Por que o Brasil precisa de acolhimento familiar?

Por: Fundação FEAC| Notícias| 26/06/2023
O IV Simpósio Internacional de Acolhimento Familiar trouxe ao Brasil metodologias e experiências no cuidado de jovens afastados dos pais. O Brasil enfrenta dificuldades.

O IV Simpósio Internacional de Acolhimento Familiar trouxe ao Brasil metodologias e experiências no cuidado de jovens afastados dos pais. O Brasil enfrenta dificuldades.

Por Juliana Di Thomazo* e Rebeca Moraes da Silva*

Durante cinco dias intensos, o IV Simpósio Internacional de Acolhimento Familiar trouxe ao Brasil o que existe hoje de mais profundo em metodologias e experiências no cuidado de crianças e adolescentes afastados dos cuidados parentais. Como tudo que envolve indivíduos em desenvolvimento, acolhê-los da melhor forma em situações adversas é um enorme desafio enfrentado pelas áreas de assistência social, educação, saúde e Justiça em todos os países.

O serviço de família acolhedora é uma modalidade de acolhimento no qual famílias se candidatam para cuidar, em seus lares, de crianças e adolescentes, que por diversos motivos tiveram os vínculos familiares fragilizados a ponto de ser necessário o afastamento provisório de sua família, a partir de uma medida protetiva. Este acolhimento, de acordo com a legislação brasileira, pode durar por um período de até 2 anos.

No Brasil, embora previsto no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), desde 2009, como medida preferencial para esse público, a adesão ainda é baixa. Apenas 7% dessa população é recebida em 432 serviços de famílias acolhedoras em todo o país. Os números parecem pequenos se comparados aos 93% que vivem em instituições. No entanto, essa é uma construção permanente, intensa e cercada de obstáculos e profundas questões a serem cuidadas e compreendidas.

Campinas é berço de prática no Brasil

Campinas faz parte da história do acolhimento familiar no Brasil. Antes mesmo de o termo se popularizar, o município criou o Serviço de Acolhimento e Proteção Especial à Criança e ao Adolescente (Sapeca). O ano era 1997 e o Sapeca serviu de inspiração e modelo para muito do que foi construído depois disso.

Ao longo do tempo a FEAC também tem olhado para essa temática com especial atenção dentre as modalidades de serviço de acolhimento. Desde 2005, a Fundação investe na promoção desse serviço apoiando projetos de família acolhedora desenvolvidos por OSC de Campinas ou mesmo desenvolvendo campanhas de divulgação e apoiando encontros e espaços de debates com intenção aprofundar os diálogos sobre o tema. 

Um dos grandes objetivos do IV Simaf foi justamente aprofundar esse debate e dar mais visibilidade ao tema no Brasil. Hoje se sabe que o acolhimento familiar é a melhor opção para a criança que não está sob os cuidados parentais. Toda literatura e evidências científicas sobre o assunto apontam para os grandes benefícios deste modelo para o desenvolvimento físico, neurológico, psicológico e de saúde mental dessas crianças e adolescentes.

A priorização do modelo de acolhimento familiar ao institucional (sem a intenção de prescindir desse segundo modelo, claro) é um movimento que já ocorreu em diversos países, motivado justamente pela efetividade das próprias experiências vividas, as quais demonstram a importância dos vínculos afetivos e da convivência familiar e comunitária para um desenvolvimento saudável.

Por isso, representantes de municípios e organizações da sociedade civil em todo o país trabalham para ampliar o alcance deste serviço. O simpósio contribuiu para reuni-los em um mesmo espaço e reforçar esta mobilização. Assim como trouxe novas ideias e caminhos possíveis para encorajar outros municípios, que ainda não implementaram o modelo, a fazê-lo.

Palestras, debates e minicursos ajudaram a difundir estudos e pesquisas nacionais e internacionais. Além de promover diálogo e troca de conhecimentos entre especialistas do Brasil e de outras nações, como Espanha, França, Portugal, Inglaterra e EUA, que possuem o atendimento em famílias acolhedoras estruturado há mais tempo. 

Os desafios que o Brasil enfrenta no acolhimento familiar

As experiências internacionais nos ajudam a vislumbrar o futuro, nos dão um norte e sinalizam passos e caminhos importantes a serem percorridos.

Ao conhecer outras realidades, percebemos que um dos obstáculos que o Brasil tem a enfrentar é a previsão orçamentária para a implementação do serviço. A família acolhedora precisa ser muito bem-preparada e assessorada e receber recursos adequados, que estejam à altura da complexidade do caso com o qual se está lidando.

É sempre bom lembrar que nenhuma criança é retirada da família por qualquer coisa, mas por muita coisa. São crianças que têm em sua história uma quantidade de vivências de situações adversas muito grande. Isso precisa ser olhado com muita delicadeza, cuidado e profissionalismo.

O modelo de acolhimento adotado na Espanha contempla diferentes categorias de famílias acolhedoras e subsídios medidos pelo nível de complexidade dos acolhimentos. O país ibérico já tem um serviço muito bem estruturado que inclui a categoria da Família Acolhedora Especializada. Formada por pais profissionais da área, para casos específicos, a remuneração destas famílias chega ao equivalente a R$ 8 mil por mês. No Brasil, o subsídio pago às famílias atualmente é de um salário-mínimo por criança, cerca de R$ 1,2 mil.

A possibilidade, que já é realidade em alguns países, do acolhimento em família extensa, ou seja, por outros membros da família, também foi abordada no simpósio. No Brasil, embora isso seja muito comum, não está regulamentado em todo o país como acolhimento familiar. O familiar que acolhe um sobrinho ou neto não tem acesso ao programa e ao benefício financeiro, superimportante sobretudo para as famílias de baixa renda.

Sobre coelhos e ovelhas: narrativas que curam

“O coelhinho foi morar com outros animais porque a mamãe coelho estava com problemas e não podia cuidar dele. Depois de alguns meses morando com diferentes animaizinhos, o coelhinho passou a viver com uma família de ovelhas. As ovelhas o acolheram com muito amor e deram ao coelhinho toda a atenção que ele precisava, mesmo sabendo que um dia ele encontraria uma outra família que cuidaria dele para sempre.”

No simpósio, uma das experiências relatadas veio de uma equipe técnica de serviço de família acolhedora de São Paulo, que adota narrativas infantis, como essa do coelhinho, para apoiar crianças no processo de compreensão de suas histórias.

Por meio de histórias criadas para cada situação, as crianças vão entendendo aos poucos o que estão vivendo, as dificuldades da sua família de origem e identificando o papel de uma família acolhedora.

Guiados pela equipe técnica, a mãe leu toda a história do coelho para uma criança em acolhimento familiar. M. já se identificava com o coelho e quando seus pais contaram que queriam ser sua família, M. esboçou uma reação de espanto, seguido de sorrisos e abraços. Era o início de sua reintegração à família de origem.

M. já estava com três anos de idade e despediu-se do serviço de acolhimento, de sua família de ovelhas, levando mais esta “história que cura”, instrumento que o acompanhou durante toda sua medida de proteção e o ajudou a elaborar sua trajetória.

Essa é uma entre tantas metodologias utilizadas para trabalhar com as crianças em medida protetiva de acolhimento. Ainda hoje há muito desconhecimento e dúvidas acerca desse serviço que acolhe no Brasil 1608 crianças, segundo dados atualizados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

Eu não vou me apegar? Sim, essa é a ideia.

A intenção de todo o trabalho do Serviço de Família Acolhedora é que a criança seja cuidada em meio a um ambiente familiar e amoroso até que sua família se reorganize em sua função protetiva para recebê-la de volta. Se a família de origem não tiver condições de recebê-la, a criança poderá ser encaminhada para o processo de adoção.

Dessa forma, no serviço de Família Acolhedora, caberá à família cuidadosamente selecionada e preparada, acolher e cuidar dessa criança por um período. No Brasil, as famílias acolhedoras não podem fazer parte do cadastro de adoção e não estarão habilitadas a adotar.

E é nesse ponto que surge um conjunto de dúvidas muito comuns, que também foram abordadas em rodas de conversa, durante o simpósio:

  • Vou cuidar de um bebê e devolvê-lo?
  • Eu não vou me apegar?
  • As crianças vão sofrer mais uma ruptura?

Estudos e experiências mostram que sim, há muito apego, vínculo e afeto envolvidos. E isso é importante e não deve ser evitado, tendo em vista que é por essa necessidade do cuidado afetivo, com intencionalidade de desenvolvimento pleno, que a criança é encaminhada para esta modalidade de serviço.

Mas esta afetividade deve ser trabalhada e cuidada, de modo que as famílias acolhedoras contem com o suporte das equipes técnicas para aprenderem a elaborar e chegar à compreensão da importância do trabalho que fazem, e de que outras crianças poderão também desfrutar deste cuidado individualizado.

Sabemos que após meses cuidando e amando uma criança, as despedidas não são fáceis. As famílias acolhedoras choram, sentem, mas sabem que foram fundamentais e farão parte da história daquela criança para sempre. “Dever cumprido” é um sentimento comum entre aqueles que passaram pela linda e rica experiência de acolher.

Amor e proteção

As crianças que chegam ao serviço, já passaram por alguma violação de direito e já sofreram com o processo de retirada de sua família de origem. Estar em um ambiente familiar de cuidado é fundamental para que siga se desenvolvendo, para que se sinta amada e protegida até o momento de retorno à sua família de origem, ou até que seja encaminhada para a inserção em família substituta (adoção).

Os técnicos do serviço de Família Acolhedora estão preparados para apoiar as famílias a lidar com as questões complexas, apontando caminhos para o processo de aproximação e criação de vínculos de confiança.

É neste ponto que trabalhar a história de vida dessas crianças, independentemente da idade, se torna fundamental para tratar as feridas emocionais carregadas por elas. Contribuindo, assim, para que tenham seu direito à convivência familiar assegurado.

As pesquisas e o respeito a diversidades e especificidades de cada indivíduo ou família são aliados imprescindíveis para que cada pessoa seja plenamente atendida em suas demandas subjetivas. Enquanto isso, suas famílias de origem recebem o apoio necessário para se reorganizarem e se qualificarem para o cuidado protetivo.

Encontros como o Simaf sinalizam caminhos, trazem respostas às dúvidas que surgem neste processo. Além de fomentar novas questões e fortalecer os elos que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Juliana Thomazo

*Juliana Di Thomazo é coordenadora do Programa Acolhimento Afetivo da Fundação FEAC. Formada em História e Serviço Social, se especializou em gestão de projetos. Atua há 18 anos na área da infância, principalmente com as temáticas da primeira Infância e rede de proteção da criança e do adolescente.

Rebeca Moraes da Silva

*Rebeca Moraes da Silva é analista de projetos no Programa Acolhimento Afetivo da Fundação FEAC. Socióloga, já atuou em projetos nas temáticas de Arte e Cultura, Economia Solidária, Tecnologias Sociais, e também como Educadora Social no SUAS.

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