Para além das confusões verbais

Por: GIFE| Notícias| 10/09/2007

Steven Burkeman*

Quando pesquisava sobre filantropia em comunidades da África do Sul, Susan Wilkinson-Maposa se deparou com um grande problema: não existe uma palavra para filantropia em nenhuma das onze línguas da região; ela se viu forçada a usar a palavra ajuda. Quando Desmond Tutu foi recentemente a uma radio britânica falar sobre a sua fundação, teve um problema semelhante com o termo ubuntu (traduzido livremente como “”Sou porque você é′””), um conceito que não pode ser expresso em uma única palavra equivalente em inglês. E atualmente também não existe uma palavra para comunidade em russo.

Termos como venture philanthropy, social investment, social capital, corporate social investment, community foundation, social giving, community-based organization e capacity building são correntes no Reino Unido, mas será que têm equivalentes na Ásia ou na África? E termos ainda mais básicos como fundation, grant e charity? O que as pessoas que trabalham em nosso setor nesses países pensam que essas palavras significam? Elas acham que significam o mesmo que eu acho que significam? E as outras pessoas no Reino Unido acham que essas palavras significam o mesmo que eu acho que significam?

A organização lingüística não tem um passado que a abone; se tivesse, o esperanto (língua internacional desenvolvida no final do século dezenove) teria um uso muito mais difundido do que tem. E qual deveria ser a definição, os significados e os usos adotados por todos? Os meus? Os seus?

Esse é um problema que atrapalha a compreensão e a cooperação além das fronteiras lingüísticas. Na tentativa de resolvê-lo, acredito que devamos começar por aceitar que, de fato, pelo menos no presente, a lingua franca da sociedade civil internacional, ou terceiro setor, ou o mundo das organizações sem fins lucrativos – como quer que você queira chamá-lo, pelo menos neste contexto – é o inglês (embora, como demonstra esta frase, absorva qualquer outra influência que seja necessária para dizer o que pretende). Mas acredito que haja maneiras de empregarmos o inglês para facilitar uma compreensão muito melhor dos usos lingüísticos da sociedade civil em todo o mundo, celebrar esses diferentes usos e as diferenças culturais que eles freqüentemente representam, e compreender e aprender com eles.

Um léxico da filantropia global

Minha visão é a de um “”léxico da filantropia global””, um site na Web poderoso, no qual as pessoas de todo o mundo pudessem contribuir, e que explore e vincule a terminologia usada em todo o mundo da filantropia e do investimento social. Seria um lugar de reunião de definições para termos chaves da discussão da filantropia e explicações dos diversos usos em todo o mundo. Esse espaço virtual seria também um lugar onde material proveniente de todo o mundo da filantropia e assuntos relacionados seria publicado por quem quisesse.

Não poderia nem deveria ser uma fonte prescritiva, nas linhas da Académie française, o órgão que atua como a autoridade oficial da língua francesa. Em vez disso, seria um “”trabalho em andamento””, interativo, estimulando os profissionais e os acadêmicos a se envolverem e contribuir com suas impressões e usos e a analisar os dos demais, como, acontece, por exemplo, com a Wikipedia, a conhecida enciclopédia online escrita por usuários da Web. Com o tempo, poderemos esperar que o site seja pelo menos um ponto de referência para os usos do discurso internacional, tanto oral quanto escrito, e uma maravilhosa fonte de material sobre filantropia do mundo todo.

O que poderia ser considerado um sucesso?

Como seria avaliado o sucesso do site? Existem indicadores óbvios, como o número de acessos, mas, mais importante, eu acredito que, com o tempo, poderíamos perceber que o idioma usado em um lugar estava sendo influenciados pelo que acontece em outros. Essa adaptação orgânica é um processo muito mais saudável do que um processo que force a adoção do que poderia a ser considerado o menor denominador comum. Não sou lingüista, mas, minha impressão é de que o mais importante sobre os diferentes usos idiomáticos pelos diferentes grupos de pessoas é o que eles revelam sobre as diferenças culturais ou não. Existem distinções com as quais deveríamos nos regozijar e aprender, em lugar de tentar persuadir os outros de que este ou aquele uso em particular deva ser adotado universalmente.

Gostaria também que o site fosse usado como um ponto de referência explícito quando filantropos e filantropóides tentassem trabalhar cruzando fronteiras internacionais. WINGS, NEF, EFC e Synergos, por exemplo, todas essas organizações têm de lidar com uma situação em que as pessoas não apenas falam inglês como a segunda ou mesmo a terceira língua, mas têm históricos tão diferentes que, mesmo que sejam fluentes em inglês, é inevitável que haja confusão sobre o uso de determinadas palavras, e os conceitos e idéias que elas pretendem descrever.

Minha esperança é que, ao discutirmos os nossos diferentes usos, também estaremos aprendendo as razões subjacentes para os diversos usos. Voltando à África do Sul: em seu estudo, o que Susan Wilkinson-Maposa estava descobrindo é que a noção de alguém repassar sua riqueza para alguém que precisa, o modelo “”normal”” de filantropia do Norte, é desconhecido nas comunidades sul-africanas. Quando as pessoas enfrentam necessidades, é esperado que as comunidades lidem com a questão elas mesmas – ajudando-se uns aos outros. Assim, a ausência de uma palavra que significa “”filantropia”” nessa região não é apenas uma questão de idioma, isso nos diz algo muito importante sobre a maneira como as pessoas vivem e se relacionam umas com as outras.

O mesmo é verdade em relação a mir em russo. Olga Alexeeva, presidente da CAF Global Trustees, nos diz que, na era pré-revolucionária, havia, na verdade, uma única palavra em russo que significava “”comunidade””: a palavra mir, que agora significa “”mundo”” e “”paz””, também significava “”comunidade””. Mas o socialismo não tinha necessidade de uma comunidade e o significado da palavra desapareceu.

Por trás das confusões verbais, encontra-se um reino de mal-entendidos muito mais significativo sobre as vidas e as relações das pessoas. Um léxico da filantropia global poderia ser um primeiro passo em direção a uma compreensão maior.

Steven Burkeman* é consultor e trabalha principalmente com fundações e ONGs de direitos humanos, ele foi Secretário do Joseph Rowntree Charitable Trust.

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