Reforma agrária deve incorporar questão socioambiental

Por: GIFE| Notícias| 21/07/2003

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

A reforma agrária tem sido discutida como uma das prioridades do atual governo federal. Porém, não é com a mesma freqüência que se aborda sua relação com a preservação do meio ambiente.

Em entrevista ao redeGIFE, o advogado Raul Telles, um dos organizadores do livro Reforma Agrária e Meio Ambiente, editado pelo Instituto Socioambiental, fala sobre a questão ambiental nas reformas de distribuição da terra.

redeGIFE – De que maneira a reforma agrária pode servir para a recuperação e a preservação do meio ambiente?
Raul Telles – Recentemente, o governo federal apresentou à sociedade os últimos dados sobre desmatamento na Amazônia. Esses dados, após serem analisados por diversas instituições de pesquisas e ONGs, demonstraram que boa parte desse desmatamento deve-se à expansão da soja e da pecuária nos estados do Mato Grosso, Pará e Rondônia. Ambas são atividades desenvolvidas em áreas extensas e geralmente exploradas por grupos empresariais.
Portanto, seguem o padrão de ocupação do campo privilegiado em nosso país desde a época colonial: grandes propriedades exploradas por uma aristocracia econômica e baseadas na monocultura. Isso ilustra o quanto a questão ambiental está ligada à forma de organização da propriedade rural, ou seja, o mesmo modelo político e econômico que leva à concentração de terras e à expulsão das pessoas do campo é o que está na raiz dos problemas ambientais. Por isso a reforma agrária deve ser mais do que uma reforma de distribuição da terra, mas uma reforma no uso da mesma, o que necessariamente incorpora a dimensão ambiental.

redeGIFE – A atual política agrária brasileira leva em consideração a questão ambiental?
Telles – Mesmo com o novo governo, a política agrária brasileira continua privilegiando a pecuária e a monocultura de exportação, muito em função da necessidade de superávit comercial. Isso é feito sem grandes preocupações com os efeitos colaterais sobre o meio ambiente, o que levou, por exemplo, ao aumento de 40% dos índices de desmatamento na Amazônia entre 2001 e 2002. Poucas são as instituições oficiais de crédito que, por exemplo, cobram do produtor a comprovação de que tem sua reserva legal averbada e respeitada, o que vem fazendo com que essa figura legal seja vista como ficção em muitas partes do país. Ainda falta a prometida transversalidade da dimensão ambiental nas políticas de governo, principalmente na política agrícola.

redeGIFE – Mas muito se fala sobre a necessidade de modernização da economia e da agricultura. Como fazer isso sem prejudicar o meio ambiente?
Telles – A modernização da agricultura deve necessariamente ser pautada em critérios de justiça socioambiental, pois senão não fará sentido ao país. Não podemos aceitar uma modernização que implique a concentração de terras, o empobrecimento dos pequenos agricultores ou a destruição em escala industrial da biodiversidade. Até hoje, porém, modernização vem sendo entendida como sinônimo de expansão do agribusiness em todas nossas fronteiras agrícolas. E esse, infelizmente, tem pouca preocupação com a proteção dos recursos ambientais.

redeGIFE – Os pequenos agricultores têm condições de cuidar melhor do meio ambiente?
Telles – Para que os pequenos agricultores cuidem melhor do meio ambiente é necessário, em primeiro lugar, estancar o processo de empobrecimento que eles vêm vivenciando. Desde o Relatório Brundtland [documento elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento], está claro para todos que a pobreza éuma das grandes promotoras do uso insustentável e irracional dos recursos naturais. Mas isso apenas não resolverá a questão, pois é necessária também uma reeducação desses pequenos agricultores, para que retomem alguns dos valores e padrões de produção camponeses perdidos com a “”revolução verde””.

redeGIFE – Como está o diálogo entre os movimentos de luta por terra e os movimentos ambientalistas?
Telles – É um diálogo aberto e construtivo no geral, mas por vezes conflituoso em casos concretos. Muitos desses movimentos já estão incorporando a dimensão ambiental como um fator central de sua luta, mas o dia-a-dia da luta muitas vezes faz aflorar contradições. É um processo em aberto, mas bastante promissor.

redeGIFE – Os ativistas de movimentos pela reforma agrária estão conscientes de sua função nessa preservação e conservação do meio ambiente?
Telles – Com certeza. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), dois dos principais movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, já vêm discutindo a questão ambiental há algum tempo, fazendo parcerias com ONGs ambientalistas e, inclusive, formando lideranças para tratar do assunto. Obviamente que esse é um processo que demanda tempo, mas eles já o estão trilhando.

redeGIFE – Qual é a melhor maneira de educar, para a questão ambiental, os ativistas dos movimentos pela reforma agrária?
Telles – Na verdade, não há uma fórmula de sucesso que possa ser aplicada em todos os casos. O que tenho percebido é que esses ativistas, quando percebem que o mesmo modelo que gera a opressão social é o que gera a degradação ambiental, acabam se sensibilizando para o tema e refletindo sobre como a qualidade ambiental é importante para uma vida saudável nos assentamentos e nas pequenas propriedades rurais. O IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas), por exemplo, faz um trabalho para despertar essa consciência nos assentados do Pontal do Paranapanema (SP).

redeGIFE – A questão ambiental pode ser vista como empecilho para os assentamentos?
Telles – Acredito que a questão ambiental deve ser vista não como um empecilho, mas como uma condição para os assentamentos. Por um lado, deve-se evitar realizar assentamentos em áreas ambientalmente sensíveis, pois isso gera problemas não só para o meio ambiente como para os próprios assentados, que terão de conviver com muitas restrições de uso dos recursos naturais. Por outro, para que um assentamento seja sustentável, em sentido amplo, é necessário que a área tenha um mínimo de qualidade ambiental, senão a vida ali se tornará insuportável e as pessoas terão de se mudar. Isso ocorre, por exemplo, em antigas áreas utilizadas para plantação de cana-de-açúcar, onde a monocultura esgotou o solo, acabou com a água e extinguiu a biodiversidade nativa. Isso acaba por inviabilizar qualquer assentamento de pequenos agricultores, que não têm recursos para fertilizar o solo e não têm mais água para irrigação ou mesmo para consumo.

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