Pela redução da maioridade linguística

Por: GIFE| Notícias| 23/02/2015

No quarto parágrafo do imperdível “O direito à literatura”, Antonio Candido escreve: “Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização”. Não, ele não é pessimista, ao contrário, diz que vivemos uma era em que é possível, ao menos teoricamente, se entrever soluções para as injustiças. E uma delas é, sem dúvida, o profundo abismo que separa quem sabe ler e argumentar, verbalmente e por escrito, com gosto e competência, de quem não sabe. Esse é um marco da desigualdade, que abre ou fecha portas de todas as ordens. Impedidos de acessar informação e dela fazer uso para dar conta dos desafios do dia a dia, milhares de pessoas ficam à margem da história e da vida. E não é por falta de pesquisa que nos aponte o dado ou de teorias para a solução.

Não tiramos zero apenas em língua portuguesa quando meio milhão de alunos zera a prova de redação do Enem de 2014. Tomamos bomba, como nação, no precioso recurso da comunicação. Incapazes de pensar e de argumentar, ficamos muito mais vulneráveis às violências, manipulações, grosserias, injustiças; incapazes de discordar que o ótimo não é inimigo do bom, que não podemos nos conformar com o fato de que muitos são privados dos recursos que usufruo com facilidade, seja água encanada, acesso aos direitos humanos ou uma opinião sobre temas preciosos aos cuidados com a vida.

Li que alguns consideram que esse fracasso se deu porque o tema proposto, “A publicidade infantil em questão no Brasil”, não está lá muito presente nas discussões do dia a dia. Li também que houve uma queda de 7.3% no desempenho em relação a 2013, quando o tema foi a “Lei Seca”. Ou seja, a matemática demonstra uma piora do que já era ruim.

Antes que trechos das redações viralizem como piadas pela internet, banalizando ainda mais um caso que merece todo o cuidado, cabe citar que susto grande também ocorreu na divulgação da Prova Brasil a respeito do desempenho em língua portuguesa: segundo dados da ONG Todos Pela Educação, 76.4% dos alunos da rede pública estão abaixo do nível 1, ou seja, não conseguem interpretar expressões e opiniões em crônicas. Não há mágica: são esses os alunos que vão para o ensino médio e seguem na sina de permanecer excluídos desta era, citada lá no começo deste texto por Candido. Logo, como é que esta geração pode pensar e buscar soluções que promovam o fim das desigualdades, da intolerância, das mazelas ambientais que sentimos cada vez mais tão na pele, literalmente?

“Os estudantes estão lendo pouco”, também li. Fácil imaginar que há direta correlação entre o convívio cotidiano com diversos gêneros textuais e a produção do pensamento, da escrita, da argumentação, da imaginação, da criatividade, da humanidade.

Vamos a outra pesquisa: Argumentação, Livro Didático e Discurso Jornalístico, Vozes que se Cruzam na Disputa pelo Dizer e Silenciar foi apresentada, em julho de 2013, ao Programa de Pós-Graduação em Educação da FFCLRP, da pedagoga Noemi Lemes. Segundo ela, alunos do ensino médio de Ribeirão Preto, que devem ter uma rotina similar às de muitos estudantes do ensino médio no Brasil, não conseguem desenvolver boa argumentação porque estão expostos unicamente aos textos disponíveis em livros didáticos, que se valem, em sua maior parte, de conteúdo jornalístico, reproduzindo opiniões particulares sobre os fatos. Noemi Lemes defende que a argumentação não deve circular apenas na disciplina de língua portuguesa, pois é um conhecimento importante até para a formação do aluno enquanto sujeito crítico atuante no meio político, no ambiente social; a argumentação deve ser entendida como um direito do sujeito.

A leitura de formação, que pressupõe contato cotidiano – e desde a primeira infância – com literatura, filosofia, política, economia e ciência é imprescindível para a formação intelectual e sensível dos seres humanos, sua inserção no universo da linguagem e sua constituição como sujeitos. Esse recurso deve estar, portanto, disponível gratuitamente nas comunidades em boas bibliotecas e em escolas. Pouca gente sabe, mas isso é lei. A lei 12.244/10 determina que todas as instituições de ensino do país tenham uma biblioteca até 2020. Mas para que elas cumpram seu papel, é preciso que estejam integradas ao projeto político pedagógico, com acervo – impresso ou digital – permanentemente atualizado e gente formada para promover intenso e extenso planejamento de leituras para alunos de todas as idades e suas famílias.

Para que a mudança aconteça é preciso sempre lembrar que a raiz do problema não está no ensino médio, mas bem antes dele. A solução começa ainda no ensino básico e na formação e valorização do professor, que precisa ser, ele próprio, um bom leitor. Não há caso perdido para educadores e ainda há esperanças para o Brasil. Mas ensinar a ler – e aprender – é fundamental.

*Christine Fontelles é socióloga, diretora de educação e cultura do Instituto Ecofuturo.

O Instituto Ecofuturo é associado GIFE

“Christine Fontelles*

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