ONGs buscam mais transparência

Por: GIFE| Notícias| 16/01/2006

ONGs buscam mais transparência

Robert Lloyd e Lucy de Las Casas*

O aumento da visibilidade e das críticas, entre outros fatores, levou a uma maior pressão sobre as ONGs, tanto de dentro quanto de fora do setor, por uma maior transparência (accountability). Um meio cada vez mais em evidência de fazer isso é a auto-regulação. Mas sem meios de impor o seu cumprimento, qual seria a eficácia dessa prática? E como os códigos de auto-policiamento podem fazer pender a balança dos procedimentos de transparência, dos poderosos (doadores e governos) para os beneficiários das ONGs: as pessoas em benefício das quais as elas dizem trabalhar e que, na verdade, são a razão de sua existência?

O ambiente político em mudança

O ambiente político em que as ONGs operam mudou irreversivelmente ao longo da última década. Boas intenções e valores costumavam ser uma base suficiente de legitimação das ONGs, mas agora existe uma crescente pressão sobre elas para que forneçam provas de que estão tendo um impacto positivo e de que representam efetivamente aqueles que elas dizem apoiar. Os motivos são claros: nos últimos anos, as organizações ganharam influência na política nacional e internacional, e prestam muitos serviços públicos. Como uma quantidade cada vez maior de recursos sendo canalizada para o setor, tornou-se imperativo que as organizações, qualquer que seja a área ou o país em que trabalhem, possam demonstrar pelo que e perante quem elas são responsáveis.

A auto-regulação como mecanismo de transparência

Embora algumas ONGs estejam tratando individualmente o problema da transparência, muitas delas estão enfrentando a questão coletivamente. Através de mecanismos de auto-regulação, como os códigos de conduta e os esquemas de certificação, um número crescente de ONGs está tentando desenvolver normas e padrões comuns em torno de pelo que e perante quem elas são responsáveis. Embora diferentes em forma e estrutura, as iniciativas de auto-regulação se enquadram em uma das seguintes categorias:

– códigos de princípios/ética que os signatários se esforçam por cumprir.
– códigos de conduta nos quais padrões mais claros são definidos.
– esquemas de certificação em que o cumprimento de padrões claros é vverificado por terceiros.

Um ponto fraco inerente aos mecanismos de auto-regulação é a sua natureza voluntária, apesar de existirem diversos incentivos, alguns mais persuasivos do que outros, para que as organizações não-governamentais se envolvam nas iniciativas de auto-regulação. A reputação e a credibilidade, por exemplo, têm um papel importante. Uma organização poderia enfrentar questionamentos embaraçosos se não adotasse um código amplamente aceito pelos seus pares.

Além disso, em um mercado de ONGs cada vez mais diversificado, em que se torna cada vez mais difícil identificar a qualidade, a auto-regulação é uma maneira de se destacar. Talvez ainda mais decisivo seja o fato de que alguns doadores usem a adoção de um código ou um esquema de certificação como critério para o desembolso de fundos. Apenas as organizações signatárias do Código de Conduta do Conselho Australiano para o Desenvolvimento Internacional, por exemplo, podem se candidatar ao financiamento do programa de ajuda do governo australiano.

Em casos similares, os governos também estão oferecendo incentivos fiscais para doações, como uma forma de levar as organizações a adotar esses códigos. Nas Filipinas e no Paquistão, a certificação do Conselho para Certificação de ONGs das Filipinas (PCNC) e do Centro para Organizações Filantrópicas Sem Fins Lucrativos do Paquistão (NPO), respectivamente, são critérios para que as elas tenham direito a incentivos fiscais por suas doações.

Falta de mecanismos de imposição do cumprimento

Outro ponto fraco das iniciativas de auto-regulação é que elas geralmente não incluem mecanismos para a imposição de seu cumprimento. Depois que se associa a um esquema, seguir as regulamentações passa a ser uma questão de boa vontade e compromisso da ONG.

Um problema dessa abordagem é que as organizações freqüentemente subestimam, ou refletem muito pouco sobre as exigências dos códigos. Embora iniciativas como o People in Aid tentem contornar esse problema exigindo a indicação de um funcionário responsável pela implementação do código, permanece o fato de que, sem um mecanismo para impor seu cumprimento, ele pode se dar apenas nas ONGs mais comprometidas com o código.

O Código de Conduta da Cruz Vermelha, por exemplo, não tem mecanismos para verificar se os signatários o cumprem, e não existem meios de denunciar o seu descumprimento. Isso levou a IFRC a concluir que “”a sua contribuição para a transparência continua pequena””.[1] Críticas semelhantes foram feitas com relação ao Código de Ética da Coalizão Sul Africana de ONGs (SANGOCO): que ele não tem nenhuma indicação do que acontecerá se uma ONG não o cumprir, e que não há qualquer evidência de que alguma organização tenha sofrido sanções disciplinares até o momento.[2]

No entanto, nem todos os códigos de conduta são meras declarações de princípios e padrões sem obrigatoriedade. Um número cada vez maior começa a embutir em sua estrutura mecanismos para impor o seu cumprimento. Esses mecanismos assumem diversas formas. No caso da autocertificação, as organizações são obrigadas a avaliar a sua adequação e apresentar um relatório, geralmente assinado pelo principal executivo (como é o caso do Código de Ética do Conselho Canadense para a Cooperação Internacional (CCIC)).

Em algumas iniciativas, as organizações que ainda não atendem aos padrões, devem identificar e apresentar planos de trabalho, mostrando como pretender vir a atendê-los (por exemplo, os padrões PVO da Interaction). Um mecanismo amplamente usado é um procedimento de reclamações, que permite que as partes interessadas apresentem queixas contra um signatário se houver evidência de que ele não está cumprindo os padrões do código (por exemplo, o Código de Conduta de ONGs da Etiópia). Finalmente, e de forma mais abrangente, alguns esquemas exigem a certificação por um terceiro: as organizações são avaliadas por uma parte independente (por exemplo, o Conselho para Certificação de ONG das Filipinas).

Evidentemente, a eficácia dos mecanismos para imposição do cumprimento varia muito. O fato de um código de conduta ter um mecanismo de reclamações, por exemplo, não significa necessariamente que as partes interessadas tenham conhecimento dele ou saibam como usá-lo. Além disso, em todos os casos, os mecanismos para imposição do cumprimento só podem ser eficazes se forem previstas sanções, o que, na maioria dos casos, significa a suspensão ou cancelamento da associação. Tal compromisso é crucial para que qualquer mecanismo seja eficaz.

Entretanto, existe um crescente reconhecimento por parte das ONGs de que simplesmente desenvolver um código de conduta não é suficiente para aumentar a transparência. Uma estrutura institucional de apoio precisa ser implantada para garantir que o código seja cumprido.

No entanto, mesmo com estruturas implantadas, é importante perguntar: é necessária mais transparência perante quem e pelo quê? A próxima seção analisa o efeito da auto-regulação na transparência das ONGs perante diferentes grupos de interessados.

A complexidade da transparência das ONGs

A transparência das ONGs é uma questão complexa. As organizações precisam ser responsáveis frente a diversos grupos de interessados que, individual e coletivamente, são parte integrante de suas operações:

– doadores institucionais fornecem recursos.
– governos fornecem arcabouços regulatórios e legais.
– colaboradores fornecem dinheiro e tempo.
– beneficiários são a base do propósito e da legitimidade moral de uma organização.

Um complicador adicional é que cada um desses grupos de interessados tem um nível muito diferente de poder e influência sobre a ONG. Como resultado, a força e a transparência de seus diferentes relacionamentos variam enormemente. Os mecanismos para garantir a transparência entre os doadores institucionais e as ONGs, por exemplo, são geralmente fortes, em função de obrigações contratuais e da dependência das organizações dos recursos dos doadores. Da mesma forma, os governos criam o ambiente regulatório e legal no qual as ONGs funcionam, de forma que também eles têm grande poder para garantir a transparência.

Os beneficiários, por outro lado, embora sejam a razão da existência da maioria das ONGs, geralmente não têm poder para exigir muito. Poucas organizações têm meios institucionalizados pelos quais os beneficiários podem apresentar suas opiniões e, como resultado, o relacionamento de transparência com eles é invariavelmente muito fraco.

Equilibrar efetivamente as necessidades dessas diferentes partes interessadas é o cerne da transparência. O problema para a maioria das iniciativas de auto-regulação é que os padrões que elas definem não fortalecem nem esclarecem de forma igualitária os relacionamentos com esses diferentes grupos interessados.

Como a auto-regulação influencia os diferentes relacionamentos de transparência

Uma análise rápida dos 35 códigos de conduta e esquemas de certificação listados abaixo revela que uma única forma de encarar a transparência domina muitos sistemas de auto-regulação de ONGs. Essa forma se define principalmente em termos da definição de padrões para governança interna e sistemas de administração e gestão financeira, para garantir o cumprimento das exigências de relatórios, leis e regulamentações.

Essa tendência é essencialmente o produto das forças que orientam o debate da transparência dentro do setor. A maioria das ONGs está lançando mão da transparência como reação às ameaças externas e à publicidade negativa. Conseqüentemente, elas estão estabelecendo códigos de conduta principalmente por medo de que os questionamentos sobre a sua transparência possam prejudicar sua imagem, minar seus esforços de levantamento de fundos, reduzir os níveis de confiança do público e/ou levar a uma regulamentação governamental mais invasiva. A maioria das iniciativas de auto-regulação se centra, portanto, na definição de padrões que atendam às necessidades dos interessadas que têm maior capacidade de afetá-las: governos, doadores e o público em geral. Os beneficiários, sendo a parte interessada mais fraca, não exercem a mesma pressão e, por isso, geralmente, não recebem o mesmo nível de atenção.

Fortalecendo a transparência

Embora seja importante definir padrões para a boa governança interna, gestão financeira e relatórios, é crucial que a transparência promovida pelos sistemas de auto-regulação não seja aprisionada por uma compreensão técnica estrita do termo. A transparência das ONGs também deve levar em conta sua idoneidade perante seus beneficiários, que, afinal, são a razão da existência da maioria dessas organizações. Alcançar a transparência frente aos beneficiários é, portanto, crucial para o cumprimento da missão de uma organização e para manter a sua legitimidade, permitindo, assim, uma posição mais central nos padrões definidos pelas iniciativas de auto-regulação.

Enquanto em muitos códigos a transparência frente aos beneficiários não seja nem mesmo mencionada, naqueles em que é mencionada, isso é feito em termos vagos. Por exemplo, o código de Botswana observa que as ONGs devem “”ser responsabilizadas por suas ações e decisões, não apenas frente a doadores e governos, mas também frente aos beneficiários dos projetos.””

Essa falta de precisão dificulta a implementação e a imposição, e contrasta com o nível de detalhamento dado a gestão financeira, relatórios e divulgação pública. Tomemos como exemplo o esquema de certificação de Maryland. Com relação aos padrões de acesso do público, ele define que as ONGs “”devem fornecer aos membros do público que expressem interesse pelos assuntos da organização uma oportunidade significativa de se comunicar com um representante apropriado da organização””, e, com relação à transparência financeira, diz: “”As demonstrações financeiras internas devem ser preparadas no mínimo a cada trimestre, devem ser apresentadas ao conselho de diretores e identificar e explicar qualquer variação material entre as receitas e despesas reais e orçadas””.

Nos dois casos, é fornecida uma descrição detalhada dos padrões esperados da ONG. Fica claro o que a organização precisa fazer e o que os interessados podem esperar das organizações e pelo que podem responsabilizá-las.

Algumas iniciativas de auto-regulação tratam dessa preocupação e fornecem uma descrição mais detalhada daquilo que deve significar, na prática, uma maior transparência frente aos beneficiários. Por exemplo, o Código de Conduta de ONGs da Etiópia, o Sphere, e o Código de Conduta das ONGs do Paquistão dizem que transparência frente aos beneficiários significa o envolvimento dos beneficiários em todos os estágios dos processos decisórios, do projeto à implementação e à avaliação.

Outros códigos, como o Código de Conduta Nigeriano e o HAP-I, vão além, identificando a necessidade de uma maior transparência para os beneficiários e a importância de mecanismos de reclamações através dos quais as preocupações possam ser levantadas e resolvidas. O Código de Conduta do Fórum de ONGs do Paquistão obriga as organizações a comunicar aos beneficiários as informações financeiras de uma forma acessível e inteligível. Em todos esses exemplos, elas estão passando da referência nacional para a necessidade de transparência perante os beneficiários e estão começando a desvendar como deve ser essa transparência.

1 International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies (2004) Code of good practice for NGOs responding to HIV/AIDS: sign on implementation and accountability: options and recommendations, IFRC, Geneva.

2 E Hariss-Curtis (2002) NGO codes of conduct: and exploration of the current debate , in INTRAC Informed, Bulletin 5, Novembro, pp2-11.

*Robert Lloyd e Lucy de Las Casassão gerentes de projetos do Accountability Programme no One World Trust.

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