O futuro da filantropia no Brasil

Por: GIFE| Notícias| 09/01/2006

Criando um setor mais diversificado

CANDACE (′CINDY′) LESSA
Diretora do Programa Brasil do Instituto Synergos

FERNANDO ROSSETTI
Secretário geral do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

Ocorreram grandes transformações na filantropia brasileira – ou investimento social privado, como recentemente passou a ser chamada a filantropia no Brasil – desde a democratização em meados dos anos 80. Talvez estejamos a caminho do tipo de filantropia que gostaríamos de ver em 2025, aquela com capacidade de promover mudanças transformadoras, mas ainda não chegamos lá. Nesse percurso, precisaremos ir além da atual prevalência corporativa na filantropia brasileira e criar um ambiente jurídico e fiscal favorável. Será vital liberar o potencial da filantropia individual e familiar se quisermos encontrar os novos recursos necessários.

Olhando para o futuro em 2025

Olhando para o futuro em 2025, vemos vários tipos de organizações filantrópicas, operacionais e repassadoras de recursos (grantmaking) coexistindo, aprendendo umas com as outras em redes nacionais e internacionais do setor e participando de debates públicos e fóruns sociais. As organizações filantrópicas/de investimento social gozam de recursos previsíveis de longo prazo para mantê-las. Elas têm maior capacidade de mobilizar e desembolsar recursos locais. Existe uma predominância de investimento das organizações repassadoras de recursos em organizações que promovem mudanças sociais estratégicas em oposição à atual prevalência de organizações que operam seus próprios programas sociais.

As organizações e as redes filantrópicas/de investimento social mantêm-se atentas para detectar e identificar os principais agentes de mudança social. A sua sensibilidade deve-se ao conjunto diversificado de partícipes envolvidos na prática filantrópica: doadores, funcionários, tomadores de recursos (organizações populares, empreendedores sociais), movimentos sociais e parceiros de alianças e pactos intersetoriais.

O conceito de filantropia/investimento social privado perdeu a imagem negativa que costumava ter. Ele é visto claramente como um setor específico da sociedade civil, diferente da responsabilidade social corporativa e das ONGs do movimento social. Existem muitos tipos diferentes de organizações, que refletem diferentes gêneses, partícipes e valores. A maior estabilidade e longevidade das organizações do movimento social resultam não apenas em maior capacidade de investimento, mas também em maior flexibilidade, mais ousadia e inovação ao investir. Finalmente, o engajamento de organizações filantrópicas em parcerias, alianças e pactos nacionais dão a elas uma visão mais ampla de seu papel na sociedade, além de assegurar o seu compromisso mais efetivo com o enfrentamento dos desafios com que o país se depara.

Olhando para 20 anos atrás

A filantropia no Brasil experimentou um desenvolvimento extraordinário desde o fim da ditadura militar em 1985. Isso promoveu o surgimento de novos agentes sociais, inclusive homens e mulheres de negócios que começaram a se engajar em áreas tão diversas quando meio ambiente e diretos das crianças e dos adolescentes.

Mas, foi apenas por volta de 1990 que novas organizações sociais, culturais e ambientais investidoras começaram a surgir, e um grupo de cerca de vinte pessoas envolvidas nessa área começou a se reunir regularmente para trocar informações e experiências, inicialmente com o apoio da Fundação W K Kellogg e, posteriormente, da Câmara de Comércio Americana.

Em 1991, o Brasil enfrentou um escândalo de corrupção que levou à cassação do mandato do então presidente. A Primeira Dama era responsável pela administração de uma das principais organizações filantrópicas, que também foi envolvida na corrupção. Isso fez com que o conceito de filantropia ganhasse uma conotação negativa junto à maioria da sociedade brasileira.

Em 1995, o grupo que começara a ser reunir informalmente no início da década de 1990 decidiu criar o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE).[1] Seu primeiro documento foi um código de ética, o que revelava sua necessidade de se livrar da imagem negativa que a filantropia clássica havia adquirido. No fim da década, o “”investimento social privado”” tinha sido identificado como o conceito central em torno do qual se reuniam os membros do GIFE. Hoje, isso se define como “”a doação voluntária de recursos privados, de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais, educacionais, ambientais e culturais de interesse público””.

Os desafios enfrentados pelo Brasil significam que existe uma necessidade enorme de fortalecer a capacidade transformadora do setor sem fins lucrativos e, especificamente, do setor filantrópico. O Brasil é o maior, mais rico e mais populoso país da América Latina, com uma população de 175 milhões de habitantes e um produto nacional bruto de US$ 452,4 bilhões. Mas é também um lugar com uma distribuição de renda extremamente desigual, em que 10 por cento da população possui 50 por cento da renda, e 50 por cento dos mais pobres possuem apenas 10 por cento da renda. Esse desafio central recai sobre toda a sociedade, mas talvez mais ainda sobre o setor filantrópico por sua capacidade de mobilizar agentes de transformação e de patrocinar a transformação.

A história da filantropia no Brasil

A história da filantropia no Brasil está estreitamente ligada à Igreja Católica. Isso data do período colonial quando sociedades católicas laicas, as confrarias, fundaram organizações voluntárias, como hospitais, orfanatos e asilos, patrocinados por fundos patrimoniais e doações. Por volta da época da Independência do Brasil de Portugal, nos fins do século XIX, surgiram novos tipos de organizações voluntárias, de prestação de serviço e ajuda mútua. Algumas eram associações profissionais, científicas, além de organizações e redes trabalhistas.

A natureza política e o poder cada vez maior dessas organizações levou a um maior controle do estado. Nos anos de 1930, o controle e a participação do estado nas atividades sem fins lucrativos aumentou através de leis do trabalho, regulamentações e subsídios, e a sua independência foi ainda mais prejudicada pela ditadura militar instalada no Brasil em 1964. O resultante abuso de poder e violação dos direitos humanos pelos militares provocou a reação da Igreja Católica. Tanto a CNBB quanto os teólogos da libertação, mais radicais, criaram uma rede de apoio aos cidadãos e incentivaram as associações civis. Foi esse fenômeno que criou a base tanto para o estado democrático quando para o desenvolvimento do assim chamado terceiro setor moderno, inclusive das organizações filantrópicas.[2] Vários eventos da década de 1990 contribuíram para o desenvolvimento do setor. Em 1992, A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio, funcionou como catalisadora para a consolidação de redes como a ABONG[3] – a Associação Brasileira de ONGs, enquanto a Campanha Nacional de Combate à Fome marcou o primeiro esforço de coordenação e integração de esforços da sociedade civil por uma causa pública. A abertura da economia para o mercado mundial criou um setor empresarial mais dinâmico, e a fundação do Ethos foi fundamental para mudar o papel do setor na nova ordem democrática. O Brasil tem um dos mais dinâmicos movimentos de responsabilidade social corporativa do mundo e a sua rápida disseminação no país foi o que mais influenciou o ambiente filantrópico na última década.

Outro fator importante na “”explosão do terceiro setor”” foi o controle da inflação. Por quase duas décadas, os altos níveis de inflação tinham prejudicado o desenvolvimento econômico e, com ele, a capacidade de doar. Quando a inflação caiu para abaixo de 10 por cento ao ano, tornou-se mais viável planejar os negócios, e a filantropia, assim como outras atividades sem fins lucrativos, floresceram. O setor sem fins lucrativos no Brasil cresceu duas vezes e meia entre 1996 e 2002, com 275.000 organizações gerando aproximadamente 1,5 milhões de empregos.[4] Esse número inclua todos os tipos de organizações em fins lucrativos, e o GIFE estima que existam hoje aproximadamente 300 organizações dedicadas ao investimento social privado.

Predominância do setor empresarial

Uma das características essenciais do setor filantrópico atual do Brasil, e uma das barreiras ao seu desenvolvimento, é a grande influência das organizações originárias do setor empresarial, a maioria delas fundada depois de 1990. Elas canalizam a maioria de seus recursos para programas desenhados e operados internamente. Os recursos para a atividade filantrópica vêm da empresa-mãe e dependem dos seus lucros anuais. Muitas vezes, as organizações de origem empresarial buscam recursos de outras empresas e de fundações internacionais para seus programas e atividades, e portanto, na verdade, competem pelos recursos existentes. Pouquíssimas fundações têm fundos patrimoniais e poucas repassam recursos.[5]

Embora a influência dessas organizações de origem empresarial tenha trazido para o setor sem fins lucrativos em geral a dinâmica da administração empresarial e tenha sido essencial para a mudança do paradigma de filantropia como caridade, feita pela Igreja-Estado, de cima para baixo, ela inoculou no setor filantrópico/de investimento social privado um forte ethos empresarial, que freqüentemente significa que a fronteira entre investimento social privado e responsabilidade social corporativa não é claramente definida. Isso levou o setor filantrópico a não ter consciência de si mesmo como setor e à não compreensão desses dois conceitos pela sociedade.

Além disso, a despeito da crescente sofisticação das estratégias de mudança implementadas por essas organizações, muito pouco dos recursos por elas investidos chegam aos principais agentes de mudança, que ainda precisam buscar financiamento em outras fontes. De acordo com a ABONG, apenas 4,9 por cento dos seus membros receberam recursos de organizações de origem empresarial.

Restrições às doações individuais

Enquanto são concedidos benefícios fiscais a grandes empresas para investimento na área social, cultural e outras, (embora a ética e a prática da responsabilidade social corporativa sejam os maiores incentivos), praticamente não existem incentivos fiscais para a filantropia individual, familiar ou de uma comunidade. Mesmo assim, a multiplicidade de organizações com receitas relevantes oriundas de programas de associados e o percentual da população envolvido no voluntariado deixam claro que as pessoas no Brasil fazem doações. Portanto, parece pelo menos viável sugerir que tais doações aumentariam se houvesse incentivos fiscais.

A falta de incentivos fiscais também significa que não há necessidade de declarar as doações para o imposto de renda e, portanto, não existe uma maneira oficial de registrar a filantropia individual. Assim sendo, embora a motivação principal da filantropia individual possa não ser os incentivos fiscais, esses poderiam produzir informações que nos ajudariam a entender o comportamento filantrópico individual e, dessa maneira, influenciar o desenvolvimento do setor.

O ambiente jurídico

Um impedimento adicional ao desenvolvimento do investimento social privado é o fato do ambiente fiscal e jurídico para a filantropia não ter acompanhado o ritmo das grandes transformações da sociedade civil e do setor empresarial do Brasil nas últimas duas décadas. Existem apenas dois tipos de estrutura fiscal possíveis para as organizações sem fins lucrativos – associações e fundações.

As associações são regidas por assembléias gerais que se reuniram em torno de um objetivo específico, e as fundações são regidas por conselhos, cuja missão principal é perpetuar os fundos ou outros ativos a elas doados. Enquanto as fundações estão sujeitas ao controle do governo, as associações só precisam apresentar uma declaração anual de isenção de impostos. Pela simplicidade e porque muitas empresas não estão preparadas para imobilizar ativos para suas atividades de investimento social privado, a maior parte das novas organizações do Brasil adotaram a estrutura fiscal de associação. Como não foi desenhada para o investimento social privado, a estrutura de associação pode não atender às necessidades específicas do setor e pode, na verdade, vir a atrapalhar o seu desenvolvimento.

Conclusão

O ambiente filantrópico no Brasil ainda está se adaptando ao novo papel da sociedade civil na transformação. Embora a filantropia/investimento social privado tenha superado sua identidade tradicional vinculada ao Estado, sua natureza e cultura ainda não estão completamente definidas e entendidas. É necessária mais pesquisa para esclarecer a distinção entre filantropia/investimento social privado e responsabilidade social corporativa. Essa distinção não apenas definirá mais claramente as necessidades e o rumo do setor, mas também dará mais visibilidade a algumas das excelentes tecnologias sociais que foram desenvolvidas pelas organizações de origem empresarial. É importante também que as organizações filantrópicas/de investimento social desenvolvam estruturas mais sustentáveis – através de fundos patrimoniais, fideicomissos, etc. – para garantir recursos a longo prazo e, assim, um maior impacto para os seus programas e atividades.

É importante também explorar o potencial da filantropia individual e familiar. Embora existam indicações claras de que os brasileiros investem em empreendimentos sociais, é necessária uma maior compreensão da dinâmica das doações individuais e familiares, bem como o estímulo ao fenômeno e sua modernização. O recente surgimento de novas organizações e novos fundos de origem familiar, além de dois fundos novos de justiça social que precisarão de mais apoio do setor empresarial é um avanço promissor.

O ambiente fiscal e jurídico no Brasil precisa ser desenvolvido. É necessário desenvolver novos tipos de estrutura organizacional sem fins lucrativos que possam atender melhor às características das organizações a que se destinam: repassadoras de recursos (grantmakers), fundações comunitárias, fundos de justiça social e até mesmo organizações operacionais de origem empresarial. Incentivos a doações precisam ser criados para estimular a doação individual e familiar. Várias organizações e um influxo de novos tipos de recursos para o setor vão propiciar a diversidade e fortalecer o futuro da filantropia no Brasil.

As fundações e as agências de desenvolvimento internacionais podem ter uma papel em promover a filantropia no Brasil como estratégia de mudança social, tanto através de investimentos quanto do diálogo e do intercâmbio internacionais. O papel do GIFE como aglutinador, representante e catalisador foi e continuará a ser chave para o desenvolvimento do setor.

NOTAS
1 Grupo de Institutos, Fundações e Empresas. O GIFE é a mais importante rede de associados de investimento social privado da América Latina, compreendendo mais de 90 organizações que praticam o investimento social privado no Brasil. Este ano, os membros do GIFE investiram mais de US$ 500 milhões, 87 por cento dos quais em programas educacionais. Visite www.gife.org.br
2 Leilah Landim (1993) Defining the Non profit Sector in Brazil. Trabalho do Johns Hopkins Comparative Non Profit Sector Project, No 9, editado por L Salamon and H K Anheier. Baltimore, EUA: Johns Hopkins Institute for Policy Studies.
3 Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais.
4 As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil (2002), produzido pelo IBGE, GIFE, ABONG e IPEA. OBSERVE OS ACENTOS NESTE TÍTULO.
5 Ed. Petrópolis (2001) Recursos Privados para fins públicos: As grantmakers brasileiras São Paulo, Brasil: GIFE.

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