Proposta de alteração nas normas que regulam doações para entidades sem fim lucrativos
Por: GIFE| Notícias| 03/11/2014O ITCMD (ou Imposto sobre Transmissão ′Causa Mortis′ e Doação) é um imposto brasileiro de competência dos Estados e do Distrito Federal que ainda gera muitas dúvidas entre as organizações da sociedade civil. Em linhas gerais, a aplicação dessa norma incide sobre as doações de bens ou direitos a pessoas ou organizações.
É fato que, ainda hoje, muitas organizações sem fins lucrativos enfrentam dificuldades para lidar com os procedimentos para recebimento de doações. Ainda existe muita desinformação no setor e diversas entidades acabam operando de forma irregular.
Tendo como pauta essa, que é uma das agendas mais importantes para a sociedade civil no campo regulatório, o Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Fundação Getúlio Vargas promoveu, com o apoio do GIFE e da Associação Paulista de Fundações (APF), um evento para discutir uma proposta de alteração nas normas que regulamentam o reconhecimento da imunidade e isenção das organizações da sociedade civil (OSCs) em relação ao ITCMD no Estado de São Paulo.
Para entender mais sobre essa articulação e esclarecer dúvidas recorrentes sobre o tema, conversamos com a advogada Flavia Regina de Souza Oliveira, sócia da Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados e pesquisadora do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Fundação Getúlio Vargas. Confira:
redeGIFE ‐ Para começar, gostaria que você explicasse o que é o Imposto sobre Transmissão ′Causa Mortis′ e Doação, ou ITCMD.
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ É um imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal que incide sobre qualquer doação, inclusive para as feitas às organizações sem fins lucrativos.
redeGIFE ‐ E como ele funciona? Em que casos ele é aplicado?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ o ITCMD é um imposto estadual e posso aqui falar sobre o exemplo de São Paulo, que é inclusive um caso de vanguarda. Ele é um dos poucos estados no Brasil que regulamenta doações específicas para organizações sem fim lucrativos que atuem na áreas da cultura, defesa e proteção dos direitos humanos e meio ambiente.
O estado de São Paulo estabelece uma isenção geral, que vale para qualquer tipo de doação, não apenas para organizações sociais, em um valor aproximado de até R$ 50 mil (base de 2014). Ou seja, todas as doações realizadas de um mesmo CPF ou CNPJ que não ultrapassem esse valor estão automaticamente isentas do ITCMD, sem nenhum tipo de procedimento ou risco para quem doa ou recebe. Já para doações acima de 50 mil, existe um outro procedimento.
redeGIFE ‐ E como funciona nos casos de doações acima desse valor?
Para casos assim, existe um processo de isenção para essas entidades, desde que elas tenham um certificado de reconhecimento junto às secretarias temáticas.
redeGIFE ‐ O que isso significa? Como conquistar esse certificado?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ A solicitação ocorre junto à Secretaria da Fazenda, um procedimento administrativo perante aos órgãos de controle. Regra geral, as entidades precisam apresentar uma série de documentos e demonstrar que elas atuam na área temática específica, mostrar que estão em efetivo funcionamento e que mantêm escrituração contábil. Logo, elas têm que apresentar estatuto social, ata de eleição de diretoria, balanço, demonstrações contábeis, relatório de atividades, entre outros documentos. Cada secretaria pode exigir algum documento específico. Cada uma editou sua própria norma.
Assim é deferido esse reconhecimento, que acontece a partir da publicação no Diário oficial e tem validade de um ano. Esse certificado precisa, anualmente, ser renovado três meses antes de seu vencimento. Ou seja, em nove meses a entidade precisa entrar com um processo novo de renovação.
Feito isso, a organização precisa passar também por um segundo procedimento administrativo perante a Secretaria da Fazenda. Ela tem que provar novamente que está em efetivo funcionamento, registrada no cartório e tudo mais. Uma série de burocracias. Ao final do processo, se não houver nenhum deferimento, ela consegue o certificado de isenção do ITCMD.
redeGIFE ‐ Estamos falando de procedimentos que parecem ser bastante repetitivos, burocráticos e morosos para o reconhecimento da isenção, certo?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Exatamente.
redeGIFE ‐ Apesar da boa intenção dos órgãos de controle em prezar pela legalidade, isso parece soar como um desestímulo para entidades, que muitas vezes desconhecem os procedimentos e acabam operando de forma irregular.
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Sim, esse é o cenário.
redeGIFE ‐ Então podemos dizer que muitas organizações estão operando na informalidade nesses casos de doação?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Podemos olhar os números. Hoje no estado de São Paulo temos menos de 300 organizações certificadas como entidades temáticas (e que, portanto, podem recorrer à isenção do ITCMD). E, de acordo com dados oficiais, devemos ter aproximadamente 24 mil organizações da sociedade civil que atuam eventualmente nessas áreas no estado todo. Então, podemos ter uma ideia do número de entidades podem estar atuando fora das normas.
redeGIFE ‐ E você poderia explicar o que acontece quando uma entidade é autuada por operar irregularmente?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Supondo que uma organização receba uma doação sem saber que era necessário ter o certificado de isenção e o fisco percebeu que ela não recolheu o imposto, caracteriza‐se aí uma irregularidade.
Ou seja, será calculado os 4% do imposto referente ao montante recebido, além da multa moratória do atraso, a multa punitiva e os juros calculado dia a dia até a efetivação do pagamento. Com base no prazo estabelecido, essa entidade poderá se defender perante o fisco ou pagar o valor devido.
redeGIFE ‐ E essa autuação pode, de alguma forma, afetar também o doador?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Sim. O que pode acontecer é, em caso de não pagamento no prazo, a Fazenda pode cobrar todo esse procedimento do próprio doador. Ou seja, ele fica solidário, como contribuinte, pelo pagamento da obrigação tributária que a organização está sujeita.
redeGIFE ‐ Dado todo esse cenário de insegurança legal, gostaria que você explicasse a proposta de reforma dos procedimentos dessa norma sobre a aplicação do ITCMD sugerida pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Direito GV.
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Bem, é preciso dizer que toda a regulamentação no estado de São Paulo tem uma base legal, a lei 10705, e os procedimentos são formalizados por uma portaria da Secretaria de Fazenda. E como pensamos em ajudar a melhorar o sistema? Não partimos para uma proposta de mudança de lei, o que poderia levar muito tempo. Optamos por focar alguns pontos de mudança que seriam interessantes para todas as partes e que poderiam desburocratizar esse procedimento, garantindo segurança para os órgãos de controle, e isso é muito importante, além de transparência no processo e responsabilização por parte das entidades.
Nesse sentido, estamos usando como base um mecanismo que já existe aqui em São Paulo, que é o cadastro estadual de entidades, criado em 2011 e aprovado por um decreto. Esse é o Certificado de Regularidade Cadastral de Entidades (CRCE) e demonstra que a organização está apta a receber recursos públicos.
Esse certificado tem funcionado muito bem. Para conquistá-lo, as entidades precisam apresentar uma série de documentos, tais quais CNPJ, ata de eleição de diretoria e demonstrações contábeis. Elas passam ainda por vistorias para que a Corregedoria Geral da Administração verifique se aquelas informações são verdadeiras e se estão em efetivo funcionamento.
Esse sistema pode, inclusive, receber novos dados, conforme acordo dos próprios órgãos da administração. Ou seja, o ITCMD poderia ser um novo campo nesse sistema. Mais do que isso, todos os órgãos públicos de controle poderiam compartilhar as informações que já estão disponíveis. Então, em linhas gerais, a proposta é utilizar um cadastro que já existe e funciona, integrando informações das secretarias temáticas e Corregedoria, para emissão do Certificado de Reconhecimento de Entidade Temática. Resumindo, seria um acordo entre os órgãos de controle, considerando todos os documentos que cada um julga necessário, para a fiscalização, para simplificar e unificar os procedimento de reconhecimento de isenção.
redeGIFE ‐ E com relação ao prazo de um ano para renovação?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Também estamos propondo aumentar o prazo de validade do reconhecimento de isenção, considerando o prazo atual do CRCE, que é de cinco anos se a entidade estiver cumprindo todos os requisitos. Claro, levando em conta também as atualizações anuais de determinados documentos e informações. Estamos, ainda, solicitando à Fazenda uma publicação no site de todas as entidades que estão certificadas.
redeGIFE ‐ Hoje aconteceu o evento que discutiu a proposta de alteração nas normas. Como foi e o que vem depois?
Flavia Regina de Souza Oliveira ‐ Já existe um diálogo aberto com órgãos de controle, um esforço que teve apoio do GIFE e da APF e teve espaço na FGV em um caráter mais acadêmico. Hoje, nesse workshop tivemos a oportunidade de dialogar com as secretarias temáticas, Secretaria da Fazenda e Corregedoria Geral do Estado em um mesmo evento.
Agora estamos em um trabalho de sistematizar todas as contribuições para entregar aos órgãos um documento final. Estamos felizes que o debate está evoluindo.