Povos indígenas e a Filantropia

Por: GIFE| Notícias| 24/03/2007

*Rebecca Adamson

O cenário de doadores e povos indígenas é uma miscelânea de diferentes tipos de organizações que apóiam as causas indígenas, mas todas têm uma coisa em comum: não entendem como os povos indígenas pensam, tomam decisões e levam a vida diária.

Nem entendem o simples fato de que a imposição de idéias ocidentais é a antítese da filantropia efetiva. Este artigo sugere dois pontos de partida sugere para as ações socais alcançarem formas autênticas da promoção da diversidade cultural – algo dolorosamente necessário no século XXI e não apenas para os povos indígenas.

Existe um alto nível de desconfiança entre os doadores e as organizações indígenas, que foi sendo desenvolvido com o tempo. Nos primeiros anos desse relacionamento, os doadores geralmente eram muito lenientes. Eles não eram rígidos em termos de relatórios ou finanças, assumindo uma visão bastante paternalista com relação a seus financiados. Infelizmente, isso gerou abusos de ambos os lados, mas, com o passar do tempo, exigências de informações detalhadas para justificar os gastos começaram a vir da Europa e dos Estados Unidos.

O uso de indicadores, avaliações, medidas de impacto, resultados, sistemas complexos e regulamentações de procedimentos se disseminou em nome da transparência contábil e do desempenho. Mas a questão é: transparência contábil para quem e para quê?

O choque de duas visões de mundo

Os povos indígenas lhe dirão, repetidas vezes, que não pensam setorialmente: desenvolvimento econômico, saúde, educação, preservação. Quando as organizações indígenas são financiadas segundo diretrizes de programa estreitas, elas, freqüentemente, desviam fundos para atender a outras necessidades e os doadores objetam. Às vezes, ocorrem acusações de corrupção. Esses mal-entendidos resultam dos doadores encontrarem uma visão de mundo que vê a inter-relação entre os problemas e as soluções. Os povos indígenas são inerentemente brilhantes em termos de raciocínio sistêmico, vendo, analisando e desenvolvendo estratégias inter-relacionadas de solução de problemas.

Na First Peoples Worldwide, por exemplo, o foco das doações é o patrimônio indígena. Isso permite que a comunidade identifique o bem principal – seja ele a água, os peixes, a floresta, o saber tradicional, os jovens, etc. – e decida como vai desenvolver a sua capacidade de controle sobre esse bem e auferir dele benefícios tangíveis para a comunidade.

A globalização de interesses externos, como corporações, governos, ambientalistas e acadêmicos, tornou o confisco dos bens o principal problema que os povos indígenas enfrentam, mas nossa abordagem não é apenas uma resposta direta a esses ataques. É um arcabouço conceitual para encaixar as circunstâncias culturais e contextuais de todas as comunidades indígenas. Por exemplo, financiamos um projeto para reintroduzir o búfalo para os Sioux de Standing Rock.

Foi um projeto ambiental porque o búfalo se alimenta da grama natural e o furão de pé preto voltou pela primeira vez em quinze anos. Também foi um projeto de geração de renda, uma vez que as famílias participantes receberam um bezerro no valor de $650; um projeto nutricional, pois os pastores alimentavam os idosos e abasteciam os programas de merenda escolar; um projeto de arte, pois os produtos derivados eram usados pelos artistas, e, finalmente, um projeto para jovens, em que delinqüentes juvenis eram sentenciados a “”estudar as nações dos búfalos como modelo para as Nações Lakota””.

Redefinindo “”tamanho único””

A filantropia tem uma queda pela abordagem de “”tamanho único”” para a concessão de financiamento, e os financiadores, muitas vezes, preferem uma estratégia de uma só intervenção que tem de funcionar para todos os projetos ou comunidades que financiam. Eu gostaria de sugerir uma definição inteiramente diferente para a abordagem de “”tamanho único””, talvez melhor denominada “”financiamento holístico””.

O financiamento holístico ou culturalmente adequado não tem de sacrificar o foco, a transparência contábil ou o desempenho. Ao contrário, com marcos relevantes e indicadores culturalmente adequados, ele trará transparência contábil e desempenho, juntamente com maiores taxas de sucesso e melhora para ambos os lados do relacionamento entre doadores e povos indígenas.

O primeiro fundo de doação que eu criei, o Eagle Staff Fund, tem um portfólio de cerca de 320 financiados. Em média, os financiados alcançaram completamente 83 por cento dos resultados propostos, com mais 13 por cento alcançados parcialmente. A razão: eles identificaram o problema e definiram a solução. O terceiro elemento-chave é a transparência contábil e, quando todos os três fatores se combinam, uma verdadeira capacidade é desenvolvida.

Como forma de evitar o problema ou, melhor, de chamá-lo de “”um problema de capacidade””, muitos doadores financiam através de intermediários. Eis como funciona. Recentemente, a Gordon and Betty Moore Foundation fez uma doação de $1,5 milhões a um grupo chamado EcoCiencia, uma ONG baseada no Equador, com vínculos muito estreitos com a Conservation International. O objetivo da doação era desenvolver atividades no território Achuar, incluindo distribuição de títulos de terra. De acordo com fontes da área, menos de $150.000 chegarão a mãos Achuar Além disso, a CI é vista pela maioria dos povos indígenas como defensora agressiva da expulsão das comunidades indígenas para dar espaço a parques e áreas protegidas [1]

É extremamente improvável que a doação Moore desenvolva a capacidade das comunidades Achuar, mas, se essa for a intenção deles, por que usar um intermediário não-indígena quando no próprio Equador existe uma comunidade Kichwa de 1.600 pessoas, chamada Sarayaku? Ela teve sucesso em angariar a ajuda de uma série de doadores, incluindo a Oxfam, a IBIS, o Ministério de Recursos Naturais e a Pachamamama Foundation.

Para administrar a substancial quantidade de dinheiro que entra, os Sarayaku decidiram criar seu próprio sistema de contas e controles. Nada disso foi imposto pelas agências doadoras. Eles conseguiram um histórico excelente e uma administração financeira saudável, e possivelmente seriam melhores intermediários para os Achuar. Os Sarayaku certamente teriam mais probabilidade de entender seus pensamentos, suas decisões e sua vida diária. Mas aqui se encontra o cerne do problema causado pelo que eu chamo de “”filantropologia””.

A venda da autenticidade para o diabo

Os filantropólogos são meio filantropos e meio antropólogos, sempre em busca dos povos indígenas autênticos. Em seu livro, Authentic Indians, Paige Raibon diz: “”Para os povos aborígines, a modernidade foi lançada como um processo de distanciamento de sua própria cultura. Afastem-se muito daquela cultura, como a sobrevivência, muitas vezes, exige, e, pronto, os povos indígenas se transformam em algo menos do que autênticos.

As convenções dominantes tornam impossível para os povos indígenas serem aceitos, ao mesmo tempo, como contemporâneos e autênticos. Se queremos que nossos indígenas sejam autênticos, temos de encontrar maneiras de nos lembramos de que eles não são absolutamente contemporâneos.””

Deixe-me esclarecer bem que não estou falando de assimilação, mas sobre pleno controle e auto-realização como povo. Em vez disso, da chegada dos Anglo-europeus às Américas ao confisco de recursos pelas corporações, invasões conservacionistas de terras indígenas e, agora, a chegada dos filantropólogos, as pressuposições racistas de autenticidade criaram uma situação na qual os povos indígenas não têm como ganhar. (Eu digo racista porque, como povo, não temos absolutamente nenhum controle sobre o discurso que nos define e ainda estamos sendo definidos pelos Anglo-europeus.)

As dificuldades da existência e as parcas margens de sobrevivência sob intervenção colonial significam que os povos indígenas não podem abrir mão de oportunidades econômicas, com base na “”venda da autenticidade para o diabo””. Ao mesmo tempo, essas oportunidades coloniais impõem a eles uma percepção colonial de “”autenticidade””. Os povos indígenas superaram essa arrogância e chegaram a “”combinações complicadas e duramente conquistadas de práticas indígenas e coloniais”” que, ao mesmo tempo, garantem a comida na mesa e preservam a identidade indígena.

Adaptando, não sacrificando, a sua cultura

A Nação Makah em Neah Bay, Washington, por exemplo, reviveu sua tradicional caça à baleia, o que gerou 14 telefonemas para o meu escritório de doadores preocupados com o meio ambiente que queriam impedir os Makah de caçar. A essência da cultura Makah e sua identidade como povo reside em sua relação com a baleia. Isso não necessariamente significa que sua cultura precise da caça da baleia em si, mas da relação espiritual com a baleia. Assim, eu propus que o grupo de doadores ambientalistas doassem uma instalação moderna de pesquisa sobre a baleia para que os Makah respeitassem e honrassem sua relação sagrada de uma nova maneira. É difícil dizer qual teria sido o resultado. Os doadores disseram não.

Assim, os Makah continuam a manter a sua cultura viva de uma maneira que aqueles que a consideram uma cultura do passado não aprovam. E certas fundações continuam a trabalhar com base em um arcabouço de idéias que adquiriu um poder de perdurar fetichista.

Mas a filantropia não pode continuar a operar com uma auto-imagem que vê tantos outros como Outros exóticos. A filantropia holística fornece incrível percepção e esperança sobre o tipo de financiamento de que precisamos no complexo mundo de hoje. Basta que os doadores e os povos indígenas possam formular um foco programático e um processo de concessão de recursos não categóricos, em que os sistemas holísticos de pensamento sejam aceitos e as soluções concebidas deixem espaço para as adaptações não previstas, por meio das quais as tribos sempre sobreviveram.

Como Raibon disse (os parênteses são meus): “”Apesar das afirmações coloniais do contrário, a autenticidade da vida aborígine reside não (exclusivamente) na reprodução inconsciente e mecânica dos rituais antigos, mas na geração de formas significativas de se identificarem como [indígenas] em uma era de transformações cada vez mais moderna.””

1 Mac Chapin (2006) Donors and Indigenous People in South America (relatório inacabado) .

*Rebecca Adamson é presidente da First Peoples Worldwide. E-mail: [email protected].

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