Organizações da sociedade civil: maior capital, maior cobrança

Por: GIFE| Notícias| 10/01/2005

DANIELA PAIS
Advogada e associada da International Society for Third Sector Research (ISTR)

A sociedade civil organizada brasileira passou por um momento muito especial em 2004. Ao mesmo tempo em que é visível uma grande mobilização social, o Poder Executivo, o Congresso Nacional e a mídia brasileira vem colocando as organizações sociais na berlinda. E talvez seja este o motivo: quanto maior o capital social e financeiro mobilizado pelas organizações, maior será a cobrança com relação às suas atividades.

Neste artigo, faremos uma retrospectiva dos principais episódios que envolveram as organizações do terceiro setor no ano passado. No entanto, não pretendemos exaurir o assunto ou fazer analises técnicas, mas sim chamar a atenção da sociedade brasileira para a existência de um movimento ordenado, mesmo que com lógica e direção diversas, que cerceia e ameaça o desenvolvimento do terceiro setor brasileiro, e a necessidade de focarmos nossas forças em soluções práticas e fáceis, que possibilitem o seu fortalecimento.

O governo Lula, em seu Programa de Governo, reconheceu o papel das organizações do terceiro setor na promoção da justiça social, retomada do crescimento econômico e geração de emprego e trabalho. Porém, nos últimos dois anos, foram criados diversos Conselhos de Políticas Públicas, em sua maioria apenas com poder consultivo, esvaziando, desta forma, a discussão das políticas pelas organizações da sociedade civil.

Com relação ao Marco Legal do Terceiro Setor, podemos citar as seguintes ações do Executivo em 2004: a criação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre o Marco Legal das organizações sem fins lucrativos; a confusão da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social); e a revisão da Lei Rouanet, que apesar de não estar diretamente relacionada ao setor, foi possível identificar um certo preconceito e propostas imbuídas de ilegalidades com relação aos institutos e fundações que atuam na área de cultura. Por fim, a consulta a interessados e especialistas feita pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (DJCTQ) da Secretaria Nacional de Justiça com relação às principais causas de indeferimento da concessão da qualificação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Publico (OSCIP) e a consolidação de suas interpretações referentes ao assunto.

O GTI do Marco Legal foi criado pelo presidente da República e coordenado pela Secretaria Geral da Presidência no primeiro semestre de 2004. Reuniu membros dos ministérios da Casa Civil, Desenvolvimento Social, Educação, Fazenda, Justiça, Previdência Social e Trabalho. Tinha como objetivo discutir o aprimoramento dos aspectos legais relativos ao terceiro setor. Em junho, algumas organizações da sociedade civil, entre elas o GIFE e a Abong (Associação Brasileira de ONGs), foram convocadas para um reunião presencial para apresentarem suas propostas de aprimoramento. Após a reunião, não se teve mais resposta oficial sobre o andamento do GTI. Neste caso, não estamos diante de uma ameaça ao setor, mas de ações do Executivo que, apesar de louváveis, após seis meses ainda não avançaram em propostas práticas para o fortalecimento do terceiro setor.

Com relação à Cofins, em 2003, o governo federal editou Medida Provisória, convertida em Lei em 2004, alterando a sistemática de sua cobrança. Isso gerou muita polêmica com relação ao recolhimento da contribuição social por organizações da sociedade civil. Estariam as instituições de caráter filantrópico, recreativo, cultural, científico e associações – isentas ao imposto de renda – perdendo a isenção à cobrança da Cofins e passando a recolher a alíquota de 7,6% sobre todo o faturamento, comprometendo, desta forma, a sustentabilidade e atuação das mesmas? Toda esta confusão foi gerada pela fragmentação da legislação tributária e pelas inúmeras resoluções da Receita Federal. Sabemos que este fenômeno não acontece somente com as organizações da sociedade civil, mas também sabemos que, para o seu desenvolvimento, as organizações necessitam de regras tributárias mais claras, uma vez que muitas delas não contam com o apoio técnico e especializado necessário para o desvendamento e entendimento das entranhas da legislação.

A revisão da Lei Rouanet iniciou-se em 2003, com uma consulta pública organizada pelo Ministério da Cultura junto aos atores interessados. No primeiro semestre de 2004, o Ministério apresentou à sociedade civil uma minuta de Decreto para alteração da Lei. Referida minuta foi alvo de grandes críticas e mobilização do setor cultural. Com relação ao terceiro setor foi possível notar, por meio de declarações feitas por oficiais do Ministério e pelo texto da minuta, preconceitos em torno dos institutos e fundações criados/mantidos por empresas.

Identificamos muita desinformação sobre a atuação dessas organizações, o que acaba gerando mitos e equívocos que influenciaram o texto da minuta e o pensamento do Ministério da Cultura. Vale esclarecer que os institutos e fundações são, de acordo com a legislação brasileira, organizações de interesse público cujo patrimônio não pode ser distribuído e deve ser aplicado na consecução dos fins para os quais foram criados. Desta forma, voltados para o interesse público e, na sua grande maioria, seguindo princípios de democratização de acesso e de produção – princípios adotados para a revisão da Lei Rouanet – tais organizações deveriam ser incentivadas e não sobre-taxadas, conforme previu a minuta de Decreto. Além do mais, referido tratamento desigual com relação às demais organizações culturais que não estão ligadas a empresas fere a Constituição Federal.

Por fim, podemos citar a consulta realizada pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (DJCTQ) da Secretaria Nacional de Justiça com relação às principais causas de indeferimento da concessão da qualificação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Publico (OSCIP) e a consolidação de suas interpretações referentes ao assunto. Não se pode negar que a ação de consulta é inédita e que possui seus méritos. A tentativa de construção conjunta de interpretações e a adoção do principio de transparência pelo Ministério da Justiça devem ser parabenizadas. No entanto, algumas das interpretações são alvo de contestação. Para exemplificar, podemos citar a polêmica questão da participação de servidores públicos na composição de conselhos de organizações qualificadas como OSCIPs. Paulo Haus Martins, em artigo publicado pela Rits (Rede de Informações para o Terceiro Setor) em novembro de 2004, apresenta subsídios técnicos contrários à posição do DJCTQ.

No que concerne à relação do Congresso Nacional com a sociedade civil organizada, 2004 foi um ano bastante turbulento. O ar de desconfiança predominou em Brasília e um exemplo claro foi a aprovação pelo Senado do Projeto de Lei (PL) nº 07/2003, que trata do controle sobre as organizações da sociedade civil. Da análise da justificação de referido PL e de muitos outros que tratam do assunto, é claro o preconceito e a falta de informação por parte dos parlamentares com relação à atuação das organizações. Apenas a titulo ilustrativo, transcrevemos alguns trechos da justificativa do PL 07: “”além do campo da ilegitimidade, muitas organizações abrigam atividades rigorosamente criminosas, ocultadas pelo manto da caracterização filantrópica””, ou ainda “”não é admissível que parcelas do dinheiro público sejam desviadas para fins escusos e apropriados de forma indevida por entidades criadas por pessoas inidôneas””. Ora, o Congresso não pode pautar sua ação em comportamentos desviados de uma minoria, prejudicando a grande maioria das organizações que possuem um trabalho sério voltado ao desenvolvimento do país. Isso sem contar que a legislação atual já prevê sanção para desvios de condutas de organizações sociais.

Sinais de desconfiança também apareceram na mídia. Apesar de terem aumentado o número de artigos e notícias sobre o terceiro setor, em 2004 foram veiculadas algumas reportagens que denegriram a imagem do setor, fazendo da atuação de poucos a de muitos, o que acaba e acabou por influenciar a opinião pública e, pior, a atuação do Congresso Nacional e dos membros do governo. O Estado não pode, diante de notícias de desvios, enrijecer a legislação, inviabilizando e burocratizando o desenvolvimento da sociedade civil organizada. Devemos respeitar e dar o devido valor às organizações que desenvolvem um trabalho sério em prol do interesse público. Àquelas que minoritariamente se desvirtuam de sua razão de ser, apoiamos a tomada das medidas legais cabíveis.

Há tempos lutamos por uma regulamentação favorável ao desenvolvimento do terceiro setor baseada em princípios como transparência, controle social, supremacia do interesse público, eficiência e financiamento público das ações sociais. No entanto, é necessário um exercício de conhecimento mútuo e construção conjunta, por parte de todos os atores envolvidos, de uma legislação eficaz e eficiente que favoreça o desenvolvimento da sociedade civil organizada.

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