Projeto auxilia jovens que cresceram em abrigos a se prepararem para maioridade

Por: Fundação FEAC| Notícias| 28/02/2022

Voluntários são preparados para serem mentores e uma referência afetiva para jovens em acolhimento.

Voluntários são preparados para serem mentores e uma referência afetiva para jovens em acolhimento.

Vivendo em serviços de acolhimento institucional, muitos meninos e meninas não retornam à família de origem nem são adotados. Quando completam a maioridade, eles precisam deixar a instituição, independentemente de estarem preparados ou não para uma vida autônoma. “O principal desafio é ter que enfrentar o mundo sabendo que é você por você mesmo, sem tia ou tio acompanhando”, diz Vitória Pereira da Silva, 19 anos, que há um ano deixou o abrigo onde morou desde os 6.  

Ela é uma das participantes do projeto Trilhar, que oferece mentorias individuais para adolescentes entre 15 e 18 anos que vivem em serviços de acolhimento de Campinas, com o objetivo de auxiliá-los em sua transição para uma vida adulta independente. O projeto é realizado desde 2018 pela Fundação FEAC em parceria com a Guardinha, organização da sociedade civil (OSC) de Campinas. 

Em fevereiro de 2022, o encerramento do primeiro ciclo do projeto foi marcado pelo desligamento de 17 jovens que já atingiram a maioridade, como é o caso de Vitória. Eles participaram de uma cerimônia de encerramento, onde receberam seus certificados, após três anos de mentoria. Durante 2022, outros 17 jovens seguem no projeto.  

“Na saída do acolhimento, o jovem se encontra no árduo desafio de enfrentar a autonomia financeira, o mercado de trabalho, a geração de renda, o exercício da cidadania, dentre outras tarefas que todos nós temos que enfrentar diariamente”, avalia Renato Franklin, líder do Programa Acolhimento Afetivo, da FEAC. 

Na situação de acolhimento, eles contam com desafios adicionais, uma vez que são jovens que enfrentaram as barreiras do afastamento familiar. “A maior parte da rede de apoio deles está entre os profissionais dos serviços. E quando a gente fala que, aos 18 anos, eles têm que sair do acolhimento, eles entendem a independência como se estivessem sozinhos no mundo”, analisa Natália Ferrari Boldrini, psicóloga e técnica do Trilhar.  

Preparando os jovens para o mundo 

No Trilhar, os jovens desenvolvem um projeto de vida com o apoio de um(a) mentor(a), estabelecendo metas e estratégias para alcançá-lo. As metas são guiadas por quatro eixos principais: moradia, trabalho, uso consciente do dinheiro e apropriação da cidade. “A conquista do Trilhar é colocar os jovens no mundo, fazendo com que eles se tornem conscientes de todos esses eixos e os coloquem em prática”, avalia Natália. 

Os encontros entre jovem e mentor costumam ser quinzenais, em locais públicos como praças, parques e Centros Educacionais Unificados (CEU). A ideia é que os jovens acessem diferentes linhas de ônibus, modos de locomoção, e desenvolvam sua autonomia para circular pela cidade.  

“Quando o projeto começou, tínhamos jovens que não sabiam pegar um ônibus, por exemplo, para chegar aqui na Guardinha”, conta Natália. Após três anos, o projeto mensurou que 86% dos jovens participantes têm autonomia para circular pela cidade, e 75% fazem uso independente de espaços públicos de cultura, lazer e esporte. 

O percurso percorrido para se chegar a esses resultados não é simples: todos os jovens do Trilhar possuem longa permanência nos abrigos (oito anos ou mais). A psicóloga avalia que, dentre outros fatores, a rotina institucionalizada impacta no desenvolvimento da autonomia, uma vez que eles convivem com até 20 outras crianças e adolescentes no mesmo abrigo.  

“É mais difícil ensinar o adolescente a ir ao centro de saúde fazer a sua ficha cadastral, do que um técnico do abrigo fazer a ficha de todos no mesmo dia”, exemplifica. Assim, acabam tendo poucos espaços de expressão e decisão junto aos adultos cuidadores. 

Nesse ponto, o Trilhar entra para fazer a diferença, já que cada adolescente é acompanhado de maneira individual. Todos os mentores são voluntários que assumem o compromisso de se tornarem uma referência afetiva para os jovens e ajudá-los a ampliarem seus repertórios de mundo. 

Além dos encontros quinzenais, os técnicos do Trilhar realizam acompanhamento semanal com cada mentor, a fim de orientá-los sobre as estratégias de ação. 

Desafios e conquistas dos mentores 

Helena Aparecida de Oliveira, 60 anos, formada em letras e professora aposentada, abraçou o desafio de ser mentora. “Na sala de aula, eu tinha 30 alunos por aula, a relação não é tão próxima. Eu não me lembro de ter passado por mim um aluno que morava em abrigos. Foi uma realidade muito diferente”, diz. 

Desde 2019, ela já foi mentora de dois jovens e, em 2022, vai continuar com seu atual mentorado, que está prestes a completar a maioridade. “O grande problema é: quando chegam aos 18 anos, para onde vão? A nossa angústia é que Campinas não tem vagas suficientes nas repúblicas.” 

As repúblicas são serviços previstos no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que oferecem acolhimento provisório para jovens nessa situação, até os 21 anos. Em Campinas, porém, há apenas duas, uma masculina e uma feminina, com seis vagas cada.   

“Uma vez que conseguem moradia, a dificuldade é se manter: como eles vão cuidar de si numa casa? Eles não têm essas habilidades desenvolvidas. Toda hora estou abordando isso com eles”, diz Helena.  

No Trilhar, 65% dos adolescentes estão mapeando a rede de serviços do território para sua futura moradia. Enquanto isso, 83% já são capazes de se organizar sozinhos quanto aos compromissos de rotina de uma casa e são conscientes das demandas para a sua manutenção. 

Em relação ao mercado de trabalho, Helena avalia que é o maior desafio. De fato, no início do Trilhar, 100% dos jovens participantes apresentavam defasagem escolar. Como consequência, eles ficavam em desvantagem nos processos seletivos. 

“Aos poucos, eles foram compartilhando metas para fazer uma organização de estudo semanal e conseguir terminar o ensino médio”, conta a psicóloga Natália. Nos três anos do Trilhar, 85% dos jovens tiveram alguma experiência de trabalho, seja formal ou informal. Atualmente, 42,2% estão inseridos no mercado formal. Desses, 43,9 estão empregados por meio do programa Jovem Aprendiz.  

Após a experiência com o primeiro mentorado, Helena analisa que está mais “pé no chão”. “Eu já tomei consciência que nós não mudamos a vida desses jovens da maneira que a gente sonha. Os poucos avanços já são importantes.” 

Com o atual jovem, a mentora comemora as pequenas grandes conquistas, como a relação de confiança que vai se construindo entre a dupla. “Quando um jovem te liga, você já ganhou mil pontos com ele. Ontem ele me ligou e já definiu o horário do nosso encontro, cheio de atitude”, orgulha-se.  

Helena define que o Trilhar é um aprendizado de vida, tanto para o jovem quanto para o mentor. “A gente aprende sobre esse universo que até então só tinha ouvido falar pela TV, mas entrar em contato é muito diferente. Você aprende que cada jovem é uma história.” 

Adolescentes em acolhimento 

Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que o acolhimento institucional seja uma medida provisória e excepcional. O ideal é que haja reintegração à família de origem (mãe e pai) ou extensa (demais familiares) ou, após essa possibilidade se esgotar, as crianças e adolescentes sejam encaminhados para uma família substituta, por meio do processo de adoção. 

“A primeira opção é fazer a reintegração familiar. Muitas vezes, acaba não ocorrendo pelas próprias questões que geraram o acolhimento: conflitos familiares, violência física, violência psicológica, negligência, entre outras”, explica a psicóloga Natália.  

Em 2017, uma alteração no ECA definiu que a permanência em acolhimento institucional não deve se prolongar por mais de 18 meses. Porém, muitas vezes, esse tempo acaba sendo superior, como no caso dos jovens do Trilhar. Quanto mais tempo a criança ou adolescente passar no abrigo, menores são as chances de conseguir uma família substituta.  

“O perfil buscado para adoção, majoritariamente, são crianças. Os adolescentes acabam não entrando nesse perfil ‘adotável’, por isso acabam permanecendo até os 18 anos dentro do serviço de acolhimento”, observa a psicóloga.  

Em Campinas, há aproximadamente 350 crianças e adolescentes em situação de acolhimento, segundo dados de 2020 da Secretaria Municipal de Assistência Social. Dessas, aproximadamente 43% têm entre 12 e 17 anos.  

Os planos de Vitória 

Vitória Pereira da Silva era uma dessas adolescentes. Ela cresceu em um serviço de acolhimento e, em 2018, começou a participar do Trilhar. “A minha mentora era um amor de pessoa. A gente costumava se encontrar em lugares abertos, em parques como o Taquaral, e era muito bom”, conta.  

Juntas, elas foram definindo metas pessoais e profissionais para Vitória, como dar continuidade na escola, fazer cursos técnicos e arrumar um trabalho como aprendiz.  “Nesse tempo eu fui tentando atingir as metas. Às vezes não dava certo, às vezes dava.”  

Muita coisa já deu certo: hoje, aos 19 anos, ela garantiu uma vaga em uma das repúblicas de Campinas, está trabalhando e se prepara para encerrar seu ciclo no Trilhar. Mas esse é só o começo: desejos de uma vida independente e planos para o futuro não faltam. 

“Eu quero ter um emprego fixo, em que eu ganhe salário de gente grande, porque eu mereço, chega de Jovem Aprendiz. Quero ter meu cantinho e quem sabe, um dia, uma família. Quero investir em técnico de enfermagem para atuar na área da saúde, cuidar das pessoas e salvar vidas”, almeja Vitória.  

Por Laíza Castanhari

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