários estados da região serem corredores de passagem da rota migratória. A lição de casa que fica é a de que o Brasil precisa olhar mais atentamente para essa região, cuidar melhor da população e tornar os territórios mais seguros, sustentáveis e saudáveis para todas as pessoas, para que ninguém fique para trás.

redeGIFE: Quais são as principais saídas apontadas pelo Relatório Luz 2021 para as mudanças que precisamos no que se refere à garantia de direitos e inclusão de todos e todas?

Alessandra: Os dados analisados no V Relatório Luz mostram que o Brasil, ao invés de aumentar investimentos nas áreas sociais como fez a maioria dos países durante a pandemia, desregulamentou instâncias fiscalizadoras e fomentou políticas de austeridade contraproducentes. Além da revogação da Emenda Constitucional 95, entre as 136 recomendações reunidas no documento, destaco a implementação de uma reforma tributária progressiva, com tributação de grandes fortunas e com perspectiva de gênero; o financiamento adequado e a valorização do SUS [Sistema Único de Saúde], da educação e da ciência e tecnologia; o auxílio financeiro às famílias em vulnerabilidade social; e a reativação das instâncias de participação e controle social. Sabemos o que fazer, não é preciso inventar a roda, e a Agenda 2030 aponta os caminhos que devem ser seguidos para que tenhamos um país verdadeiramente sustentável, mais inclusivo e justo.

 

O V Relatório da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 no Brasil pode ser acessado em português e inglês neste link.


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