Pessoas com deficiência de grupos minorizados sofrem mais desigualdades no mercado de trabalho

Por: Fundação FEAC| Notícias| 30/10/2023
Pessoas com deficiência de grupos minorizados sofrem mais desigualdades no mercado de trabalho

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Desde que entrou para o mercado de trabalho, Luciana Viegas, diretora-executiva do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), sentiu dificuldade em se comunicar e interagir com outros funcionários. Por causa disso, não permanecia em um mesmo emprego por muito tempo.

Como justificativa, dizia que era algo da sua personalidade, e sequer imaginava que pudesse haver outro motivo. Mas, após ser diagnosticada com autismo, ela compreendeu que o que lhe faltou nas empresas em que trabalhou foi compreensão da sua condição – e acessibilidade.

O que aconteceu com Luciana é um exemplo da difícil inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. De acordo com o relatório Pessoas com deficiência e as desigualdades sociais no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado em 2022, sete em cada dez pessoas com deficiência estão fora do mercado.

Esse cenário é ainda mais difícil para pessoas com deficiência de grupos minorizados – como mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIAPN+. O relatório aponta que elas são as que mais encontram obstáculos para conseguir uma oportunidade.

Como mulher negra com deficiência, Luciana Viegas se encontra entre essas pessoas que tendem a enfrentar múltiplas desigualdades. Além da visão capacitista de parte da sociedade, podem sofrer com racismo, machismo e homofobia. (Saiba o que é interseccionalidade no box no fim do texto)

A vivência da Luciana e o relatório do IBGE revelam uma realidade pouco inclusiva e diversa da sociedade e, especialmente, do mercado de trabalho. “A inclusão das pessoas com deficiência já é um desafio quando falamos de inclusão social. E fica ainda mais difícil no mercado de trabalho”, constata Julia Piccolomini, consultora de diversidade e inclusão e diretora do Vale PcD, uma consultoria do terceiro setor que visa a inclusão e acessibilidade de pessoas com deficiência LGBTQIAPN+.

Segundo Viviane Machado, coordenadora do Programa Mobilização para Autonomia da Fundação FEAC, o primeiro passo para alcançar a inclusão é considerar as características em conjunto de cada pessoa. “O papel da sociedade não é “classificar” as pessoas dentro de um ranking, pelo contrário, as diferentes características devem nortear as adaptações e apoios que precisam ser disponibilizados para que elas acessem seus direitos e possam se desenvolver plenamente em equidade com as demais.”

Mais de 80% das empresas não cumpriram a Lei de Cotas em SP

Em vigor há mais de 30 anos, a Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência determina que empresas com 100 ou mais empregados reservem de 2% a 5% de suas vagas às pessoas com deficiência.

É lei, mas há empresa que escolhe pagar multa ao invés de contratar uma pessoa com deficiência devido à falta de conhecimento e preparo sobre acessibilidade. No estado de São Paulo mais de 80% das empresas descumpriram a Lei de Cotas em 2019, de acordo com estudo desenvolvido pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp).

Edilayne Ribeiro, líder em projetos de inclusão da organização Ação Social para Igualdade das Diferenças, a Asid Brasil, explica que essa resistência é forte tanto nas empresas quando na sociedade, e que o ambiente empresarial reflete a ausência de inclusão e acessibilidade que persistem nos espaços públicos.

“Elas [empresas] têm receio de ter que ajustar o dia a dia e fazer mudanças arquitetônicas para receber certos tipos de deficiência. Então, travam e não seguem em frente com uma contratação”, diz.

Aparência e tipo de deficiência influenciam na contratação

Ainda que as empresas decidam dar o próximo passo para a admissão de uma pessoa com deficiência, os estereótipos e os preconceitos muitas vezes persistem. Em alguns casos, elas favorecem certos perfis, levando em conta a aparência e o tipo de deficiência.

“Às vezes, a empresa busca o que é mais visível para poder dizer que têm [pessoas com deficiência trabalhando]. Mas também buscam algo mais brando, com menos exigências para que elas não precisem modificar muita coisa ou treinar tanto as pessoas”, fala Edilayne Ribeiro.

O codiretor do Vale PcD Emmanuel Castro, que tem nanismo, é uma das pessoas com deficiência e LGBTQIAPN+ que vivenciou preconceitos no mercado de trabalho. Ele lidou com situações desagradáveis em algumas entrevistas de emprego.

Por mais que seu currículo fosse adequado para as vagas às quais se candidatava, era rejeitado. Segundo ele, a razão é que a maioria das empresas estava em busca por pessoas com deficiência menos grave. “Eu sempre escutava ‘você liga depois’, ‘vem outro dia’, me sentia muito invisível. Eu era visto como incapaz ali de ter possibilidade [de trabalhar] naquele lugar. Eu me sentia muito mal”, relata.

Situações como essa demonstram como a diversidade de pessoas com deficiência – e a noção de que podem fazer parte de outros grupos minorizados – vem sendo pouco discutida nos espaços empresariais. “Já é difícil as empresas passarem pelo processo de mapear, selecionar, contratar, acompanhar. Poucas param para refletir que existem pessoas com deficiência que fazem parte de diversos outros grupos”, conta a líder de projetos de inclusão da Asid.

Vagas afirmativas podem ser uma solução para a inclusão?

Uma medida que as empresas vêm adotando para incluir pessoas de grupos minorizados e ter um quadro diversificado de funcionários é por meio das vagas afirmativas. Isto é, vagas de emprego destinadas exclusivamente a um conjunto de grupos minorizados.

Mas o que a princípio parece a solução para um problema, na verdade, também pode marginalizar alguns grupos minorizados. Ao anunciar uma vaga afirmativa que abrange pessoas com deficiência, pessoas negras e LGBTQIAPN+, a empresa pode priorizar um desses grupos na hora da contratação.

Edilayne Ribeiro enfatiza que dificilmente a empresa considera as exigências de cada grupo minorizado ao juntar todos para concorrerem à uma única vaga. Segundo ela, muitas empresas “não estão preparadas nem para contratar uma pessoa com deficiência, muito menos para entender de fato as necessidades de cada grupo”.

Por causa dessa falta de atenção à inclusão por parte das empresas, pessoas com deficiência de grupos minorizados dificilmente são aceitas em outras vagas que não sejam as exclusivas para pessoas com deficiência. Uma pessoa com deficiência e homossexual, por exemplo, provavelmente não será aceita em uma vaga destinada a pessoas LGBTQIAPN+.

“O capacitismo contra a pessoa com deficiência ainda é muito grande. Porque quando contratam [pessoas] LGBTQIAPN+ para empresa, é sempre LGBTQIAPN+ e não PcD. E quando tem PcD ainda é colocado numa outra caixinha que é mais difícil. Não têm estrutura, adaptação, [nos] veem como problema. É péssimo ser visto com esse olhar, com dó”, desabafa Emmanuel Castro.

Falta de acessibilidade nas empresas impossibilita inclusão

Luciana Viegas, educadora popular, pedagoga e ativista de direitos humanos
Luciana Viegas, educadora popular, pedagoga e ativista de direitos humanos

O diagnóstico de autismo de Luciana Viegas veio tarde, só na fase adulta. Ela descobriu por causa de seu filho, que foi diagnosticado com autismo logo na primeira infância.

Mesmo com o diagnóstico confirmado, as empresas não se mostravam abertas em providenciar acessibilidade tanto nas entrevistas quanto no dia a dia quando estava empregada. E isso lhe rendeu um trauma que carrega até hoje: dinâmica em grupo em entrevista de emprego.

Ela cita como exemplo um dos últimos acontecimentos que viveu antes de desistir da busca por um emprego fixo. Depois de ser aprovada em todas as etapas de um processo seletivo, ela chegou na última fase que consistia em uma atividade em grupo na qual todos os candidatos faziam perguntas uns aos outros. Na sua vez de responder, uma pessoa fez uma pergunta com uma linguagem complexa, que ela percebeu que foi proposital. Como Luciana não conseguia encontrar uma resposta, pediu para que a pergunta fosse reformulada de um jeito mais simples. Apesar de ter solicitado acessibilidade comunicacional no início do processo, a empresa não permitiu a mudança da pergunta.

Ela solicitou um feedback da empresa ao ser desclassificada. “Quando eu questionei, a resposta foi tipo ‘Ah, se você não tem currículo ou se você não tem entendimento talvez aqui esteja a resposta do processo seletivo’”, ela conta. “Eu fiquei pensando sobre isso. O que presume que, a partir de uma ferramenta de acessibilidade na qual eu tenho direito e solicito, eu não tenho currículo para concorrer? Capacitismo. Ou o que presume também que eu não tenha currículo? Racismo.”

Mulheres negras com deficiência enfrentam dupla discriminação

O questionamento da Luciana Viegas tem respaldo nos números que mostram que as mulheres negras com deficiência enfrentam mais barreiras para acessar o mercado de trabalho, se comparadas a mulheres brancas com deficiência e homens negros e brancos com deficiência. A informação está no estudo A situação das pessoas negras com deficiência no Brasil, produzido pelo VNDI em parceria com a Universidade de York e a ONG Minority Rights Group International (MRG).

Quando uma pessoa pertence a mais de um grupo minorizado, ela está suscetível a sofrer dupla ou múltiplas desigualdades. “Esse debate sobre a dupla discriminação precisa vingar no Brasil. [Atualmente] é um debate muito raso. A gente até fala da dupla discriminação de mulheres negras, mas fala pouco sobre as outras identidades que também precisam de atenção e que estão sendo discriminadas”, comenta Luciana.

Para ampliar essa discussão, em 2020, ela fundou o movimento Vidas Negras com Deficiência Importam ao lado de outras pessoas negras com deficiência. O diagnóstico de autismo do filho também a motivou a querer saber onde estavam outras crianças negras com deficiência iguais a ele.

O VNDI atua de forma interseccional e coletiva, englobando as múltiplas discriminações que pessoas negras com deficiência sofrem. “A gente não é só um movimento negro ou só um movimento de pessoas com deficiências, nós somos os dois. Trabalhamos dentro dessa perspectiva, pensando como a gente pode olhar para as políticas públicas que já são atuantes e amplificá-las a ponto de atingir essa população que foi historicamente invisibilizada”, explica Luciana Viegas.

Caminhos para a inclusão de pessoas com deficiência no trabalho

Apenas contratar mais pessoas com deficiência de grupos minorizados ou não para que estejam no mercado de trabalho não é suficiente. As empresas precisam quebrar barreiras, como as atitudinais e arquitetônicas, para que a pessoa com deficiência se sinta incluída. Esse é um processo que envolve mentorias, workshops, treinamento da equipe e preparo do ambiente.

“É muito importante que um líder tenha um viés inclusivo. Se ele vai ser líder de uma pessoa com deficiência tem que ter outras perspectivas e entender coisas diferentes de um líder de uma pessoa que não tem deficiência”, aconselha Edilayne Ribeiro.

O processo seletivo também precisa ser inclusivo e acolhedor. Ao disponibilizar vagas a pessoas com deficiência, é fundamental que a empresa ofereça acessibilidade em todas as etapas.

Julia Piccolomini recomenda adicionar informações de acessibilidade logo no anúncio da vaga como se há ou não rampas no local da entrevista ou um intérprete de libras, requisitos que variam de acordo com as necessidades do candidato. É interessante que o candidato esteja acompanhado de uma pessoa com deficiência da empresa durante o processo para que se sinta representado.

É indispensável que a empresa tenha normas e políticas próprias que garantam os direitos e a segurança das pessoas com deficiência no ambiente. Assim como um código de conduta, que penalize pessoas que pratiquem agressões como capacitismo, machismo, homofobia e racismo.

Outra forma para fortalecer a presença de pessoas com deficiência é promover discussões coletivas sobre diversidade, que abordem raça, deficiência, gênero, entre outros temas. “Mais do que um ato de inclusão, o trabalho é um ato de independência e autonomia. Deve ser o direito básico de todas as pessoas”, diz Julia Piccolomini.

O que é interseccionalidade?

O conceito de interseccionalidade foi criado em 1989 pela ativista americana de direitos civis e estudiosa da teoria crítico racial Kimberlé Crenshaw. Segundo ela, “interseccionalidade é uma metáfora para entender como as muitas formas de desigualdades e desvantagens às vezes podem se combinar e criar obstáculos que nem sempre são compreendidos dentro de maneiras convencionais de se pensar sobre antirracismo e feminismo”.

Em termos simples é o cruzamento de identidades e características que fazem uma pessoa ser quem ela é, como gênero, raça, etnia, idade, sexo ou religião. Por exemplo uma pessoa jovem surda e transexual, uma mulher indígena ou um homem idoso negro.

A interseccionalidade pode resultar em múltiplas desigualdades, também conhecidas como discriminação interseccional. Assim, uma pessoa transexual e surda não sofre discriminação apenas por ser surda, mas também pela sua identidade de gênero.

Ação Espaço Incluir

Uma iniciativa em Campinas que se atentou à interseccionalidade de pessoas com deficiência foi a ação Espaço Incluir, do Projeto Em Construção, concluído no primeiro semestre de 2023. Realizado pelo Centro Educacional Integrado “Padre Santi Capriotti” – CEI Campinas com apoio da Fundação FEAC, o projeto auxiliou Organizações da Sociedade Civil (OSC) que desejavam romper barreiras físicas e atitudinais e oferecer atendimento qualificado às pessoas com deficiência.

O Espaço Incluir trabalhou diretamente com pessoas com deficiência de grupos minorizados, com recorte específico étnico racial e LGBTQIAPN+, com objetivo de orientá-las sobre seus direitos e acesso a serviços públicos. Foram realizadas rodas de conversa presenciais que abordaram informações importantes e temas como comunicação alternativa, sexualidade e direito reprodutivo.

“O projeto tem esse olhar de entender que a questão não é só a deficiência, mas as outras características que podem levar essa pessoa a não conseguir acessar o serviço público ou não conseguir acessar os seus direitos”, diz Leonardo Duart Bastos, superintendente do CEI.

Durante o Projeto Em Construção, o CEI montou uma cartilha para ser utilizada como material de apoio por profissionais de saúde, educação e assistência social que desejam oferecer um serviço eficiente e seguro às pessoas com deficiência. O material explica questões sobre diversidade, saúde e acessibilidade. Acesse a cartilha.

O CEI também produziu um vídeo que explora a interseccionalidade por meio da história de Washington da Conceição Moura, homem negro com deficiência que frequenta a OSC. Assista: 

Por Pietra Bastos

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