Sistemas alimentares estão no cerne de múltiplos desafios globais

Por: GIFE| Notícias| 21/04/2025

Quando falamos em sistemas alimentares, não se trata apenas da produção, distribuição e consumo de alimentos, eles podem fortalecer culturas tradicionais, resgatar modos de vida locais e alterar a forma como a riqueza é distribuída nas cadeias alimentares.

Para entender como essas dimensões interagem e se reforçam mutuamente, o GIFE conversou com Iara Rolnik. Socióloga pela USP e mestre em Demografia pela Unicamp, ela é diretora de programas do Instituto Ibirapitanga.

Por que os sistemas alimentares se tornaram um tema estratégico para pensar o futuro da sociedade, e como a filantropia pode contribuir para essa transformação? 

Os sistemas alimentares estão no cerne de múltiplos desafios globais, entre eles a crise climática, a insegurança alimentar, o aumento das doenças crônicas não transmissíveis, além da persistência de altos níveis de desigualdade social. A principal questão é que essas dimensões não apenas coexistem, mas interagem e se reforçam mutuamente. Embora a alimentação sempre tenha sido um tema central para a sociedade, o debate público mudou significativamente nos últimos anos. Internamente, políticas públicas voltadas à alimentação têm sido retomadas e fortalecidas, assim como a crescente articulação da sociedade civil brasileira. Essa centralidade, no entanto, enfrenta resistências expressivas: a agenda da alimentação ganha proeminência na mesma medida em que há o avanço do conservadorismo político, a indústria de alimentos cresce e lucra de forma exponencial, o agronegócio segue como principal motor da economia coexistindo com a persistência da fome, má nutrição, obesidade, além do desmatamento e a expansão da fronteira agrícola, a concentração fundiária e os conflitos em torno da terra. 

O papel da filantropia nesse contexto é tão estratégico quanto desafiador: precisa, ao mesmo tempo, olhar e reconhecer a complexidade dos sistemas alimentares e atuar de forma integrada, articulando diferentes estratégias como apoio direto a organizações da sociedade civil (OSCs), articulação institucional, fomento à produção de conhecimento e incidência sobre políticas públicas. Segue sendo urgente consolidar a compreensão de que a alimentação é uma questão estrutural, multidimensional e estratégica para a transformação social, ambiental e de fortalecimento da democracia no Brasil.

Costuma-se mencionar três grandes desafios que precisam ser enfrentados simultaneamente para garantir um sistema alimentar mais sustentável: segurança alimentar e nutricional; sustentabilidade ambiental; sustentabilidade econômica e inclusão social. Como esses desafios têm impactado as etapas que integram os sistemas alimentares?

De um lado, o Brasil é frequentemente descrito como o “celeiro do mundo”, dado seu protagonismo na exportação de commodities agrícolas. De outro, enfrenta contradições profundas e estruturais que desafiam a ideia de que é, de fato, um país onde o acesso à alimentação é garantido de forma justa, saudável e sustentável. Outro fator preocupante é o avanço do consumo de alimentos ultraprocessados, que hoje representam cerca de 20% das calorias consumidas pela população brasileira. São produtos mais baratos e amplamente disponíveis, mas seu consumo está associado ao crescimento das doenças crônicas não transmissíveis, provocando milhares de mortes evitáveis. Ao mesmo tempo, a concentração de poder no sistema alimentar é crescente: indústrias de alimentos e representantes do agronegócio exercem forte influência sobre a formulação de políticas públicas. 

Além disso, os sistemas alimentares no Brasil estão profundamente entrelaçados com a crise climática. A agropecuária nacional, fortemente dependente das condições climáticas, já sofre os efeitos de eventos extremos. Por outro lado, esse setor é também um dos principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa no país. Esse cenário reforça a necessidade de abordagens integradoras e sistêmicas, já que não é possível pensar em nenhum desses desafios de forma isolada. Nesse sentido, perspectivas como o conceito de sindemia global (desnutrição, obesidade e crise climática) são evidências para respostas integradas para pensar a transição alimentar assim como os princípios da agroecologia — que engloba justiça social, resiliência, sustentabilidade, biodiversidade, saúde, cultura, saberes locais.

A busca por sistemas alimentares mais sustentáveis e acessíveis passa por políticas públicas. Existe um papel complementar, ou de influência, entre a filantropia e as políticas públicas na construção de sistemas alimentares mais inclusivos? 

A filantropia pode e deve ser um vetor importante de mudança. Sua capacidade de experimentar novas soluções, atuar com flexibilidade, mobilizar atores e preencher lacunas deixadas pelas políticas públicas é essencial. Além de contribuir de maneira decisiva para o fortalecimento das OSCs ligadas à questão alimentar. A trajetória da filantropia nessa agenda no Brasil tem sido marcada por ações pontuais e respostas emergenciais. O campo alimentar ainda ocupa uma posição bastante marginal na atuação da filantropia. A educação, por exemplo, concentra 71% dos investimentos do setor. Enquanto apenas 2% adotam áreas como agricultura, alimentação e nutrição como foco central. 

O termo “Sistemas alimentares” por sua vez, nem chega a ser uma categoria de foco no Censo GIFE. Esses dados evidenciam não só a baixa prioridade dada à alimentação, mas também a ausência de um olhar mais sistêmico sobre sua relação com outras agendas estruturais. Apesar disso, há sinais de mudança. A crescente emergência da agenda climática como prioridade global criou pontes relevantes entre alimentação, saúde planetária e justiça ambiental, ampliando o interesse do mundo e, por consequência, dos investidores por esse campo. A maior dedicação das organizações que dialogam com a questão alimentar no Brasil hoje o fazem a partir das suas conexões com o campo climático. Talvez essa seja uma das pontas de lança de um movimento de inflexão na filantropia voltada à questão alimentar que vem acontecendo desde 2017 no Brasil. Ainda que não existam dados suficientemente robustos para quantificar esse movimento, há indícios claros de sua consolidação. Esses fatores indicam uma tendência promissora, embora ainda incipiente, de inserção mais estruturada da filantropia na transformação dos sistemas alimentares. 


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