ODS: para não deixar ninguém para trás, precisamos de todo mundo

Por: GIFE| Notícias| 06/05/2019

A agenda de desenvolvimento adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015 traduz em 17 objetivos e 169 metas os desafios mais complexos do mundo. Reconhecidos globalmente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) espelham as mazelas sociais e ambientais que assolam o planeta na atualidade, colocando todos os países na mesma página em termos de clareza acerca de seus desafios – considerando o contexto de cada nação –, e dos recursos necessários para o enfrentamento dos problemas.

Calcula-se ser necessário um investimento de três trilhões de dólares ao ano para alcançar todos os objetivos e metas previstos na agenda. A diretriz essencial  de “não deixar ninguém para trás” e a centralidade dos países e povos mais vulneráveis como aqueles que protagonizam as desigualdades que traduzem os desafios a serem superados evidenciam a necessidade de uma ação robusta e conjunta da sociedade planetária para a concretização de um mundo mais justo e sustentável.

Essa foi a tônica dos debates promovidos no seminário “Parcerias Multisetoriais para os ODS: o desafio da redução das desigualdades”, realizado no dia 29 de abril, em São Paulo. O evento marcou o lançamento do Projeto de Fortalecimento da Rede Estratégia ODS, coordenado pela Fundação Abrinq em parceria com a Agenda Pública, a Confederação Nacional de Municípios e a Frente Nacional de Prefeitos e financiado pela União Europeia no Brasil.

Para Jorge Abrahão, coordenador geral do Programa Cidades Sustentáveis, da Rede Nossa São Paulo, a implementação dos ODS é fundamentalmente uma luta política. “Três trilhões pode parecer muito dinheiro, mas no mercado financeiro giram 300 trilhões de dólares por ano. Estamos falando de 1% desse valor. Então seria plausível pensar soluções para financiar as ações necessárias. E a maioria dos países que precisa avançar não tem recursos para colocar. Portanto, esse financiamento é muito importante”, ressaltou.

O peso das questões de raça, gênero e geracionais no abismo das desigualdades

A marca das desigualdades, que permeia os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, é aprofundada pelos desafios impostos pelo racismo e pela discriminação de gênero. Dados do relatório País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras 2018, da Oxfam Brasil, revelam que pela primeira vez em 23 anos a renda das mulheres retrocedeu em relação à dos homens. Além disso, há sete anos, a proporção da renda média da população negra brasileira se encontra estagnada em relação à da população branca.

A fim de conhecer a percepção da população brasileira em relação a esses e outros desafios e contribuir com o debate sobre a redução das desigualdades, a Oxfam acaba de publicar a segunda edição da pesquisa Nós e as Desigualdades, encomendada ao Instituto Datafolha – a primeira edição foi realizada em 2017. O estudo mostra que ao menos oito em cada dez brasileiros acreditam que o progresso do país está condicionado à redução das desigualdades. Além disso, a confiança da população na responsabilidade do Estado para enfrentar as desigualdades é maioria. Há apoio para uma tributação justa, que aumente a carga no topo da pirâmide, e um anseio por políticas públicas universais e de correção de desigualdades sociais e regionais.

O papel da cor da pele na definição da renda, na contratação por empresas, na abordagem policial e no tratamento dado pela justiça aparece com força. A discriminação de gênero segue presente na percepção de brasileiras e brasileiros. De 2017 para cá, há um crescimento na percepção do racismo e machismo na sociedade.

“Só avançaremos no combate às desigualdades se os temas do racismo, da discriminação de gênero e do respeito à diversidade, da discriminação pelo endereço de moradia e do assassinato de jovens de periferia tiverem a mesma urgência que os temas econômicos e fiscais”, defendeu Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil.

Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência da Plan International, e Maitê Gauto, coordenadora de políticas públicas da Fundação Abrinq, que se somaram a Katia no debate sobre desigualdades, pontuaram como os desafios relacionados a raça e gênero se aprofundam quando o direito humano em questão é o de crianças e adolescentes.

“O mundo já produziu dados suficientes para sabermos que a pobreza tem cor, gênero, origem e idade. É mulher, negra, latino-americana e africana e criança e adolescente. Existem hoje mais de 185 mil meninas no Brasil executando trabalho infantil doméstico e 90% delas são negras. 85% das 2,8 mil meninas têm menos tempo para brincar do que gostariam, enquanto 13% dos meninos na mesma faixa etária executam atividades domésticas. Mais de 300 mil meninas se casam antes dos 15 anos no Brasil. São dados que expressam o controle da sexualidade, do corpo e a vigilância do tempo das meninas. Falar sobre as especificidades da vida das meninas ajuda a entender porque a agenda dos ODS é uma agenda de oportunidades fundamental para que ninguém fique para trás”, destacou Viviana.

É tempo de resistir: a importância de fortalecer a voz da sociedade civil

Como reduzir desigualdades em um cenário de políticas públicas que cortam recursos fundamentais como o teto dos gastos, por exemplo? Como reduzir desigualdades com o fim da política de valorização do salário mínimo? Como reduzir desigualdades com a tendência e provável implantação de um sistema de seguridade social com manutenção de privilégios e diminuição dos direitos dos mais pobres?

Com essas perguntas, Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, abriu sua participação no debate sobre parcerias multisetoriais para a redução das desigualdades. “Não é o momento mais adequado na história do Brasil para que isso se realize. A Estratégia ODS foi criada em 2015 em um cenário e perspectiva absolutamente diferentes dos atuais”, observou.

Para Cida Bento, coordenadora-executiva do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), é hora de resistir e não de avançar. “Pensar os ODS exige pensar no contexto atual. O desafio das desigualdades nos remete ao privilégio, à ganância e a um sistema político violento. A gente acorda todo dia com um direito perdido. Nossa luta está em preservar os direitos que conquistamos nos últimos anos. Precisamos batalhar pelo fortalecimento da sociedade civil para não perdermos nossa autonomia contra o pacote anticrime.”

Com o que José Marcelo Zacchi, secretário-geral do GIFE, concorda. “Os ODS são a expressão contemporânea do conjunto de valores comuns que nos define como coletividade, que não por acaso se nutre na Constituição. E dentro disso é que o bom debate político e plural deve acontecer. A pergunta, então, é como a gente atualiza, defende, preserva e readensa esse conjunto de valores, atuando como guardiões dessa agenda em um momento em que ela está em cheque?”

A solução é conjunta: o horizonte das parcerias multisetoriais

A aposta do Ethos, segundo Caio, tem sido aprofundar a articulação com organizações da sociedade civil e empresas para a construção de ações coletivas de advocacy junto a agendas de direitos humanos, equidade racial, gênero, sustentabilidade, entre outras, além de construir e aperfeiçoar ferramentas que ajudem organizações e empresas com suas práticas pensando em uma sociedade mais justa e sustentável, tais como indicadores de diversidade, integridade, etc.

Para Cida, além do fortalecimento prioritário da sociedade civil organizada, se coloca como horizonte de ação a incidência junto ao setor empresarial e também às instâncias locais do poder público. “Temos que pensar em como congregar as forças mais progressistas dentro dos estados e municípios para incidir, por exemplo, sobre o pacto federativo. Já as empresas, há muito que possam fazer nos territórios. Esperamos poder dizer para nossa juventude que é possível a sociedade civil, o poder local e as empresas progressistas construírem uma aliança forte para enfrentar esse momento e defender nossas conquistas.”

Carlo Pereira, secretário-executivo da Rede Brasil do Pacto Global, por sua vez, aposta no poder do setor empresarial. “A soma dos 180 menores PIBs [Produto Interno Bruto] do mundo é menor que as dez maiores receitas empresariais. Por isso, acho que as empresas são fundamentais para o avanço dos ODS, principalmente na questão do financiamento.”

Além disso, ele observa que o setor está passando por mudanças no que se refere ao alinhamento do negócio a valores sociais e ambientais.

Jorge, em contrapartida, acredita que, dos três setores, o empresarial é o que apresenta mais limitações no sentido de alavancar o alcance dos ODS. “O poder das empresas só confirma a falência do modelo que estamos vivendo: uma forte crise combinada dos aspectos social, ambiental, econômico e ético. O poder econômico se apropriou muito da política e nós não conseguimos ainda fazer essa desvinculação. A concentração de recursos tem muito a ver com esse desequilíbrio de poder que temos no Brasil e no mundo. E as empresas não vão chegar a um ponto fundamental que seria voluntariamente rejeitar isenções e pagar mais impostos”, defendeu.

Nesse sentido, o coordenador vê com muito bons olhos as cidades como espaços com potencial para oferecer soluções e perspectivas.

Cidades e participação

Atualmente, a maior parte da população mundial vive em áreas urbanas. No Brasil, essa parcela soma 85%. Estudos da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostram que entre 2001 e 2030, a área urbana ocupada triplicará. Até 2050, cerca de 70% da população mundial estará vivendo em áreas urbanas, sendo que 90% desse crescimento ocorrerá em países de economia emergente e em desenvolvimento. Essas pesquisas também apontam que 80% do PIB de um país, bem como 71 a 76% das emissões de gás carbônico, vêm das cidades.

Tais dinâmicas colocam o espaço urbano no centro do debate sobre desenvolvimento sustentável. A agenda é dedicada ao ODS 11, além de aparecer de modo transversal em diversos dos demais objetivos, como nas ações voltadas ao fornecimento de água (ODS 6) e de infraestrutura (ODS 9), o que demonstra que as relações e práticas estabelecidas nas cidades são fundamentais para o alcance de uma sociedade mais justa, responsável e sustentável.

Se, por um lado, as cidades estão associadas ao crescimento econômico e ao bem-estar, por outro, elas também são marcadas por desigualdades socioterritoriais extremas. Meio ambiente, habitação e saneamento, mobilidade e periferias são apontados como temas relevantes no debate de cidades sustentáveis.

“Há nas cidades uma capacidade de sensibilização muito forte. Elas são as maiores responsáveis pela pobreza e miséria do nosso país, mas o fato de os problemas estarem concentrados nos oferece oportunidades de medidas e políticas que efetivamente transformem isso. A possibilidade de mudança se dá em uma velocidade maior, mas depende da vontade política dos governantes e da participação da sociedade”, observou Jorge.

Esse último elemento, o da participação, também tem sido profundamente fragilizado pelo atual governo federal, que recentemente publicou o Decreto Federal 9.759/2019, que determina o fim de conselhos, comissões, comitês, juntas e outras entidades do tipo que tenham sido criadas por decretos ou por medidas administrativas inferiores. Muitos deles são formados por integrantes de órgãos do governo em conjunto com membros da sociedade civil. Na prática, a medida revogou o Decreto 8.243/2014, que instituiu em 2014 a Política e o Sistema Nacional de Participação Social, que estabeleciam a organização de órgãos colegiados com participação da sociedade civil no governo federal.

Dentre as motivações apresentadas pelo governo estão a redução de gastos e a desburocratização do Estado. Mas, ao restringir as instâncias de debate e articulação com a sociedade civil, a medida pode trazer pouca transparência e eficiência administrativa na formulação de políticas e na alocação de recursos. Prejuízos para a participação da sociedade no processo democrático são outro problema apontado por organizações da sociedade civil.

A pauta da participação é central no Programa Cidades Sustentáveis, ao qual Jorge se remete para a defesa de um modelo de gestão mais participativo. “O atual modelo de gestão de cidades é datado, centralizador e não dialógico. Não temos mais como governar dessa maneira. Mesmo assim, ainda há uma resistência muito grande para formas de governança que ampliem minimamente a participação da sociedade. Modelos mais abertos e sensíveis para incorporar múltiplas perspectivas, estimular programas de metas e mensuração e debater em conselhos e espaços participativos são fundamentais para o aprimoramento da democracia. Como podemos ser mais incisivos nesse processo entendendo ser essa uma demanda urgente para construir políticas mais perenes?”

Para o coordenador, as eleições municipais de 2020 serão um importante marco nesse sentido. “Será o primeiro momento em que teremos a oportunidade de debater esses temas que estão sofrendo retrocessos e iniciar um movimento de sinalizar essas mudanças”, pontuou.


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