Saneamento: com a nova lei, vamos superar o atraso?

Por: Fundação FHC| Notícias| 19/10/2020

Em 2001, o Executivo federal encaminhou ao Legislativo uma proposta de novo marco legal para o saneamento no país. O PL 4147/2001 encontrou resistência no Congresso Nacional e não foi adiante. Em 2020, dezenove anos depois, um novo projeto de lei (PL 4.162/2019), que segue em linhas gerais o mesmo propósito, foi finalmente aprovado e sancionado pelo presidente, com alguns vetos (que ainda podem ser derrubados pelo Congresso). Segundo especialistas reunidos neste webinar realizado pela Fundação FHC, com apoio da ABES, do Instituto Trata Brasil e da BandNews, o novo marco legal é um começo necessário, mas não é condição suficiente para finalmente destravar os investimentos em saneamento Brasil afora.

“O Brasil ocupa a 112ª posição em um ranking de saneamento básico que avaliou 200 países em 2011. É um vexame. Não tenho nenhuma razão para acreditar que tenhamos evoluído na última década”, apontou Maria Silvia Bastos Marques (presidente do Conselho Consultivo do Goldman Sachs no Brasil, ex-presidente do BNDES, da CSN e da Empresa Olímpica Municipal, Rio 2016), acrescentando que cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada, um número possivelmente subestimado. Outro dado importante é o de que há mais de 150 milhões de brasileiros em lares sem tratamento de esgoto, número equivalente a ⅔ da população do país. Os dados foram coletados pelo Trata Brasil, que usa as bases oficiais do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS).

Por que não conseguimos avançar mesmo tendo recursos (públicos e privados), capacidade tecnológica e de infraestrutura?, perguntou Paulo Mattos (CEO da IG4 Capital e presidente do Conselho de Administração da Iguá Saneamento S.A.). “O problema central no setor é de gestão e de alocação do capital”, respondeu. Segundo o especialista, são necessários de R$ 700 bilhões a R$ 1 trilhão para o Brasil chegar nos patamares de oferta de saneamento da média dos países com PIB equivalente.

O Brasil tem capacidade de atrair esse volume de investimentos dentro e fora do país? Para Mattos, “existe grande quantidade de recursos disponíveis no mundo para financiar o setor de saneamento brasileiro, com espaço para todas as empresas interessadas em competir e entrar no setor, sejam elas públicas ou privadas”. O desafio, conclui ele, é somar forças para atrair esses investimentos.

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‘Babel regulatória’

Jerson Kelman (membro dos conselhos de administração da Eneva S.A, Evoltz S.A e Iguá Saneamento S.A. e, no passado, dirigente da ANA, ANEEL, Light e Sabesp)  trouxe ao debate outra questão fundamental, que o PL de 2001 tentou enfrentar e esse novo PL, de 2020, reformulou: os papéis e as responsabilidades dos entes públicos ou privados responsáveis pela prestação desse serviço, seja diretamente ou por meio de concessão.  

Dezenove anos atrás, a proposta era a de que, quando a infraestrutura de água e esgoto servisse exclusivamente a um determinado município, caberia a este a sua gestão. Caso a infraestrutura fosse compartilhada, o titular seria o governo estadual. “Talvez em 2001 isso não tenha passado porque era muito drástico”, comentou Kelman. No nova legislação, repetiu-se o mesmo conceito, mas nas situações de interesse comum atribuiu-se a titularidade não ao estado sozinho, e sim ao estado em conjunto com os municípios envolvidos.

No caso do saneamento, a questão da titularidade resultou em uma “Babel regulatória”, apontou Kelman: “Temos cerca de 5500 municípios, cada um podendo elaborar sua regulamentação e métodos de calcular a tarifa. Se não há previsibilidade regulatória, não há segurança para investir. Precisamos de regras básicas que deem, para quem vai empregar bilhões enterrando tubulações e bombas, a certeza de que não se está à mercê do prefeito ou governador de plantão. Ainda não construímos esse ambiente seguro no setor de saneamento”.  

Kelman propôs uma comparação com o setor de energia elétrica, que é integrado de Norte e a Sul e está sob o controle de uma agência única, a ANEEL. A uniformidade de regras resultou em um ambiente confiável para investimentos e, apesar da complexidade do serviço, estamos no caminho de viabilizar o acesso universal de energia elétrica aos brasileiros. “O que o novo marco legal faz é trazer a experiência bem-sucedida do setor elétrico para o do saneamento”, explica o engenheiro, “encarregando a ANA (Agência Nacional de Águas) de dar uniformidade à regulação do setor. O cálculo tarifário não será feito pela ANA, como é o caso da ANEEL, mas a agência terá a responsabilidade de criar as normas gerais. E isso deve melhorar muito o ambiente para investimentos públicos e privados no saneamento”, concluiu.

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‘Fla-Flu do Público-Privado’

Um dos objetivos do novo modelo é superar a nefasta dicotomia público-privado, um desnecessário Fla-Flu como definiram os debatedores. Na visão dos especialistas, esse embate tem pouca relevância, é preciso implementar o marco com urgência, atrair capital aqui e no exterior e assegurar uma boa gestão compartilhada, tanto entre os três níveis de governo como entre a administração pública e a iniciativa privada.

“O novo marco regulatório vem para criar uma meta federal, para que, até 2033, o Brasil chegue a níveis de coleta e tratamento de água e esgoto próximos dos praticados nos países da OCDE. Para isso, até final de março de 2022 quem hoje presta o serviço (sejam empresas estatais ou privadas) vai ter que mostrar capacidade de cumprir essas metas”, explicou Paulo Mattos.

“Não podemos esquecer: saneamento é um bem público. Não estamos privatizando o saneamento. A ideia é ampliar esse serviço público junto com a iniciativa privada”, disse Maria Silvia Bastos Marques. “Daqui para a frente, com uma regulamentação bem feita, teremos metas, avaliação e a aferição da capacidade econômico-financeira. Haverá estímulo à produtividade e à competição”, continuou.

A economista foi bastante enfática ao dizer que a nova lei “está tratando de abrir o setor para a competição e, portanto, para maior produtividade e eficiência e para menores tarifas. O setor público tem que fazer o seu papel, atuar em nome da população, fomentar o debate, trazer informação, controlar, regular e fiscalizar”.

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O pulo do sapo

O fantasma da elevação de tarifas para a população não poderia ficar de fora do debate. Como impedir isso? Para os especialistas, estender a rede para oferecer coleta de esgoto a quem hoje não é atendido traz aumento de receita para as empresas. Mas o mais importante é que, aliado a esta expansão, elas busquem aumento de produtividade e de eficiência. Esses são os fatores cruciais para que haja melhoria do serviço em termos de abrangência e qualidade, sem subir tarifas.

Ao comentar sobre os critérios que ajudam a avaliar o desempenho financeiro futuro das empresas, Jerson Kelman trouxe o modelo ESG (environmental, social and corporate governance, na sigla em inglês, referindo-se a três fatores centrais na medição da sustentabilidade e do impacto social de um investimento). “Não tem nada mais ESG do que o saneamento. Reduz a poluição dos rios, gera empregos, promove a saúde da população e aumenta a governança com mais produtividade. Há muito interesse em investir no Brasil, mas é preciso que façamos nosso dever de casa com uma regulação e uma gestão de qualidade”, disse.

Mattos encerrou o webinar com uma mensagem otimista, lançando mão de outro conceito da economia, o leapfrog effect ou “efeito pulo do sapo”, que, segundo ele, se aplica bem ao setor de saneamento brasileiro. De acordo com o CEO da IG4 Capital, o país tem a oportunidade de recuperar o atraso de décadas inovando, sem a necessidade de percorrer os mesmos passos de quem já resolveu o problema.

“Com as novas tecnologias digitais disponíveis, podemos saltar diversas etapas e atingir as metas de 2033 utilizando padrões mais avançados tecnologicamente do que o de países que têm o saneamento resolvido há mais de um século”, afirmou. Como exemplo de inovações disponíveis que podem revolucionar o setor, o empresário citou as tecnologias da indústria 4.0, como IoT (internet das coisas), fibras ópticas etc.

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Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.

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