Qual o papel das empresas no esforço para atingir os Objetivos do Milênio?
Por: GIFE| Notícias| 23/05/2005MARKUS BROSE
Diretor executivo da Care Brasil
O Brasil não é um país africano. Se fosse, a relação das ONGs com as empresas seria muito simples e se resumiria à captação de recursos das organizações da sociedade civil junto aos empresários. Mas o Brasil não é um país pobre, está entre as dez maiores potências industriais do globo. E, portanto, o papel das ONGs no combate à pobreza no Brasil é diferente da maioria dos outros países, o papel das empresas deve ser mais complexo e o debate sobre os Objetivos do Milênio deve ser diferente. Desde o fim da ditadura, a sociedade brasileira vem passando por um debate muito rico e diversificado sobre o combate à pobreza, e além disso desenvolveu uma sociedade civil diversificada que poucos países tem.
Se o Brasil não é um país africano, qual o papel das empresas? O discurso tradicional junto aos empresários quanto ao seu papel na responsabilidade social em geral – e quanto aos Objetivos do Milênio em especial – enfatiza duas vantagens comparativas que a iniciativa privada tem frente aos demais atores sociais: a disponibilidade de recursos financeiros e o know how dos gestores, que se traduz em conhecimento especializado e capacidade de gestão.
Na prática, os empresários acabam sendo freqüentemente procurados por ONGs apenas para viabilizar o acesso aos recursos financeiros para ações de responsabilidade social. Fala-se muito em parceria, mas geralmente não se espera e não se pratica um verdadeiro envolvimento do empresariado, que acaba delegando as ações sociais aos profissionais de recursos humanos ou de marketing na empresa. Daí decorrem freqüentes limitações na relação com projetos sociais, por exemplo, quando empresas não realizam um acompanhamento do impacto no sentido qualitativo das ações, dos processos de mudança desencadeados e que dificilmente podem ser fotografados, mas privilegiam um enfoque quantitativo de avaliação.
A Care Brasil quer convidar os empresários a buscarem uma nova qualidade no seu envolvimento com os Objetivos do Milênio. Queremos propor um avanço no entendimento do que pode constituir responsabilidade social, valorizando, para além da doação de recursos financeiros e ações voluntárias, outros potenciais da iniciativa privada como: poder de organização e pressão e conhecimento gerencial.
Diferente da situação em muitos outros países, para a Care está claro que os seus quatro programas no Brasil (Norte do Piauí, Sul da Bahia, periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro), como exemplos de muitos outros programas de ONGs espalhados por este imenso país, não podem substituir a responsabilidade do Estado no combate à pobreza. Após 60 anos de experiência em mais de 70 países, a Visão da Care estabelece o mandato para que se atue sobre as causas estruturais da pobreza. E como o Brasil não é um país africano pobre, isto implica em reconhecer a responsabilidade central do Estado brasileiro na erradicação da pobreza. Partimos do princípio de que o combate de forma sustentável à fome e à miséria se dá através do principal instrumento que a nossa sociedade criou para a democratização da qualidade de vida: o Estado do Bem-estar Social. A longo prazo, em larga escala, são as políticas públicas que deverão acabar com a pobreza no país. E esta não é uma argumentação ideológica, ela é pragmática: nós já pagamos impostos suficientes para que isto se torne realidade.
Não pretendemos inibir o investimento social das empresas ou mesmo isentar as empresas de sua responsabilidade – afinal, as empresas detêm conhecimento e riqueza. E nós, ONGs, precisamos de apoio em ambos os sentidos. A doação feita pelo empresariado possibilita ações pontuais de impacto, projetos inovadores que não seriam possíveis de outra forma, além das clássicas iniciativas complementares ao Estado. A doação pelo empresariado deve continuar, mas devemos buscar também o próximo passo. Não queremos apenas relações bilaterais entre ONGs e empresas. Precisamos de um tripé que envolva também o Estado.
Se queremos um setor público que implemente de fato um dos principais instrumentos de combate à pobreza no país, a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), o empresariado pode começar a utilizar mais a segunda vantagem comparativa da qual dispõe: seus recursos humanos, seu conhecimento.
Sabemos que, para monitorar as prioridades e acompanhar os avanços no alcance dos Objetivos do Milênio no Brasil, não podemos nos guiar pelas palestras ou folhetos de divulgação. Prioridades são definidas não pelas intenções, mas pela alocação de recursos. Portanto, a busca pelo entendimento e avaliação das políticas públicas quanto ao alcance dos Objetivos do Milênio deve se guiar pelo escrutínio e análise do gasto dos recursos públicos.
O alto grau de transparência que a tecnologia permite hoje em dia nos possibilita o ativo monitoramento das políticas públicas. Mas, quais os gastos públicos que devemos conhecer e analisar? Os projetos especiais, os programas de curta duração que mudam após cada eleição, os Fundos Especiais de Combate à Pobreza que se tornaram moda nos Governos Estaduais? Não. O alcance de forma sustentável dos Objetivos do Milênio se dá pelas clássicas políticas e inclusão social: educação pública de qualidade; saúde pública de qualidade; assistência social como direito, não como favor; geração de trabalho e renda, todas complementadas por uma política pública ainda pouco valorizado no debate sobre o combate sustentável à pobreza: acesso à justiça ágil e de qualidade.
O próximo passo consiste em que os empresários comecem a participar ativamente da ampliação do controle social neste país, algo até agora restrito às ONGs, aos militantes comunitários e aos movimentos sociais. Trata-se bem mais do que seguir os indicadores propostos pelo Ethos ou responder aos questionários da Transparência Internacional.
O tradicional descaso da sociedade brasileira – e da iniciativa privada em especial – para com os destinos do setor público se traduz, por exemplo, na ausência da exigência de cursos técnicos ou superiores em gestão pública para os ocupantes de cargos de direção, o que é inadmissível nas empresas onde se exige qualificação profissional em economia e administração para contratação dos funcionários. A baixa qualidade da gestão pública implica em baixa qualidade de serviços públicos e, portanto, na velocidade com a qual atingiremos os Objetivos do Milênio.
O empresariado não deveria nem esquecer o Estado, ao se concentrar apenas nas ações de responsabilidade social, nem simplesmente combater o Estado como ocorreu nos anos 90. O engajamento inteligente consiste em ampliar o controle sobre o Estado. Fazê-lo funcionar para que possa ser responsabilizado pelos Objetivos do Milênio, pelo cumprimento da Loas e da Constituição Cidadã.
Com toda certeza, o empresariado deve manter o atual processo de ampliação e profissionalização da responsabilidade social no país. Mas queremos convidar os empresários a pensarem também na próxima etapa da responsabilidade social, envolvendo não somente as ONGs, mas também o setor público. Para contribuir com o debate do “”como fazer””, gostaríamos de apresentar algumas sugestões concretas de atuação da iniciativa privada em duas esferas.
De início, ações que se situam no âmbito da esfera de governabilidade do empresariado:
1.1) a qualificação e profissionalização das Associações Comerciais e Industriais – ACIs dos milhares de pequenos municípios, transformando-as em verdadeiras agências de desenvolvimento empresarial e desenvolvimento local, por exemplo, de acordo com a tecnologia social desenvolvida pelas ACIs de Santa Catarina;
1.2) a despartidarização da gestão das organizações que integram o Sistema S, bem como o envolvimento dos trabalhadores na gestão qualificada de um dos maiores patrimônios da iniciativa privada no país;
1.3) a difusão de programas de fomento ao empreendedorismo, que pode ser empresarial, mas também coletivo e social, por exemplo, através da tecnologia social dos programas da ONG Junior Achievement;
1.4) a ampliação da cultura do uso de planos de negócios em projetos e programas de desenvolvimento do setor público e das ONGs;
1.5) a participação ativa na criação de fundações comunitárias de desenvolvimento regional, tecnologia social difundida, por exemplo, no interior do Rio Grande Sul e de alto impacto na melhoria sustentável da qualidade de vida em microrregiões.
Além disso, ações que podem se dar através da atuação da iniciativa privada organizada junto ao Estado:
2.1) o investimento em programas inovadores de ONGs, cujas lições aprendidas possam servir de referência para a posterior qualificação de políticas públicas;
2.2) a demanda pela adoção em órgãos públicos de programas de qualidade e de certificação em normas ISO como, por exemplo, desenvolvido pelo Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade;
2.3) a participação em um processo continuado de despolitização e profissionalização dos Tribunais Estaduais de Contas, principal instrumento de nossa sociedade para controle do uso dos impostos que pagamos;
2.4) o engajamento em campanhas de ampliação do controle social e combate à corrupção, por exemplo, a campanha “”De olho no orçamento”” no Ceará ou a campanha “”Quem não deve não teme”” na Bahia;
2.5) o envolvimento do empresariado com sua expertise e conhecimento nos espaços municipais e estaduais de participação dos muitos conselhos e fóruns criados ao longo da última década;
2.6) o apoio no estabelecimento de observatórios de acompanhamento das políticas públicas e monitoramento da qualidade de vida, tecnologias sociais testadas, por exemplo, em esfera estadual pela Assembléia Legislativa de São Paulo, em escala microrregional pelas agências de desenvolvimento no interior do Rio Grande do Sul;
2.7) o financiamento, apadrinhamento e apoio a cátedras e/ou escolas de formação das futuras lideranças comunitárias e lideranças políticas sob uma visão empreendedora e com um enfoque ético, em escolas técnicas e instituições de ensino superior tal como ocorre, por exemplo, no apoio a escolas de administração de empresas.