Quando as pessoas pobres ajudam umas às outras e por quê?

Por: GIFE| Notícias| 27/02/2006

Susan Wilkinson- Maposa e Alan Fowler*,
especial para Alliance

A noção de filantropia horizontal se baseia em pessoas pobres ajudando outras que passam necessidades, em contraste com a filantropia vertical, mais convencional e visível, do rico para o pobre. Este artigo analisa mais de perto a filantropia horizontal e reflete sobre algumas de suas implicações. Ele constrói um esquema que vincula quatro fatores que afetam a probabilidade de que uma pessoa pobre ajude a outra.

Informações obtidas através do projeto Building Community Philanthropy (BCP) na África do Sul sugerem que um sistema de filantropia horizontal atua como um processo auto-organizado e auto-regulamentado, em que as pessoas que são pobres mobilizam e compartilham recursos entre si em resposta a uma necessidade ou a um problema.

Essas transações fornecem tipos de assistência mútua e de coesão social que aumentam muito as chances de sobrevivência, compartilham os riscos e ajudam a resistir às privações. Em alguns casos, elas atuam como poupança ou investimento para melhorar as condições e as perspectivas futuras. Como é parte da vida diária, a ajuda horizontal pode muitas vezes ser invisível e raramente é celebrada.

Um ato de filantropia horizontal: quatro fatores importantes

Os dados do BCP indicam que quatro elementos atuam na filantropia horizontal:

A – Afinidade
N – Necessidade, urgente e normal
M – Motivação
R – Reputação

Para ajudar na apresentação, um ato de filantropia horizontal (AFH) é ilustrado no esquema abaixo como uma função dos quatro fatores.

HPA =(N + A + M)× R

Afinidade

Cada fator precisa ser esclarecido. Primeiro, A, ou Afinidade, refere-se ao relacionamento entre os atores em uma transação de ajuda. É composto de três elementos – proximidade sangüínea (PS); proximidade em termos de distância (PD), ou seja, proximidade física, e finalmente proximidade sócio-econômica (PSe), que incluiria a subsistência compartilhada, o senso de identidade ou a associação comum a um clube ou a uma igreja. A afinidade entre o doador e o recebedor pode ser representada assim:

A = PS + PD + PSe

Necessidade

Com relação à necessidade (N), as pessoas pobres fazem uma distinção fundamental entre os tipos de demandas ou necessidades que requerem ajuda. Esses aparecem como necessidades normais e necessidades urgentes. Existem três fatores aqui.F – Freqüência Com que freqüência o problema ou necessidade ocorre e com que freqüência a ajuda é realmente pedida ou oferecida.
P – Proporcionalidade Quanto dos recursos próprios de um potencial doador (patrimônio material/tempo/esforço) é necessário para tratar da necessidade/problema.
T – Tempo A duração da ajuda e o período/risco antes de uma devolução necessária ou esperada.

Geralmente, as necessidades normais são pequenas, como óleo de cozinha, um cobertor, cuidar de uma criança, visitas para fazer companhia ou ajudar, ou buscar água para idosos ou deficientes. Elas são geralmente regulares e freqüentes. Assim sendo, geralmente podem ser planejadas ou previstas, e suas demandas proporcionais tendem a ser pequenas e fáceis de administrar.

Muitas vezes baseado na reciprocidade, a devolução é geralmente rápida. Por exemplo, quando uma vizinha A fica sem óleo de cozinha, a vizinha B atende às necessidades de consumo de A. Tal assistência será devolvida, não necessariamente na forma de uma xícara de óleo, mas como um ato de ajuda similar, por exemplo, cedendo pão a B no dia seguinte.

As necessidades urgentes podem ser geradas por emergências, como incêndio ou enchente, e por morte. Os pobres podem encarar como urgências níveis perigosos de endividamento ou restrições financeiras, como a falta de recursos/preço da noiva, que poderia impedir um casamento. Embora às vezes pouco freqüentes e imprevistas, essas necessidades exigem uma resposta rápida e podem demandar uma proporção significativa dos recursos disponíveis do doador.

Para ajudar a lidar com essa eventualidade, as pessoas pobres nos quatro países usam mecanismos de pool ou de compartilhamento para criar uma reserva estratégica (por exemplo, uma sociedade para enterros) que pode ser usada em condições acordadas ou para mobilizar mercadorias, trabalho e apoio em uma resposta coletiva a um problema.

Na prática, a probabilidade de uma necessidade gerar ajuda depende do seu tamanho em relação à capacidade do doador e da freqüência das solicitações. Grandes necessidades que não são urgentes têm menos probabilidade de receber uma resposta positiva. Solicitações baseadas em grandes necessidades, como apoio de longo prazo para mensalidades escolares ou para os órfãos, têm mais probabilidade de serem direcionadas para a família (não importando onde esteja localizada) do que para os vizinhos.

Motivação
No caso das motivações subjacentes (M), existem dois fatores: escolha e princípios. A decisão de ajudar ou de pedir ajuda pode ser voluntária e informada pela livre escolha, ou pode ser uma função de obrigação e compromisso, por exemplo, produzida pela combinação do status de uma pessoa e de uma necessidade ou problema em particular.

Três princípios básicos estão em ação quando um doador potencial decide se ajudará ou não. Eles são altruísmo, reciprocidade e cooperação. Os resultados até agora sugerem que a reciprocidade é a motivação mais freqüente para dar, seguida pela cooperação (fazer juntos o que não se pode fazer sozinho) e, depois, o altruísmo. Esse último, compreendido pelos pobres como compaixão e pena, é geralmente reservado para estranhos ou para aqueles que não podem ajudar a si mesmos.

Vistos amplamente como recebedores e não como doadores, incluem os mais pobres entre os pobres, os idosos e os portadores de deficiências. As descobertas até agora indicam a importância da filosofia e dos princípios do Ubuntu, o reconhecimento de si mesmo através dos outros, como uma força motivacional.

Reputação
Finalmente, R se refere à reputação e ao status de um indivíduo a ser ajudado, e é central na determinação da elegibilidade para a assistência. É mostrado como uma multiplicador dos outros fatores porque uma reputação “”zero”” ou a total falta de confiança impede de receber ajuda. O fator R parece ter dois aspectos.

Primeiro, o status, por exemplo, uma mãe, um idoso, um líder ou representante político podem implicar em um nível específico de respeito devido. A segunda consideração é o caráter da pessoa, a pessoa é “”boa””? O que isso significa especificamente é: a pessoa segue s regra básica de que “”se você tem, você dá, não importa que seja pouco′ e cumpre as condições acordadas ou as expectativas de ajuda?

Determinando a probabilidade de AFH

Em que condições uma pessoa pobre decide ajudar? Qual é a importância relativa de A, N, M e R? Como uma nova área de exploração, é prematuro propor indicadores ou alternativas para quantificar cada fator e seu efeito na probabilidade de AFH. O estudo do BCP fornece, no entanto, um ponto de partida para o entendimento da probabilidade de uma pessoa pobre ajudar a outra.

Os dados sugerem que, quando a afinidade e a reputação de uma pessoa são altas, a necessidade é urgente e a motivação é forte, é muito provável que uma pessoa pobre ajude a outra. Quando as demandas são freqüentes e grandes em termos dos recursos disponíveis do doador e a devolução é distante no futuro e talvez incerta, a ajuda é menos provável.

No pior caso, a ajuda não é provável para aqueles que tiverem abusado da assistência no passado e não tiverem respondido positivamente a conselhos e correções. Se um indivíduo é considerado não confiável ou um mau caráter moral, ingrato ou incapaz de usar a ajuda com sabedoria, é provável que tenha negada a sua participação na “”comunidade de ajuda””.

Perspectivas e implicações

As conclusões acima são provisórias, mas têm implicações interessantes para aqueles que desejam construir ou confiar nas práticas de apoio da comunidade para alcançar seus objetivos (de desenvolvimento). Na verdade, elas colocam uma combinação particular de desafios e dilemas.

Está claro que a afinidade é importante, por isso intervenções que criem uma maior “”distância”” entre as pessoas pobres agirão contra a ajuda mútua. Parentesco e proximidade física são menos suscetíveis a mudanças, por isso as intervenções têm mais probabilidade de afetar a proximidade sócio-econômica, por exemplo, pela seleção e preferência dos “”mais promissores””. Isso poderia gerar invejas e enfraquecer a “”condição comum”” que parece alimentar a ajuda, ou seja, você ajuda as pessoas que são como você e entendem a sua situação.

Da mesma forma, a reputação é vital. As intervenções que introduzem recursos e iniciativas com velocidades e formas que não garantam a probidade e a supervisão adequada podem produzir tentações que podem ser difíceis de resistir e assim colocar reputações em risco. Iniciativas que minem as práticas que já garantem a responsabilidade local e a sanção efetiva devem portanto ser evitadas.

Sobrevivência versus desenvolvimento

Em teoria, a redução dos dois tipos de necessidade, urgente e normal, permitiria que a filantropia horizontal deixasse de ser um simples mecanismo de sobrevivência, para ajudar a evitar que os pobres afundem sob o peso de sua pobreza, e se tornasse uma forma de assistência mútua que poderia ajudar os pobres a sair da pobreza.

Certamente, a redução da necessidade urgente como motivo para a filantropia horizontal evitaria o desgaste imprevisto de patrimônio. A redução das necessidades normais, também, produziria uma combinação de menos freqüência nas solicitações, menor demanda sobre o patrimônio e/ou um menor tempo ou maior garantia da devolução acordada.

Em ambos os casos, isso traria maior segurança para as pessoas pobres e a filantropia horizontal poderia se concentrar no desenvolvimento em vez de na sobrevivência. Mas não há evidências de que isso aconteça nos países estudados. A resposta poderia ser que a deterioração das condições econômicas da região, exacerbada pelo HIV/AIDS, impediu isso.

Uma maneira de transformar a filantropia horizontal em um instrumento de desenvolvimento pode residir no aumento da base patrimonial das comunidades pobres sem romper a capacidade do sistema de se regular e organizar, que é a base de sua resistência e sustentabilidade.

O lado do desenvolvimento

Mas existe também um lado que é mais desenvolvimentista e que apóia o movimento de saída da adversidade. Os exemplos incluem dar conselhos às pessoas sobre onde encontrar trabalho, pagar mensalidades escolares ou ensinar habilidades que são usadas para ganhar a vida.

O efeito de desenvolvimento desses atos, no entanto, precisa ser mais investigado. Uma etapa útil seria testar se existe uma correlação entre a ajuda entre pessoas e a ajuda que é baseada em grupos, e entre a manutenção e o movimento, respectivamente.

O fato de que a motivação para ajudar será mais forte quando existir uma perspectiva de reciprocidade sugere que as obrigações compartilhadas são tratadas como uma distribuição prudente de um “”patrimônio”” em que se pode confiar quando surge uma necessidade. Isso também indica que o princípio da reciprocidade é usado pelos pobres para esticar e recircular recursos, que não podem ser deixados inativos quando os recursos são escassos.

Resumindo

O esquema de AFH é o primeiro passo em direção à compreensão de como e quando a filantropia horizontal ocorre. Um cuidado óbvio aqui é não esperar que a filantropia horizontal ofereça uma fonte de recursos para a capitalização de fundações comunitárias.

A filantropia horizontal é um dispositivo de desenvolvimento que parece operar com custos baixos e orientados à formação de uma rede. O desafio é estimular a filantropia horizontal sem sobrecarregá-la com formalidades custosas, demandas pouco realistas e expectativas excessivas sobre seu potencial como solução da pobreza.

*Susan Wilkinson-Maposa, é diretora do Projeto projeto Building Community Philanthropy. Alan Fowler é Conselheiro do Projeto BCP.

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