Por que se tornar uma família acolhedora? O impacto para quem acolhe e é acolhido
Por: Fundação FEAC| Notícias| 06/11/2023Campinas é referência e realiza o serviço de acolhimento familiar desde 1997
Todo bebê precisa receber afeto, amor e cuidados da família. É ainda nos primeiros meses de vida que ele começa a engatinhar, imita sons, reconhece vozes, experimenta alimentos e descobre movimentos. Estímulos fundamentais para o seu desenvolvimento e que servem de base para moldar sua relação com o mundo e consigo ao longo da vida. Mas se ele precisar ser separado da sua família biológica, quem cuidará dele?
Bebês, crianças e adolescentes podem ser afastados de suas famílias de origem em casos de abandono, negligência, maus tratos, abuso ou exploração. E, nesses casos, são encaminhados aos serviços de acolhimento institucional ou familiar, sendo que a grande maioria, cerca de 95%, vão para instituições (abrigos ou casas-lares). Saiba o que é acolhimento institucional.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que essa seja uma medida provisória e excepcional, pois o ideal é que o acolhido retorne à sua família biológica. Aliás, o serviço social trabalha para isso, preparando a família de origem para receber novamente a criança ou adolescente. Mas nem sempre isso acontece, e, atualmente, são mais de 32 mil crianças e adolescentes que vivem em acolhimento, segundo dados divulgados em 2022 pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.
“O acolhimento familiar é uma modalidade que oferece uma alternativa para que as crianças afastadas de cuidados parentais tenham garantida a convivência familiar e comunitária. Embora, como serviço, ele possa ser oferecido para crianças de qualquer idade, precisamos garantir que, ao menos as crianças de 0 a 6 anos tenham acolhimento prioritário em famílias”, explica Juliana Di Thomazo, coordenadora do Programa Acolhimento Afetivo, da Fundação FEAC.
O ECA considera o serviço uma alternativa prioritária ao institucional, pois é direito da criança e do adolescente ter acesso à convivência familiar e comunitária. “O preferencial é o acolhimento em família acolhedora para garantir a convivência familiar. Permitir à criança que sofreu uma violação na família de origem experimentar um outro modelo de família e receber cuidados individualizados”, diz a assistente social Maria José Geremias, coordenadora da Proteção Social Especial de Alta Complexidade, da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas.
Maria José explica que no acolhimento institucional a criança precisaria conviver com outras 10 ou 20 crianças. “Apesar de todo o esforço dos profissionais de abrigos e de casas-lares não dá para garantir esse olhar individualizado a todas as crianças”.
Campinas realiza o serviço de acolhimento familiar há 26 anos
No entanto, a modalidade ainda possui baixa adesão no país: existem cerca de 432 famílias acolhedoras em todo o território nacional, de acordo com levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diante disso, a maioria das crianças e dos adolescentes é encaminhada ao serviço de acolhimento institucional.
Desde 2005, a Fundação FEAC investe na promoção do serviço de acolhimento familiar em Campinas. Hoje ela participa do Grupo de Trabalho (GT) do Serviço de Família Acolhedora em parceria com a Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, Secretaria de Comunicação e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
Campinas é referência e realiza o serviço de acolhimento familiar desde 1997. A cidade oferece dois serviços: o Serviço de Acolhimento e Proteção Especial à Criança e ao Adolescente (Sapeca), vinculado à Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, e o ConViver, executado pela OSC Guardinha em parceria com a prefeitura.
Ambos têm capacidade máxima para 20 acolhimentos e pouco mais de metade das vagas estão preenchidas. O ConViver está com nove famílias acolhedoras disponíveis e o Sapeca cinco. Ao mesmo tempo, de acordo com a assistente social Maria José, há 326 crianças e adolescentes em acolhimento institucional no município.
Tem interesse em se tornar uma família acolhedora? Entre em contato com a equipe do programa de acolhimento ConViver por meio dos números (19)99368-1440 ou (19)3772-9699 ramal 9697. Acesse o site guardinha.org.br/conviver.
Também é possível entrar em contato com o Sapeca por meio dos telefones (19)3256-6067 e (19)3256-6335. Para saber mais acesse o site https://sapeca.campinas.sp.gov.br/.
Como se tornar uma família acolhedora?
O primeiro passo para se tornar uma família acolhedora é participar de uma reunião informativa. A exemplo do ConViver, a equipe apresenta o que é o acolhimento familiar, como funciona e quais são os passos e a documentação necessária para conseguir uma habilitação. Depois, é feita uma visita domiciliar para saber como é a estrutura da casa da família.
Finalizada esta fase, a família recebe uma capacitação sobre os cuidados exigidos na primeira infância, infância e adolescência e como se dá o desenvolvimento em cada idade. Além disso, a família acolhedora também vai aprender quais violações de direitos podem levar as crianças e adolescentes ao acolhimento, como é a atuação da equipe do serviço e como é feito o estudo social das famílias de origem.
O processo é classificatório e a cada dinâmica é elaborado um relatório sobre a família. Caso ela se mostre apta em todo o processo, assinará um termo de adesão e estará habilitada para acolher uma criança, ou mais crianças, se desejar, em sua casa.
A família acolhedora pode escolher qual idade prefere acolher, como recém-nascido ou pré-adolescente, e o serviço verifica o endereço de moradia para que ela não esteja próxima da família biológica. O acolhido recebe uma bolsa auxílio do poder público para cobrir seus custos, como convênio médico e alimentação.
A equipe continua se reunindo mensalmente com a família para acompanhar o acolhimento, ser um suporte e trabalhar questões emocionais, eventuais dúvidas ou dificuldades. “Uma das nossas atribuições é essa, cuidar da família acolhedora. Nós fazemos reuniões mensais com todas as famílias e trabalhamos isso em grupo. Mês passado, por exemplo, fizemos um jogo dos sentimentos para que elas possam falar sobre isso. ‘Qual é o sentimento que elas têm durante o acolhimento? E no momento da saída da criança?’. Mas tem outros aspectos que trabalhamos nos atendimentos individuais”, conta Mariana Martins Alves Alcantara, coordenadora de Projetos Sociais na Guardinha e do ConViver.
A duração do acolhimento familiar é relativa, depende do motivo que levou a criança a ser acolhida e se a família de origem está apta ou não a recebê-la de volta. Mariana diz que o ConViver já teve acolhimento de três meses até dois anos, por exemplo. Quando o acolhimento termina, os serviços avaliam se a criança poderá retornar à família biológica ou se será encaminhada para a adoção.
As famílias acolhedoras, enquanto estiverem habilitadas para tal, não podem adotar as crianças. Esta é uma das regras do serviço de acolhimento. Para se tornar família acolhedora, um dos pré-requisitos é que a família não esteja inscrita para adoção.
Cuidados que a família acolhedora deve ter no acolhimento
Há uma série de cuidados que a família acolhedora precisa ter durante o acolhimento. “É o cuidado diário, alimentação, banho, inserção na escola ou em creche, e consulta no Centro de Saúde. Se a família quiser, com a bolsa auxílio que ela recebe, pode pagar um convênio médico. A mãe acolhedora funciona como guardiã da criança neste período em que, paralelamente, é conduzido o estudo social com a família de origem”, explica a assistente social Maria José Geremias.
Se o acolhido é um recém-nascido, por exemplo, a equipe do serviço ensina sobre a influência da gestação na vida do bebê, que depende de afeto e estímulos dos pais biológicos e de uma alimentação adequada da mãe. Também aborda o impacto do consumo de substâncias psicoativas por parte da família de origem, e o que isso pode desencadear no desenvolvimento do bebê.
Mariana, do serviço ConViver, fala que existem acolhimentos de bebês com dias de vida. Por isso, é importante que a família acolhedora dê estímulos, esteja sempre muito próxima, observe e converse com o pequeno. “As pessoas às vezes imaginam ‘É um bebê, não entende o que está acontecendo’, mas ele está ali ouvindo tudo ao seu redor. Falamos na capacitação que a pessoa precisa conversar com o bebê.”
Ela também sugere à família se apresentar como família acolhedora desde o início e explicar o que está acontecendo para o pequeno não estranhar. “Falar ‘Meu nome é Mariana, eu sou sua família acolhedora e vou cuidar de você por um tempo enquanto a equipe está cuidando da sua família’”, exemplifica. Esse diálogo constante cria vínculos com o acolhido e, ao mesmo tempo, reforça o caráter temporário do acolhimento.
Para crianças entre dois e três anos é importante que a família acolhedora incentive o brincar, o estar junto e a formação de hábitos saudáveis que influenciam no desenvolvimento infantil. Também deve ensinar a construir uma rotina de ir à escola, brincar com outras crianças e se alimentar corretamente, por exemplo.
Quando o acolhido é adolescente os cuidados são diferentes e estão mais ligados à responsabilidade e motivação. A família acolhedora tem que estar disposta a ensinar, ouvir e compreender. Por isso, é importante que seja desenvolvida uma relação de confiança entre os dois lados para que certas questões, como a resistência em ir à escola, sejam resolvidas sem desavenças.
É preciso levar em consideração também que ele pode não ter hábitos de higiene básicos, como tomar banho ou escovar os dentes. Mariana conta ser comum ouvir: “‘Tem 15 anos e não sabe tomar banho?’. Não, não sabe. Muitas vezes não foi ensinado a tomar banho”, diz Mariana. Segundo ela, é fundamental ter paciência.
O que acontece com a família biológica durante o acolhimento?
A família biológica também recebe cuidados no serviço de acolhimento para ressignificar o motivo do afastamento da criança. A equipe promove acompanhamentos psicossociais, visitas domiciliares e se reúne com serviços de saúde, educação e assistência social para solucionar as vulnerabilidades. O ConViver, por exemplo, tem uma equipe técnica formada por duas assistentes sociais, duas psicólogas e uma pedagoga.
Se um pai não levava o filho para a escola e em consultas médicas e fazia consumo abusivo de substância psicoativa, ele vai receber atendimento da equipe do acolhimento junto ao serviço de saúde e será encaminhado a um Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
No decorrer desse processo, a equipe envia relatórios à autoridade judicial sobre o atendimento, informando se há progressão ou não e da possibilidade de o acolhido retornar à família de origem.
Mas e o apego?
É normal que a família que deseja acolher tenha dúvidas e inseguranças desde o primeiro contato com o serviço, especialmente sobre o apego ao acolhido. Segundo a coordenadora do ConViver, geralmente a primeira pergunta a ser feita é “Eu vou acolher, mas depois tenho que devolver?”. “E o que nós falamos sempre é que a proposta do serviço é ser um cuidado temporário. É pensar no ato de cidadania, de um olhar para uma criança que está necessitando de um cuidado individualizado”, explica Mariana.
Aliás, o apego é um dos principais objetivos do serviço. Com o afastamento de referências familiares, é importante que a criança e o adolescente formem vínculos afetivos saudáveis com a família acolhedora, pois assim é estabelecido um ambiente seguro e propício ao desenvolvimento.
Diante disso, a formação do apego é inevitável e esperada. Para ajudar a lidar com o sentimento, desde o início, a família acolhedora precisa ter em mente que o acolhimento é temporário e encará-lo como um benefício da modalidade. É um momento para oferecer cuidado, afeto e incentivo à criança para que possa voltar à família de origem de forma saudável. A despedida é como o encerramento de um ciclo, regado de ensinamentos e aprendizados para ambas as partes.
Depois que o acolhimento é finalizado, algumas famílias acolhedoras têm o desejo de manter contato com a criança ou com o adolescente. É possível, mas essa decisão cabe à família adotante ou de origem e ao acolhido. “Nós comunicamos ao judiciário que é importante, porque é uma família que na maioria das vezes cuida por muito tempo, dois anos, cria um vínculo. Mas nem sempre essas famílias permanecem em contato depois”, explica Mariana Martins Alves Alcantara.
“Ser família acolhedora me ensinou o amor altruísta”
O ConViver funciona há 17 anos. Muitas famílias já passaram pelo serviço e algumas acolhem bebês, crianças e adolescentes há mais de dez anos. Nesse tempo, a coordenadora do serviço já escutou diversos relatos emocionantes de famílias sobre a experiência.
“Ouvi pessoas relatarem que vieram para o serviço contribuir com as crianças, mas que perceberam ter aprendido muito mais com elas do que ensinado. Isso me marcou muito. Eu olho para estas crianças o tempo todo e falo que temos muito o que aprender com elas. São pequenos, mas nos ensinam a ter resiliência. Porque são histórias de vida complexas, muitas vezes, violentas, e você vê aquele sorriso no rosto. A vontade é de estar aqui e trabalhar por eles”, se emociona Mariana.
Vanessa do Nascimento Barbosa é uma das mães acolhedoras do ConViver há quatro anos. Ela conheceu o serviço em um passeio no parque, quando sua sobrinha começou a brincar com uma outra criança que estava em acolhimento. Vanessa conversou com a mãe acolhedora, que lhe contou sobre a experiência. Alguns anos se passaram e ela teve a oportunidade de participar do serviço.
Desde então, Vanessa já acolheu um recém-nascido e quatro crianças, com idades entre um e seis anos. Hoje ela está no seu sexto acolhimento, um menino de três anos. “A minha primeira acolhida chegou com um ano e meio. Quando ela chegou era uma criança apática, não falava, não andava, não conseguia pronunciar nenhum tipo de palavra. Quando ela foi encaminhada para a família substituta, era outra criança: sorridente, feliz, emocionalmente saudável”, lembra.
Ela também lembra de dois acolhimentos parecidos que a sensibilizaram bastante: “Quando chegaram na minha casa, elas comiam e bebiam pouco porque não sabiam se iriam ter no dia seguinte. Elas queriam economizar o suco, economizar o prato de comida, e foi bem emocionante para mim e para os meus filhos vivenciar essa situação.”
Ser família acolhedora ensinou a Vanessa e sua família o que é amar, respeitar e olhar ao próximo. “Me ensinou o amor altruísta, que é dar sem receber nada em troca”, diz emocionada. Mas, na verdade, ela recebe um precioso presente em troca: memórias para guardar para sempre no coração. “Cada criança que passa pela vida da gente, deixa uma decoração na nossa casa, deixa uma marquinha na nossa vida, no nosso coração. E a criança vai embora e ficam as lembranças, as memórias afetivas e é muito maravilhoso.”
Saiba mais sobre acolhimento familiar no site da FEAC
O site da Fundação FEAC reúne uma série de materiais que abordam o acolhimento familiar por meio de diferentes perspectivas para enriquecer o tema com informações e fortalecer o serviço em Campinas e no país.
Confira abaixo uma seleção de publicações sobre o acolhimento familiar, como um artigo sobre a necessidade do serviço no país, um bate-papo com especialistas e uma série de vídeos com relatos de famílias acolhedoras.
- Revista Narrativa Social: acolhimento familiar em debate
- Por que o Brasil precisa de acolhimento familiar?
- FEAC na escuta 10: conheça três serviços de acolhimento familiar
- Especialistas debatem dificuldades e avanços da política de acolhimento familiar no Brasil
- Famílias acolhedoras falam sobre suas experiências
Por Pietra Bastos