Relações entre Poder Público e OSCIPs

Por: GIFE| Notícias| 20/08/2007

Valéria Trezza*

A parceria entre o Poder Público e as ONGs é uma tendência, não só no Brasil, mas em diversos países, e deve aumentar cada vez mais. De um lado, o Estado precisa da colaboração das organizações do Terceiro Setor para a produção de bens e serviços e para a implementação de políticas públicas e, de outro, as organizações sem fins lucrativos precisam do Estado como mais uma fonte de recursos.

Tal situação, somada ao aumento do número de organizações sem fins lucrativos nas duas últimas décadas no Brasil, tem suscitado constantes discussões a respeito dos instrumentos jurídicos disponíveis para oficializar essas parcerias. Até 1999, o principal instrumento utilizado pelo Poder Público para repassar recursos para as organizações sem fins lucrativos era o convênio. Apesar de ser largamente utilizado, o convênio não é considerado o meio mais adequado, por apresentar várias restrições às organizações parceiras e ao próprio Poder Público, não dando conta de suas necessidades em matéria de flexibilidade, rapidez, autonomia e controle de resultados.

Em 1999, o setor sem fins lucrativos brasileiro ganhou uma nova lei, considerada por muitos como o novo Marco Legal do Terceiro Setor. A Lei nº 9.790, conhecida também como Lei das OSCIPs, foi recebida com bastante entusiasmo por uma expressiva parcela de profissionais e atuantes do Terceiro Setor, que recebeu a nova legislação como um importante passo em direção ao reconhecimento, por parte do Poder Público, do papel fundamental que as organizações da sociedade civil desempenham. Dentre as novidades da lei, está uma nova forma de relacionamento com o Poder Público: o Termo de Parceria.

O novo instrumento de parceria foi criado com base em princípios como transparência, ética, compromisso com a boa utilização dos recursos públicos e qualidade dos serviços prestados. Ele foi desenhado para proporcionar vantagens em relação ao tradicional convênio, como maior flexibilidade na aplicação dos recursos, mecanismos de avaliação de resultados (focados no desempenho e não apenas na forma de aplicação dos recursos e comprovação dos gastos), regras mais claras e bem definidas de prestação de contas e responsabilização em caso de uso indevido dos recursos.

Passados mais de oito anos da criação da lei, a prática parece indicar, no entanto, que o Termo de Parceria ainda não foi incorporado como um melhor instrumento de cooperação entre o Poder Público e as organizações sem fins lucrativos qualificadas como OSCIPs. Pelo lado do Poder Público, nota-se, ainda, resistência na utilização do Termo de Parceria, e mesmo quando ele é utilizado, nem todas as suas regras são seguidas, deixando-se de aproveitar várias de suas vantagens. Pelo lado das organizações, há muita dificuldade em acessar os órgãos públicos em busca de recursos e pouca capacidade de negociação para instar o uso do Termo de Parceria.

A fim de encontrar mais informações que pudessem comprovar se de fato essa situação ocorre, foi realizada a pesquisa O Termo de Parceria como Instrumento de Relação Público/Privado Sem Fins Lucrativos. Este trabalho partiu de um extenso levantamento nacional dos Termos firmados desde a criação da lei em 1999 até o início de 2007, procurando detalhes sobre eles e investigando a forma como o Poder Público tem utilizado o novo instrumento. Com base nos dados que colhemos, encontramos, de fato, dois desafios que ainda precisam ser superados.

O primeiro diz respeito à utilização do Termo de Parceria. Ainda é muito comum o uso do convênio para oficializar as parcerias com as OSCIPs, apesar dessas organizações contarem com um instrumento específico e potencialmente melhor para isso. Os motivos disto ocorrer vêm da insegurança em lidar com a nova legislação, a falta de domínio sobre as regras do Termo de Parceria e a ausência de capacitação dos gestores públicos.

Ainda assim, há um crescimento, mesmo que discreto, do número de Termos firmados ao longo dos anos. Na pesquisa, foram identificados 266 Termos de Parceria firmados com 189 OSCIPs. Dos 140 instrumentos que apresentam a informação sobre o ano de celebração, não há nenhum em 1999, ano de criação da lei, e em 2000. Isso provavelmente tem relação com o baixo número de organizações qualificadas nesses anos e com a insegurança em utilizar um novo instrumento. O fato de mais da metade dos Termos da amostra (61%) ter sido firmada entre 2005 e 2007 reforça a hipótese de que se está adquirindo mais familiaridade com esse mecanismo, o que leva a sua maior utilização.

Chama a atenção, no entanto, o fato da maioria das OSCIPs ter firmado apenas um Termo, o que parece indicar relações pontuais entre elas e o Poder Público. Por outro lado, as organizações que firmaram dois ou mais Termos parecem conseguir manter o vínculo com o órgão financiador: das 31 OSCIPs que firmaram mais de uma parceria e das quais foi possível identificar com quais órgãos, quinze têm dois ou mais Termos de Parceria com o mesmo órgão, sendo que onze delas exclusivamente com ele. Tal situação está ocorrendo, provavelmente, pelo fato de não ser muito freqüente a realização de concursos de projetos para a seleção da OSCIP parceria, o que proporciona mais facilidade de acesso àquelas que já possuem algum vínculo com o órgão repassador de recursos.

Outro indicativo disso é o dado que mostra que 41 OSCIPs da amostra firmaram o primeiro Termo no ano em que se qualificaram ou no seguinte, o que pode sugerir um contato anterior com o órgão público parceiro e a busca pela qualificação já com a expectativa ou promessa da parceria. Esses números contrastam com o depoimento de várias organizações que nos relataram terem feito diversas tentativas de firmar Termo de Parceria com órgãos públicos sem sucesso.

Por outro lado, um dado positivo é o do objeto das parcerias. Quase metade dos 132 Termos dos quais dispomos dessa informação foi firmada para execução de projetos em áreas emergentes, como meio ambiente, microcrédito, inclusão digital, desenvolvimento de tecnologias sociais e direito de minorias, principalmente portadores de deficiências. De fato, um dos objetivos da Lei das OSCIPs foi exatamente o de valorizar as organizações que atuam em novas áreas. Vale assinalar, também, que se tratam de áreas normalmente negligenciadas pelo Poder Público e para as quais as organizações do Terceiro Setor parecem ter maior expertise.

O segundo desafio que encontramos diz respeito à forma como o Termo de Parceria tem sido utilizado. Muitos órgãos públicos, mesmo quando optam pelo novo instrumento, têm dado a este o mesmo tratamento conferido aos convênios, chegando ao cúmulo de aplicar ao Termo as leis que regem o antigo instrumento. Ou seja, muitas vezes, o Termo de Parceria é, na verdade, um convênio com apenas algumas características do mecanismo instituído pela nova lei. O resultado disso é o desvirtuamento do Termo de Parceria e o não aproveitamento de suas vantagens. Os mesmos motivos apontados anteriormente se aplicam neste caso, somados aqui com a estrutura de funcionamento dos órgãos, que muitas vezes não possibilitam a implementação de algumas exigências da Lei das OSCIPs.

Um exemplo é a consulta aos Conselhos de Políticas Públicas antes da celebração da parceria, que foi pensada para ser um mecanismo diferenciado de controle social, uma vez que tais conselhos são compostos tanto por representantes do Poder Público, quanto por membros eleitos pela sociedade. Muitos órgãos têm cumprido esse requisito apenas formalmente, colhendo as assinaturas dos conselheiros, sem que haja uma discussão sobre a pertinência e adequação da parceria com as diretrizes do órgão e as políticas públicas da área.

Outros benefícios e mecanismos que não estão sendo bem aproveitados por vários órgãos são a permissão de remuneração de pessoal e a aquisição de bens com os recursos do Termo de Parceria, e a realização de concurso de projetos para a seleção da OSCIP parceira.

Em tempos de “”CPI das ONGs”” e escândalos envolvendo repasse de recursos públicos para organizações sem fins lucrativos, é de suma importância abrir o debate e pensar sobre o(s) modelo(s) de parceria que temos e sobre o que queremos. Após oito anos da promulgação da Lei das OSCIPs e da criação do Termo de Parceria, talvez já tenhamos tido tempo suficiente para testar o novo instrumento e sejamos capazes de avaliar o que funcionou e o que ainda precisa ser aperfeiçoado.

O certo é que interessa a ambos, Estado e Terceiro Setor, que as parcerias existam e dêem certo. Fica, então, o desafio de continuarmos a buscar formas bem sucedidas de oficializar essas relações, baseadas em processos objetivos e imparciais de celebração, que reconheçam as especificidades das organizações sem fins lucrativos e que possuam mecanismos efetivos de controle. No entanto, como se percebe, a questão da relação entre Poder Público/organizações sem fins lucrativos e os instrumentos que a oficializam está longe de ser apenas uma questão de criação de leis. Ela passa pela estrutura de funcionamento e cultura de ambos os setores, e até por questões políticas. Deste modo, é fundamental que se estabeleça o diálogo.

*Valéria Trezza é advogada especialista em Terceiro Setor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP.

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