O dilema da prestação de contas

Por: GIFE| Notícias| 05/03/2007

Talvez o termo atualmente mais usado nas discussões do setor sem fins lucrativos seja “”prestação de contas””. Aparece em títulos de conferências, artigos na imprensa sobre questões do terceiro setor, publicações acadêmicas e depoimentos governamentais. Por que esse interesse repentino?

Várias forças sociais, algumas explícitas outras sutis, parecem ter convergido para levar a questão da prestação de contas do terceiro setor para o centro das atenções, colocando o setor em uma posição defensiva. Acredito que existem riscos reais aqui e dar a resposta certa é essencial para o futuro do setor.

Este sempre foi um assunto controverso. A prestação de contas estava o cerne do Estatuto Elisabetano dos Usos em Caridade de 1601, que estabelecia o arcabouço legal básico para as atividades de caridade na Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos. As disputas sobre prestação de contas sempre giraram em torno de dois princípios opostos:
1) a liberdade das pessoas controlarem os recursos dedicados a propósitos sociais como julgam adequado;
2) a responsabilidade das autoridades públicas de garantir que esses recursos sejam usados adequadamente segundo seu julgamento para os fins públicos pretendidos.

Nos últimos anos, as forças representadas por esses dois princípios mudaram. Por um lado, houve um crescimento drástico no tamanho e no poder do setor sem fins lucrativos (acionado, em parte, pelo grande aumento da filantropia privada). Por outro lado, houve uma queda significativa da confiança do público em todas as instituições sociais.

Os recursos ampliados levaram a mais casos de malversação de fundos, enquanto a queda de confiança levou a um mais escrutínio e regulamentação pelo governo. O resultado é uma potencial “”tempestade”” de forças que levam ao aumento da atividade reguladora do governo que ameaça solapar a autonomia e a criatividade, essenciais ao mundo sem fins lucrativos.

Um exemplo do perigo é dado pela recente experiência da Rádio Pública de Wisconsin*. Quando a rede de Wisconsin resolveu substituir um programa produzido localmente sobre conserto de automóveis por um programa nacional sindicalizado, alguns ouvintes descontentes acusaram a rede de não ter transparência e reclamaram com a câmara legislativa estadual.

Como a câmera legislativa fornece fundos para a rede, designou dois auditores para inspecionar os livros e ameaçou tomar outras medidas, pressionando-os de tal forma que eles se sentiram obrigados a mudar a decisão sobre a programação. Claramente este é a distorção política da prestação de contas.

Então, como evitar essa ′tempestade′? A solução deve estar em uma maior auto-regulamentação do setor, mas isso apresenta seus próprios desafios. Atualmente, faço parte do Comitê Consultor Independente do Setor em Auto-regulamentação, e isso me mostrou de perto a dificuldade de criar um sistema que possa efetivamente abranger a ampla diversidade de organizações que compõem o setor, incluindo hospitais, universidades, orquestras de câmera, grupos de direitos humanos, estações de rádio, grupos de defesa dos animais e abrigos para sem-tetos.

Um exemplo da dificuldade de desenvolver padrões universais é a aparentemente inócua questão do tamanho do conselho. Pressupondo-se que todas as instituições sem fins lucrativos devem ter conselhos, deve haver um tamanho mínimo de, digamos, três ou cinco membros? Eles devem ser “”independentes””, ou sejam não ter nenhuma relação nem serem indicados pelos funcionários?

Isso pode criar problemas para pequenas fundações familiares ou outras pequenas organizações. O Comitê tem lutado com centenas de perguntas desse tipo, tentando desenvolver diretrizes que promovam o bom comportamento, ao mesmo tempo que não sobrecarreguem as instituições sem fins lucrativos com regras onerosas desnecessárias.

Finalmente, acredito que o Comitê produzirá um conjunto de padrões que funcione bem para a maioria, se não para todas as organizações sem fins lucrativos. Esses padrões e os correspondentes meios de supervisão, se forem bem concebidos, bem administrados e transmitidos ao público e aos órgãos governamentais com vigor, podem evitar a necessidade de mais ação governamental.

Ao mesmo tempo, o setor deve resistir aos esforços que parecem plausíveis, mas que, na verdade, são errôneos, de aplicar exigências de prestação de contas externas — seja de fontes governamentais ou sem fins lucrativos – à substância de seu trabalho. As instituições sem fins lucrativos devem permanecer livres para estabelecer suas respectivas missões e seus próprios métodos de avaliar se elas foram cumpridas.

Nisso reside a qualidade intrínseca do trabalho sem fins lucrativos: a busca da atuação privada (definida privadamente) em favor do bem comum. O excesso de prestação de contas aplicada aos resultados de desempenho, seja imposta por uma agência governamental ou por um órgão de credenciamento sem fins lucrativos, ameaçaria o objetivo maior dessa busca.

* Embora descritas como “”públicas”” nos EUA, essas estações de rádio são realmente entidades não-governamentais e não-comerciais que operam como organizações sem fins lucrativos.

Bruce Sievers é Professor Visitante da Universidade de Stanford e ex- Diretor Executivo do Walter and Elise Haas Fund. Email [email protected]

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