O impacto da fome na infância e a garantia de direitos
Por: Fundação FEAC| Notícias| 27/03/2023Estudos mostram que crianças e adolescentes são hoje os indivíduos mais atingidos pela insegurança alimentar
Por Stelle Daphine Goso*
Nos últimos anos, a fome voltou ao cenário nacional em patamares alarmantes, agravada pela crise político-econômica e pela pandemia de Covid-19. Estudos mostram que crianças e adolescentes são hoje os indivíduos mais atingidos pela insegurança alimentar. De acordo com a pesquisa As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na adolescência no Brasil, divulgada pelo Unicef em fevereiro, entre 2020 e 2021 o número de crianças e adolescentes privados de condições necessárias para uma alimentação adequada passou de 9,8 para 13,7 milhões – um aumento de 3,9 milhões!
Outro levantamento, divulgado pelo II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Covid-19, em 2022, da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), revela que, no Brasil, menos de 30% das crianças entre 2 e 9 anos fazem três refeições por dia.
A segurança alimentar é um direito humano essencial previsto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. No Brasil, só em 2010 uma emenda constitucional conferiu status de direito social à alimentação, incluindo-a no texto do artigo 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”.
Sem vencer a fome, nenhum outro direito estará assegurado
Apesar de tantos avanços na luta pela garantia de proteção integral à infância e adolescência, a verdade é que se não vencermos o desafio da fome, garantindo alimentação adequada, de qualidade e em quantidade suficiente para essa população, nenhum dos outros direitos conquistados ao longo dessas décadas estará assegurado.
Por isso, os esforços de combate à insegurança alimentar são prioritários e emergenciais.
É fundamental sustentar o olhar da perspectiva da criança e do direito que ela tem, hoje, a uma alimentação adequada. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) professam esse entendimento de que o acesso aos alimentos deve ser garantido pela ótica do direito humano.
O impacto da insegurança alimentar na saúde das crianças
Não prover o básico configura uma violação de direitos uma vez que a boa nutrição é condição essencial para o desenvolvimento cerebral e para garantir que o corpo da criança crie as bases fisiológicas para continuar seu processo de desenvolvimento.
A falta de alimentos em quantidade ou qualidade necessária traz impactos para a saúde das crianças: prejuízos no desenvolvimento físico, motor, mental e cognitivo, problemas de memória e raciocínio e atrasos no crescimento previsto para cada idade.
Insegurança alimentar não é só a falta de comida, mas também a substituição de itens ricos em nutrientes e vitaminas, por alimentos mais baratos, que, muitas vezes, trazem quantidades exageradas de farinhas e açúcares.
Com todo o avanço tecnológico e científico que se tem hoje, não há nada que justifique a persistência trágica da fome. O Brasil é atualmente um dos maiores produtores de alimentos do mundo. O que impede o acesso a alimentos de qualidade a todos, sobretudo à população em situação de maior vulnerabilidade social, é a enorme injustiça social. Dispor de uma alimentação de qualidade se tornou uma questão de renda.
Poder público e terceiro setor contra fome
Esse cenário comprova a importância de programas sociais de transferência de renda, como o que a prefeitura de Campinas iniciou recentemente – o Renda Campinas, com distribuição de até R$ 210 para famílias em vulnerabilidades para garantir as necessidades básicas.
Assim como as ações do terceiro setor, como a 4ª edição da campanha Mobiliza Campinas, iniciativa da Fundação FEAC junto a uma rede de mais de 100 organizações da sociedade civil, que foi lançada em fevereiro, e distribuirá R$ 450, em três parcelas de R$ 150, via cartões-alimentação.
Dessa forma, as famílias têm a oportunidade de comprar itens que não recebem em uma cesta básica (que não inclui alimentos perecíveis), e são tão importantes para as crianças, como frutas, verduras e legumes. O Mobiliza Campinas deverá beneficiar 4,5 mil famílias em situação de vulnerabilidade de todas as regiões do município.
O terceiro setor tem um papel importante no combate à insegurança alimentar já que está muito presente nos territórios há décadas. É uma tradição de Campinas, até por conta de tantas epidemias que já aconteceram na região, ter um terceiro setor muito ativo e abrangente. As organizações da sociedade civil são peças vitais para identificar crianças e adolescentes em risco, apoiar o acesso aos direitos, às políticas de inclusão, de transferência de renda, aos cuidados básicos de saúde e o acesso regular à escola.
Uma ação emergencial, seja via governo estadual, federal ou terceiro setor, é importante para momentos de crise. Isso é diferente de se praticar sempre uma política de distribuição de alimentos. Naturalmente, todos gostariam que essa necessidade não existisse mais. Como ela persiste, agora é hora de considerar a realidade concreta dessas famílias e prover a sua subsistência para, assim, poder garantir um futuro mais justo às crianças e adolescentes, que são as maiores vítimas da insegurança alimentar.
Desnutrição de crianças no Brasil é a maior em 13 anos
- Entre 2018 e 2022, o número de hospitalizações/dia de bebês até 1 ano por desnutrição cresceu de 128 para 172 (a cada 100 mil nascidos vivos). Até 2015, era inferior a 80 por dia.
- Os domicílios onde moram crianças menores de 10 anos possuem o maior índice de insegurança alimentar grave ou moderada. Os percentuais mais altos estão no Nordeste, com 51,9% e 49%, respectivamente.
- De acordo com o relatório Situação mundial da infância 2019: crianças, alimentação e nutrição, duas em cada três crianças entre 6 meses e 2 anos de idade, no mundo, não recebem alimentos necessários para o crescimento adequado.
- A subnutrição prejudica o desenvolvimento cerebral, compromete a aprendizagem, aumenta o risco de baixa imunidade, doenças e morte.
Fonte: Observa Infância, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e Unicef
*Stelle Daphine Goso é coordenadora do Programa Infância em Foco da Fundação FEAC. É pedagoga formada pela Unicamp, atuante na defesa dos direitos das crianças e da promoção do pleno desenvolvimento infantil com foco na criança em situação de vulnerabilidade.