O que o poder tem a ver com isso?

Por: GIFE| Notícias| 16/10/2013

*Linda Guinee e Barry Knight

Há alguns anos, Linda pesquisou e escreveu uma tese de mestrado sobre a dinâmica de poder na elaboração e facilitação do processo colaborativo. Sua premissa foi que, a menos que as dinâmicas do poder sejam entendidas e abordadas, pessoas e organizações bem intencionadas inconscientemente tenderão a reforçar o status quo. Podemos dizer o mesmo da filantropia. Se na filantropia nós quisermos ser sérios em relação a mudar como as coisas são, precisamos lidar com as questões de poder.

Uma coisa que fez Linda acordar duas da manhã – um daqueles momentos “eureca”- foi perceber que, embora a literatura sobre conflito abunde em discussões sobre dinâmicas de poder, a literatura de outras áreas quase nunca fala sobre poder. Só havia duas ou três referências a poder na pilha de literatura no campo de facilitação de grupo, fazendo referência apenas ao poder do chefe em uma organização. O mesmo acontece com a filantropia: o poder raramente é discutido ou considerado. Porém, o poder é um elemento central para a colaboração filantrópica.

Afinal, o que é o poder?
A primeira pergunta é: o que é o poder? Uma das formulações mais simples e eficientes vem do psicólogo feminista Jean Baker Miller que define poder como “a capacidade de produzir uma mudança”.

Mas uma pesquisa mais profunda revela uma complexidade difícil de perceber. Há muitos livros e artigos sobre o que é o poder, de onde vem e como funciona. Segundo os conceitos mais antigos, o poder é a habilidade de forçar as pessoas a fazerem algo que não fariam se não fossem forçadas. Essa é uma definição “coerciva” de poder, que permanece na raiz de nosso vernáculo comum.

No entanto, a literatura mudou muito e passou a descrever o poder como uma capacidade de autodesenvolvimento e não um bem fixo ou uma posse que pode ser dividida, compartilhada, transferida ou conferida. A literatura descreve o poder como algo desenvolvido entre as pessoas, mais do que como a posse de um indivíduo. Nesse modelo, o poder é constantemente reconstruído na relação entre as pessoas. Na década de 1920, Mary Parker Follett escreveu que “o poder não é uma coisa preexistente que pode ser entregue a alguém ou tirada de alguém”. Forjando o termo “liderança transformacional” ela enfatizou a importância do “poder com” em oposição ao “poder sobre” na produção da mudança positiva. [1]

Embora o modelo “poder com” tenha vingado, nossa língua não mudou. Nós falamos de “compartilhar” o poder (como se fosse algo que eu possuo e posso dar um pedaço a você) e não de “construir” o poder (algo que talvez eu tenha, mas também posso construir). O vernáculo comum inclui “dividir o poder”, “dar poder”, “assumir o poder” e “construir o poder”. Todas essas expressões, exceto a última, presumem que o poder seja um bem fixo. E essa linguagem influencia como nos relacionamos uns com os outros e como vemos a possibilidade de mudança. Segundo Elizabeth Janeway, falar sobre poder como posse de algumas pessoas pode ajudar a manter o status quo, fazendo com que pareça impossível desafiar aqueles que são descritos como poderosos, ao invés de mostrar que o poder funciona através do consentimento dos que são governados.

Quais tipos de poder que existem?
O poder, para citar o clichê, não existe no vácuo. É necessário um contexto. A literatura revela diferentes “bases” e “tipos” de poder. Alguns dos mais importantes para a filantropia são:
• Poder de recompensa – a capacidade de recompensar a outra parte pela realização.
• Poder coercivo – a capacidade de punir a outra parte se ela não cumprir.
• Poder legitimo ou normativo – que vem das normas ou valores aceitos pelo grupo, comunidade ou sociedade que, no geral, são vistos como “legítimos”.
• Poder referente – que vem de se identificar com uma pessoa ou grupo (fulano e beltrano ganham poder por serem amigos de X ou um membro do grupo Y).
• Poder de expertise – que vem da percepção que a pessoa ou o grupo tem conhecimento.
• Poder de pauta – com base em quem monta a agenda e determina quais informações serão compartilhadas, quais tópicos serão discutidos, como a questão será abordada e quem será envolvido nas discussões e nas decisões.

E as fundações e o poder?
Quando pensamos em filantropia, que tem por essência usar a riqueza privada para o benefício público, muitas dessas divagações sobre poder são essenciais. A filantropia tem um grande potencial de criar as condições para ajudar os outros a construírem poder.

Então, o que sabemos sobre como a filantropia funciona com o poder? Em uma tentativa de responder a essa pergunta, nós analisamos novamente os dados de uma pesquisa sobre estratégias de doação, realizada por Ávila Kilmurray e Barry Knight, que foi respondida por 54 fundações de 22 países. A pesquisa cobriu diversas questões sobre como as fundações trabalham, inclusive como selecionam prioridades, os critérios que usam para selecionar os beneficiários, outros tipos de apoio oferecidos, papel dos funcionários e das diretorias, avaliação de riscos, avaliação de impacto e outras questões práticas envolvidas na administração da fundação.

Ao analisar os dados sobre as relações entre as fundações e seus doadores, descobrimos que essas fundações se encaixam em dois grupos, que poderiam ser categorizados como os tipos “poder sobre” e “poder com”. Por exemplo, ao classificar a importância de diversos critérios para selecionar os beneficiários, o tipo “poder sobre” enfatizou a importância de um registro comprovado, grande capacidade organizacional, uma clara teoria de mudança e a habilidade de gerar produtos. O tipo “poder com” enfatizou a importância de uma abordagem participativa, conexão com a base e abordagens inovadoras, deixando de lado a teoria de mudança.

Os dois grupos enfatizaram a importância da “parceria” com seus beneficiários, mas isso tem significados muito diferentes para os dois grupos. O que claramente os divide é o “poder da pauta”: quem define a agenda. Para o grupo “poder sobre” a fundação detém o “poder da pauta”. Um diretor de uma fundação deste grupo observou: “nós temos objetivos específicos de mudança política, então identificamos parceiros e pedimos a eles que trabalhem conosco quando eles se encaixam no que desejamos realizar”. Outra fundação observou: “nós mesmos pesquisamos para identificar organizações potencialmente boas, já que temos especialistas em todas as áreas do programa”.

Para o grupo “poder com”, as parcerias são muito diferentes. Um diretor da fundação deste grupo observou: “em um programa as mulheres basicamente se recusavam a tocar nosso plano adiante, então deixamos que elas liderassem e a seguimos. Elas estavam certas e conseguiram. Nós fizemos uma diferença deixando que elas liderassem e ficando com elas, não limitando nosso envolvimento ou atividades a uma abordagem programada”. Outra fundação desse grupo disse: “ao invés de contar com uma teoria de mudança, nós preferimos confiar na população local – eles geralmente sabem mais”. Já outra comentou: “geralmente precisamos construir a capacidade, gerar inovações, fortalecer formas de trabalhar com as bases, etc. Em outras palavras, os beneficiários talvez não tenham todas as características que buscamos, mas nós os apoiamos para que se tornem mais efetivos”.

A diferença entre os dois grupos também ficou evidente no “poder de expertise”. Ao buscar assessoria para o desenvolvimento de um programa de doações, o grupo “poder sobre” normalmente verifica a literatura sobre todos os tópicos e consulta peritos reconhecidos, enquanto o grupo “poder com” normalmente conta com a assessoria dos grupos menos favorecidos na sociedade.

Mais uma vez, a diferença no “poder referente” foi bem clara. Ao serem questionados sobre qual tipo de organização com quem eles fazem alianças, o grupo “poder sobre” tendeu a não fazer alianças, enquanto o grupo “poder com” normalmente constrói coalizões com financiadores, ONGs e universidades. Parece que enquanto as fundações de “poder sobre” constroem um caso de expertise e seguem sozinhas, as fundações “poder com” contam com o conhecimento de base e buscam diversos relacionamentos para aumentar sua eficiência.

Conclusões
Em nossa pesquisa, encontramos dois conceitos de poder. Um grupo acredita que a principal fonte de poder se encontra na fundação. Após consultar peritos, esse grupo segue sozinho, desenvolvendo relações transacionais com beneficiários e o campo. O outro grupo acredita que seu poder se encontra nos relacionamentos e que, longe de ter o monopólio da expertise, a fundação precisa acreditar não só em seus beneficiários, mas também nas pessoas menos favorecidas e marginalizadas.

Não podemos dizer, com base nos dados, qual é o modelo mais efetivo. No entanto, a literatura sugere que o modelo “poder sobre” está ultrapassado. Os conceitos modernos de poder sugerem que precisamos desenvolver uma abordagem de “poder com”. Segundo Janet Surrey, “o poder no modelo “poder sobre” sempre é incerto. Ele nunca é o bastante e é sempre questionado”.

Se mudarmos o vernáculo e o entendimento de “compartilhar” para “construir” o poder, o que as fundações podem fazer? Está claro que elas podem ajudar a criar as condições para que os beneficiários construam seu próprio poder. E embora haja diversas formas para as fundações exercerem o poder sobre os beneficiários, elas podem resolver não usar o poder que têm, ou pensar sobre como elas têm usado o poder e usá-lo de formas mais positivas.

Fica claro que precisamos de uma séria discussão sobre essas questões na filantropia. Hoje em dia as fundações usam modelos de poder sem terem consciência que estão fazendo isso. É importante esclarecer isso porque, como dissemos em nossa premissa para este artigo, se não tomarmos consciência do poder provavelmente reforçaremos o status quo.

1. Mary Parker Follett (1995) ‘Power’, em P Graham (Ed), Mary Parker Follett: Prophet of management: A celebration of writings from the 1920s Washington DC: Beard Books, PP 97-120.

*Linda Guinee é associada sênior do Instituto de Interação para Mudança Social e Coordenadora do Grupo de Trabalho para Justiça Social e Paz.
Email: [email protected]

*Barry Knight é secretário da Centris. E-mail [email protected]

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