Por quem florescem as oliveiras

Por: GIFE| Notícias| 15/09/2003

HELIO MATTAR
Presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente

A propósito do último artigo que publiquei neste espaço, “”Do tempo e das oliveiras””, no qual tratei da questão dos tempos dos investimentos e retornos sociais, um amigo me escreveu: “”Retorno para quem?””. Este amigo relata que o sogro, engenheiro florestal na Alemanha, dizia que os reflorestamentos eram feitos para serem cortados dali a duas gerações, o que o intrigava frente ao imediatismo dos dias de hoje.

Vejo os dias que vivemos subordinados a uma lógica quase que estritamente financeira para os investimentos empresariais e me questiono o quanto esta lógica efetivamente é capaz de apropriar a necessidade de preparar o mundo para as próximas gerações. Vejo a crescente concentração de renda e desigualdade social no mundo e não percebo mecanismos de mercado que possam fazer frente a estas questões ou à degradação ambiental, atributos estes que só são considerados na lógica financeira quando há uma pressão pelos consumidores ou investidores nessa direção ou quando há uma ética social que considere e exija o respeito pelas gerações atuais e futuras como parte dos retornos dos investimentos privados.

Seja no reflorestamento na Alemanha relatado pelo sogro de meu amigo, seja no caso das oliveiras de meu primo libanês, a ética que rege as relações sociais e econômicas incorpora diretamente as próximas gerações no processo decisório, desta forma subordinando os retornos financeiros aos atributos de sustentabilidade da sociedade e dos homens. Não ocorre a estas sociedades pensar que o investimento não seja feito por não beneficiar de imediato os que se dispuseram a investir. Esta é a gênese do investimento social por excelência. O investimento em benefício de outros.

Quem serão os beneficiados em tempos futuros dos esforços de mudança social que empreendemos hoje? Quem vai desfrutar das oliveiras que ora plantamos e não veremos florescer? Nossa passagem pela terra é certamente muito mais fugaz que a dessa árvore, tão longeva que a que teve o privilégio de conviver com São Francisco de Assis ainda convive conosco.

Tenho apenas parte da resposta a essas perguntas, aquela que já se manifesta em alguns exemplos resultantes do trabalho da Fundação Abrinq e que me animam a continuar plantando em nosso trabalho social.

Penso em Janaína, uma garotinha de uma favela de São Paulo, que guardava seu único livro, como uma preciosidade, embaixo da mesa, junto com outro bem da família: um saco de cimento para a reforma do barraco, eternamente em obra. Dois bens para a construção de um futuro melhor para Janaína. A esperta Janaína sabia o livro de cor e fez questão de recitá-lo a um voluntário que tinha ido à sua casa entrevistá-la sobre a participação em nosso programa de mediação de leitura para crianças e adolescentes de famílias de baixa renda. O livro tornou-se uma parte importante, vital mesmo, de Janaína.

Penso em Sãopaulino, um rapazola de mãe alcoólatra que fugiu de casa levando o irmão menor, com quem morava em uma caixa de geladeira. Depois de se meter em encrenca e passar uma noite na Febem (“”a pior de minha vida !””), ele passa a freqüentar a escola e um grupo de apoio a jovens que, como ele, estão em liberdade assistida comunitária. Comemora o fato de não estar envolvido com o tráfico de drogas, sensível à moeda de troca que a organização social usa para mantê-lo longe do tráfico: uma bolsa-incentivo, aulas de capoeira, grafite e rap.

Temos notícia de jovens de modestíssimas condições que dispensam a oferta de R$ 300,00 por semana para atuarem como “”aviõezinhos”” do tráfico para receberem R$ 50,00 mensais como auxílio para freqüentarem um curso de formação profissional.

Penso em Antônio, beneficiado dos 5 aos 17 anos por nosso sistema de adoção financeira em uma organização social e que, depois de entrar no curso superior de Engenharia de Computação sente-se obrigado a retribuir o que recebeu dando aulas na organização onde cresceu e pretendendo, tão logo possa, adotar financeiramente uma criança, tal como fizeram com ele.

Penso no Sr. Ruy, que, ao ser brindado com um netinho há dois anos, passou a fazer, em nome do bebê, contribuições à Fundação Abrinq, certamente pensando em fazer chegar a outras crianças aquilo que pôde garantir ao neto.

Não tenho mesmo como responder ao meu caro amigo para além dos exemplos aqui citados. Mas posso dizer que esses exemplos e o sonho de chegarmos a um tempo de mais igualdade e justiça social me bastam. Temos uma dívida enorme para com Janaína, a menina de um livro só. Com Sãopaulino, que mal pode proteger a si e assumiu a responsabilidade de proteger o irmão.

Eu sonho com o sonho desses jovens. E com um mundo que possa investir no que não poderá ver diretamente retornar. E espero que todas as futuras gerações, a partir dessas, desconheçam os infortúnios por que passaram seus pais. Ficaria feliz se o neto do Sr. Ruy não pudesse sequer imaginar o que levou o avô a achar importante contribuir com uma causa como a nossa.

Mas até lá, mãos à obra, porque há muito o que plantar.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 5/2/2002

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