Perguntas que os repórteres deviam ter feito sobre a doação de Buffett

Por: GIFE| Notícias| 27/11/2006

*Bruce Sievers

O anúncio de Warren Buffett de sua intenção em doar a maior parte de sua fortuna (cerca de US$30 bilhões) à Fundação Gates gerou uma série de reportagens elogiosas por parte da imprensa. Embora poucos discordem que a doação do sr. Buffett, a maior da história, algo repetidamente lembrado, seja um magnífico ato de caridade, os repórteres que cobriram a história pareciam tão emocionados e admirados que deixaram de fazer importantes perguntas sobre as implicações dessa enorme transferência de fundos filantrópicos.

As perguntas que deviam ter sido feitas têm a ver com as possíveis conseqüências para o mundo sem fins lucrativos, para a prática da filantropia e para o processo democrático. Em suma, problemas relativos ao papel e à supervisão da megafilantropia na sociedade moderna.

Claramente, o sr. Buffett tomou sua decisão com as melhores intenções e, como ressaltou em suas repetidas referências a Andrew Carnegie, a contribuição é consistente com uma importante tradição da filantropia americana. Entretanto, tanto o tamanho do presente quanto seu efeito de dobrar o tamanho da maior fundação do mundo confere a esta uma importância filantrópica única, e é tal influência sem precedentes que sugere a necessidade de uma investigação mais profunda.

Minha lista de perguntas, que acho que deviam ter sido feitas quando Buffett anunciou sua doação, inclui, portanto, o seguinte:

1 – Como as decisões são tomadas na Fundação Gates e quem as tomará?
Na tradição clássica da filantropia privada, é o doador e um conselho selecionado pelo doador que tomam as decisões fundamentais sobre a direção, as prioridades e as diretrizes de uma fundação. Nesse caso, o conselho terá aparentemente três pessoas: Bill Gates Jr., Melinda Gates e Warren Buffett. Reconhecendo o brilhantismo do sr. Gates e do sr. Buffett no mundo da computação e das finanças, respectivamente, tal brilhantismo poderá ou não ser traduzido na arena social em que a Fundação é ativa.

A equipe sênior também tem importante papel na determinação do uso dos fundos, mas ela é, em última instância, contratada pelo conselho e a ele responde. Isso levanta uma segunda pergunta:

2 – Qual é a base de informações para a tomada de decisões?
Como fundação privada, a Fundação Gates é livre para desenvolver, usar ou ignorar qualquer informação que considere útil na busca de seus objetivos, e não há exigência nenhuma para que isso se torne um processo público. O conhecimento de tal processo sugere que o conselho e a equipe sênior recorram de fato à ampla experiência que possuem em seus campos de atuação e deleguem a concessão de recursos a organizações intermediárias.

Entretanto, a Fundação também é conhecida por ser inacessível ao mundo exterior e um tanto indiferente às contribuições das comunidades; na verdade, ela é bem centralizadora em muitos de seus programas. Ironicamente, esse comportamento é muito diferente das práticas no mundo dos negócios, em que o mercado fornece respostas rápidas e poderosas. Como o mundo social não tem um teste de mercado, cabe à equipe e ao conselho da fundação determinar o que está funcionando e o que não está. Isso leva a uma terceira pergunta:

3 – Como é definido o “”sucesso””?
Para o sr. Buffett, o principal motivo de sua decisão é a enorme admiração que tem pelos programas “”altamente bem-sucedidos”” da Fundação Gates. Pelo que sei, há pouca evidência até o momento para avaliar o sucesso da Fundação de um jeito ou de outro.

Na vida acadêmica e científica, idéias e pesquisas são publicadas e criticadas; nos negócios, como se observa, o mercado fornece feedback direto. Mas, na ausência de tais processos no mundo da filantropia, cada fundação é livre para fazer suas reivindicações.

No âmbito da educação, ainda não está claro qual é o impacto das imensas somas alocadas pela Fundação para aprimorar a educação pública, e, até onde sei, a Fundação não está reivindicando nenhum sucesso dramático especial atualmente nesse campo. Assim, qual é a base para o julgamento de Buffett?

4 – E a analogia de Tiger Woods?
Quando perguntado mais detalhadamente sobre a razão para doar seu dinheiro à maior fundação do mundo, controlada pelo homem mais rico do mundo (e por sua esposa), o sr. Buffett disse aos repórteres: “”O que pode ser mais lógico, seja lá no que for, do que achar alguém mais bem equipado que você para fazer isso? Quem não escolheria Tiger Woods para ocupar seu lugar em um jogo de golfe com apostas altas?”” Bill Gates Jr. é o Tiger Woods da filantropia? Como sugere minha pergunta anterior, não há nenhuma evidência razoável a respeito.

5 – E o modelo de Andrew Carnegie?
O sr. Buffett também invocou Andrew Carnegie e seu Gospel of Wealth (O Evangelho da Riqueza) como modelo. Carnegie gostava que seus companheiros de grande fortuna se vissem como comissários dessa riqueza e que dessem seu dinheiro prudentemente para causas sociais antes de morrer. Sua memorável injunção: “”O homem que morre rico morre em desgraça.””

Carnegie foi uma figura admirável ao apontar o caminho, no fim do século XIX, para o estabelecimento da fundação moderna. O livro Gospel of Wealth, também conhecido por seu forte paternalismo, enfatiza o desejo de que os ricos dirigissem os gastos de tais fundos para fins sociais, pois os pobres não eram capazes de fazer isso de forma inteligente sozinhos: “”O homem de posses assim se tornando o único agente e fiduciário para seus irmãos mais pobres, ajudando com sua sabedoria superior, experiência e capacidade de administrar, fazendo mais do que eles fariam ou poderiam fazer para si mesmos.””

O espectro do paternalismo ainda assombra a filantropia no começo do século XXI, e cresce imensamente com o tamanho da fundação.

6 – Qual será o impacto sobre outras instituições filantrópicas e sobre o apoio governamental?
Um problema amplamente discutido no campo dos estudos de atividades sem fins lucrativos é se o apoio filantrópico significativo a uma área de interesse social tende a atrair ou a “”afastar”” o apoio de outras fundações e/ou do governo.

Não há nenhuma evidência conclusiva a respeito, mas, levando-se em conta as enormes somas que serão distribuídas pela Fundação Gates (várias vezes o orçamento total da UNESCO, de acordo com uma estimativa, e quase 10 por cento de todas as doações de fundações nos EUA), poderá haver de fato um efeito “”afastamento”” em uma ou mais áreas de atividade da fundação. E há também o perigo do “”monopólio””, exercido por um grande ator em um campo, nada estranho à Microsoft, o que vai contra a semente da natureza altamente pluralista da prática filantrópica. Trata-se de tópicos que valem a pena pelo menos explorar à medida que a Fundação avança.

7 – Qual é o plano de sucessão da Fundação Gates?
Como fundação privada, cabe ao conselho determinar quem controlará a Fundação quando a tocha passar para as futuras gerações. Como a Fundação Gates permanecerá provavelmente a maior fundação do mundo no futuro previsível, a pergunta sobre a sucessão do conselho terá uma importância cada vez maior ao longo do século XXI. Existe um plano para ampliar a participação ao longo do tempo, ou os membros do conselho permanecerão dentro de duas famílias? Nas próximas décadas, todas as perguntas anteriores serão relevantes não apenas para os atuais membros do conselho, mas também para seus sucessores.

8 – O público faz alguma aposta?
Sugiro que a faça por duas razões: o enorme subsídio público fornecido, cerca de 40 por cento do presente total, como resultado de deduções de impostos, e o impacto potencialmente determinante sobre a agenda pública nas áreas em que a fundação é ativa. Esses fatores, logicamente, se aplicam a todas as instituições privadas de filantropia, mas são ampliados pelo tamanho do pool de fundos Buffett-Gates. Não proponho nenhuma regulação governamental maior, que tem problemas inerentes, mas discuto a necessidade de a fundação ser agressiva e criativa na busca de contribuições públicas de amplo espectro.

Subjacente a todas essas dúvidas, eis uma pergunta ainda mais fundamental: qual é o papel apropriado da riqueza privada no atendimento das necessidades sociais e no estabelecimento de agendas sociais em uma sociedade democrática? Uma tensão inerente, necessária e benéfica, caracteriza nosso moderno sistema de filantropia: um ato de equilíbrio entre o exercício livre da riqueza privada e das responsabilidades públicas de atender às necessidades sociais.

Valorizamos a criatividade que acompanha atos pessoais de filantropia, mas também valorizamos controles democráticos sobre a agenda pública. A concentração sem precedentes da riqueza filantrópica (mais de $60 bilhões em dólares atuais) que será controlada por três pessoas e regida de acordo com seu entendimento particular dos objetivos públicos merece ser assunto de escrutínio, discussão e crítica contínuos por todos aqueles que serão afetados por essas decisões, ou seja, por todos nós.

*Bruce Sievers é Professor Visitante na Universidade de Stanford e ex- Diretor Executivo do Fundo Walter and Elise Haas. Email: [email protected]

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