O alinhamento do investimento social privado às políticas públicas

Por: GIFE| Convidado| 20/07/2016

Artigo publicado no Censo GIFE 2014. Confira outros artigos e os resultados da pesquisa, aqui.

Por Ana Letícia Silva e Sérgio Andrade

Contexto sobre investimento social privado e políticas públicas

O alinhamento do investimento social privado com políticas públicas é, sem dúvida, uma forte estratégia para implementação da visão de um investimento social com maior impacto, relevância, abrangência e diversidade. Talvez a mais efetiva nesse sentido, se pensarmos em gerar resultados nessas quatro dimensões ao mesmo tempo.

Essa constatação se verifica claramente nas estratégias de atuação dos institutos, fundações e empresas associados ao GIFE respondentes do Censo: 86% afirmam ter algum tipo de alinhamento entre suas iniciativas e as políticas públicas. Esse dado fica ainda mais interessante quando consideramos que hoje, e em todos os níveis da federação, lidamos com um conjunto estruturado de políticas públicas apresentadas, muitas vezes, a partir de estratégias integradas, e se valendo de diversos mecanismos de acompanhamento e avaliação do impacto de sua implementação.

O investimento social privado, nesse cenário, assume um papel relevante como promotor de causas sociais, ambientais e culturais, experimentando elevação de seu potencial de impacto quando realizado de forma articulada com políticas públicas. Observamos em contextos assim avanços de agendas de interesse público, maiores possibilidades de inovação, ampliação de escala e de sua capacidade de articulação com outros atores públicos. Porém, a conjugação de esforços entre investidores sociais e agentes públicos exige, no caso dos primeiros, uma melhor compreensão dos novos desafios e complexidades que condicionam a produção de políticas públicas no Brasil contemporâneo, tanto do ponto de vista do Estado, quanto por parte da sociedade.

Fenômenos como o crescimento da renda, a urbanização crescente, o aumento da escolaridade e maior acesso à informação, acompanhados da elevação dos patamares de bem-estar e de qualidade de vida, geram demandas por serviços públicos mais abrangentes e de qualidade. Cidadãos também esperam maior transparência na gestão pública e espaços mais efetivos de participação e controle social. A expectativa é por um Estado mais responsivo e permeável às reinvindicações organizadas por canais de participação tradicionais, principalmente de democracia representativa, e por aquelas expressas em novas formas de manifestação de vontades coletivas. Por outro lado, isso tem esbarrado insuficiência de mobilização da sociedade para uma participação social qualificada e plural, mas também no entendimento incompleto acerca da dinâmica dos governos e da própria política, refletindo em forte desacreditação, o que afeta também suas instituições. Esse parece ser o mal mais sério e se constitui em uma visível ameaça à democracia.

O setor público enfrenta situações novas além dos costumeiros desafios orçamentários e de capacidade da gestão para implementar políticas. O retorno do planejamento e o fortalecimento de políticas mais estruturadas do ponto de vista federal, nas quais se reconhece maior clareza programática (onde se quer chegar) e maior consistência na execução (adequação entre meios e fins, resultados e indicadores definidos, recursos, contrapartidas e critérios de prestação de contas) têm pressionado estados e municípios exigindo maior desenvolvimento institucional e articulação com outros atores sociais públicos e privados.

Com isso, se tornam desafiadoras também a própria coordenação federativa e a lógica de implementação de políticas de forma descentralizada, contraposta à rigidez característica da administração pública. Este novo quadro de organização da ação pública tem requerido ainda maiores capacidades de diálogo social e de articulação intergovernamental e de coordenação intragovernamental, na medida em que surgem diferentes instâncias de pactuação federativa e arranjos de implementação intersetoriais para lidar com temas complexos com característica multidimensional, como o enfrentamento de desigualdades, por exemplo.

Se a construção de programas em parcerias com instâncias da gestão pública e mesmo o desenvolvimento de estratégias de incidência direta nas políticas públicas é um caminho para o investimento social obter impacto e escala, há que se entender como se dá essa relação e qual o potencial de fortalecimento mútuo. Sabemos que o envolvimento dos projetos, programas, ações e intervenções de fundações e institutos do investimento social privado com políticas públicas é bastante comum, mas assume diferentes intensidades e formatos. Há, de todo modo, uma percepção bastante sólida no setor de que essa relação pode produzir geração de valor para as intervenções e ampliação da abrangência e do impacto das políticas públicas e programas. Investidores sociais privados e gestores de políticas públicas são, porém, atores de origens e lógicas de atuação distintas, também falam línguas e se movimentam em tempos muito diferentes, provocando todo um campo de discussão sobre as dificuldades e entraves ao aprofundamento dessa relação.

 

Os resultados do Censo Gife 2014

Ao reconhecer a abrangência e intensificação das práticas que articulam políticas públicas e investimento social privado, o Censo Gife 2014 aprofundou as perguntas relacionadas a este alinhamento, buscando entender melhor suas características e oferecer elementos para se pensar em estratégias de fortalecimento e qualificação dessa relação.

Entre as gramáticas que caracterizam esse alinhamento encontramos desde a participação efetiva na formulação e mesmo execução de políticas públicas, passando pelo apoio à gestão e também pelo apoio a organizações da sociedade civil que realizam incidência em políticas públicas.

Em relação aos resultados encontrados no Censo, vemos que muitos investidores sociais também se preocupam em orientar seus programas para públicos que já sejam beneficiários formais de políticas públicas (64% dos casos), e um pouco menos da metade deles concebe seus programas usando políticas públicas existentes como referencial (46% dos casos).

Entre os investidores sociais com perfil mais doador de recursos para a execução de programas e projetos por outras organizações, o percentual dos que relacionam sua atuação com políticas públicas é bastante menor (55%) do que os que têm perfil mais executor de seu investimento (93%). Uma possível explicação para esse dado poderia apontar que os investidores sociais com característica de executores têm também maior domínio sobre a forma como esse investimento se articulará com outros atores, ao passo que aqueles com perfil de doadores compartilham essa decisão com as organizações que recebem tais recursos. Porém, seria necessário investigar a ação destas organizações observando se a relação com políticas públicas existe também. Se o resultado indicar que as organizações que recebem doações atuam de forma articulada com políticas públicas, probabilidade concreta, teríamos um panorama mais definido.

Sobre as estratégias de atuação dos investidores sociais quando alinhadas com políticas públicas, a pesquisa possibilitou opções de resposta múltipla. Concluiu que em suas estratégias 42% procuram levar em consideração políticas públicas setoriais para a estruturação dos programas e 50% preferem ações de formação e capacitação de gestores. Dentre as diferentes opções também figuram a produção de conhecimento (30%) e a doação de equipamentos e materiais (21%). Por outro lado, a relação de investidores sociais com temas de participação e controle social revela alguma cautela para tratar destes temas. Veja que apenas 7% dos pesquisados afirmam fazer controle social de políticas públicas. Já a participação em conselhos ou outros espaços de formação de políticas públicas é realidade para 25% dos respondentes. Esse mesmo cuidado soa contraditório se confrontado com outros dados do Censo Gife. Por exemplo, 39% declaram ter a influência na formulação de políticas públicas como uma de suas estratégias. Essa incidência aparece também de forma indireta e é realizada por meio de outras organizações que tem essa finalidade (39%).  Por último, cabe destacar iniciativas que se propõem a intervir diretamente na ação pública. Nesse caso, 30% se dedicam ao apoio à gestão pública e outros 19% preferem a parceria direta na formulação e execução de políticas. Esta frente merece particular atenção em relação aos modelos e concepções adotados nas parcerias, indicando possíveis aprofundamentos do Censo Gife nos próximos anos, juntamente com os temas da incidência apontados  acima.

Outra referência fundamental que acompanha a relação entre investimento social e política pública identificada pela pesquisa são os territórios ou temas priorizados pelos investidores. Dentre os respondentes, 58% procuram influenciar a construção de políticas públicas nos temas/territórios de sua prioridade e 44% concebem seus programas em parceria com instâncias da gestão pública que atuam nos temas/territórios.  Apesar dessa intenção, apenas 23% dos investidores conseguem ver suas metodologias adotadas como políticas públicas e apenas 35% percebem os órgãos governamentais reconhecendo tecnologias sociais desenvolvidas com recursos de origem privada. As reconhecidas diferenças entre os tempos, expectativas e modus operandi surgem aqui. Porém, a solução para o aparente desequilíbrio de expectativas existe. A construção conjunta das ações é requisito fundamental para que as tecnologias criadas fora do ambiente governamental possam ser reconhecidas por este. Conceber e implementar um projeto sob condições controladas e bastante particulares com a expectativa de que se transforme em política pública, ao contrário disto, fará dele um candidato inadequado.

Tal propósito sugere a construção de espaços de maior diálogo, o que requer flexibilidade nos ajustes e pactuações, principalmente, por parte de investidores sociais. Isso pode parecer um pouco contundente, mas torna-se mais aceitável quando entendemos que a cultura pública é ritualística e formal, mediada pelo direito administrativo. Nesta tradição, o que não está expressamente autorizado terá maior dificuldade para ser aceito. Além disso, as orientações para a implementação de políticas são determinadas por grandes marcos referenciais que orientam o desenvolvimento das políticas. O temor à responsabilização e aos resultados incertos fará o gestor preferir o caminho conhecido. Por último, há pelo menos dois tipos de resistência na adoção de possíveis inovações: o apego a soluções reconhecidamente superadas, porém, com resultados conhecidos e a criação de arranjos de implementação que não levem em conta estratégias de incentivo aos servidores de nível operacional. Em qualquer desses casos, a construção conjunta e dialogada tanto de politicas públicas quanto de metodologias e tecnologias sociais pode levar a resultados mais efetivos, confortáveis, adequados e sustentáveis.

 

O grande desafio da articulação multi-atores

Olhando para aspectos mais gerais desses arranjos, das principais motivações dos investidores sociais para uma atuação mais próxima das políticas públicas encontramos a possibilidade de ampliação do alcance dos projetos e das políticas. Grande parte das parcerias se forma no nível municipal. Mesmo que não se conheça bem o que pensam os governos sobre os problemas contidos nessas parcerias, para os parceiros privados os desafios normalmente relatados são: a) o excesso de burocracia, o que interferiria na agilidade de tomada de decisão; b) a insuficiência da capacidade instalada nas prefeituras para planejar e implementar as políticas; c) a dificuldade dos entes públicos municipais para acessar os recursos disponíveis para determinadas políticas e d) as descontinuidades nas administrações, causadoras de retrocessos em termos de diálogo e para o desenvolvimento dos projetos, gerando muitos desperdícios. Essas percepções são coerentes com alguns padrões de atuação que pudemos observar nos dados do Censo Gife, no qual as principais estratégias de atuação dos investidores sociais estão associadas à capacitação dos gestores públicos e ao apoio à gestão pública.

Há aqui um reconhecimento importante sobre os papéis de cada ator, ou seja, quem formula e executa políticas públicas são os órgãos governamentais e estes precisam ter capacidade institucional para fazê-lo. Fortalecer essa capacidade é reconhecer as diferentes responsabilidades relacionadas à implementação dessas políticas. A construção de capacidades, porém, é um esforço continuado e não se faz com a resolução de problemas pontuais de um município, por exemplo. Afinal, por mais que o parceiro governamental veja atendida uma demanda circunstancial, caso não desenvolva internamente capacidades de resposta, o mesmo problema voltará a se manifestar no futuro. Neste cenário, não há garantias de que haverá apoio para a solução do problema. Contudo, por questões de legitimidade e de resultado, o excesso de intervenção do investimento social privado sobre as políticas públicas deve ser evitado a qualquer preço.

O panorama não exaustivo dos desafios colocados para a relação entre o investimento social e as políticas públicas nos estimula a refletir sobre quais seriam vetores que poderiam funcionar como desatadores desses nós ou minimizar algumas contradições. A perspectiva orientadora é a de se alcançar, com o avanço desse alinhamento, um investimento social mais estruturante, mais capaz de contribuir para a transformação da realidade e, ao mesmo tempo, ampliar a capacidade de diálogo e implementação das políticas públicas. A palavra chave e mobilizadora aqui é articulação, entendendo-a como um processo de estabelecimento de conexões mais harmoniosas e equilibradas, que também reflitam as movimentações típicas de uma relação que é política e não apenas técnica. Essa articulação pressupõe diálogo e precisa ser ativa e ativadora, vai muito além do alinhamento, exigindo também mais esforços.

A consideração desses vetores tem a capacidade de induzir movimentos e arranjos de colaboração mais virtuosos, ou seja, aqueles em que prevalecem as relações de ganha-ganha, e são oportunos para promover e qualificar essa articulação:

  1. Participação, representação e controle social. Proporcionam maior aderência das políticas públicas ao território, ampliando também as possibilidades de o investimento social ser mais assertivo e estar em diálogo com as demandas reais.
  2. Planejamento e visão de longo prazo para estruturação das políticas públicas e do investimento social. Aqui é fundamental aproveitar o momento de chegadas das empresas nos territórios, planejando junto para alcançar impactos sustentáveis. Contudo, podem ser resgatados ou introduzidos a qualquer tempo.
  3. Ampliação da capacidade de planejamento, formulação e execução de políticas públicas pelos entes públicos. Fundamental para que o papel intrínseco do governo seja desempenhado.
  4. Disposição ao diálogo multi-atores. Leva a uma maior compreensão mútua dos pontos de vista e responsabilidades. Significa ouvir e não apenas escutar. Requer capacidade de empatia e permite alinhamento de expectativas e propósitos. Favorece possíveis pactuações sobre visões de desenvolvimento e agendas comuns.
  5. Transparência, compartilhamento de informação e conhecimento. Base da confiança, pois diminui a assimetria de informação. Favorece a participação informada.
  6. Diálogo com marcos referenciais e construções institucionais já existentes. Políticas são incrementais.
  7. Fortalecimento das institucionalidades locais. As instituições são a chave do desenvolvimento.
  8. Desenvolvimento de capacidades locais para participação e qualificação dos espaços públicos. Diferenças de capital social explicam maior ou menor desenvolvimento.

Mesmo que estes pontos careçam de contraponto e até de reflexão mais aprofundada, cabe reforçar nossa aposta na capacidade de articulação entre os atores. Falamos aqui de parceria, de articulação, e isso é movimento contínuo, constante, sempre desafiador do alcance que pode ter um trabalho que envolve responsabilidades compartilhadas pelo e para o desenvolvimento sustentável. Não temos dúvida de que a articulação do investimento social privado com políticas públicas vem se ampliando e aprofundando seus temas e formas e, com isso, ficando cada vez mais complexa. Querer abordar essa complexidade de forma séria e propositiva é também desenvolver alternativas de parcerias entre os setores público e privado, reforçando o sentido público dos processos e resultados envolvidos nessas relações e proposições.

 

Ana Letícia Silva é graduada em Economia e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Foi gerente de Articulação no GIFE, responsável pelas agendas estratégicas e atualmente é diretora da Agenda Pública.

Sergio Andrade é mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV/EAESP), Cientista Social pela USP e especialista em Negociações Internacionais pela Unesp. Tem quinze anos de experiência na área governamental e no setor privado. Atualmente é diretor executivo da Agenda Pública e da Escola de Políticas Públicas.

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