Sociedade civil deve se mobilizar pela aprovação do Estatuto do Desarmamento
Por: GIFE| Notícias| 06/10/2003MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE
Aprovado pelo Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados, o Estatuto do Desarmamento prevê, entre outros pontos, a proibição da venda de armas de fogo para civis. De acordo com Antônio Rangel, coordenador do programa de controle de armas da ONG Viva Rio, esta medida é um importante passo para o fim do tráfico ilegal de armamentos.
Em entrevista ao redeGIFE, ele fala sobre o estudo Armas de Fogo: Desfazendo Mitos, lançado em setembro pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião) e o Viva Rio, e os aspectos que devem ser tratados pelo Estatuto do Desarmamento.
redeGIFE – Qual foi o objetivo e no que se baseou o estudo “”Armas de Fogo: Desfazendo Mitos””?
Antônio Rangel – O estudo é fruto de pesquisa do Viva Rio de mais de cinco anos. Ele foi escrito com dois objetivos: dar informações aos parlamentares que estão votando o Estatuto do Desarmamento e divulgá-las para a opinião pública. Fizemos, então, duas versões do boletim. A primeira foi dirigida aos parlamentares, para que eles de fato tenham informações baseadas em pesquisa, e a outra para a imprensa, centros de pesquisa, etc. Normalmente a questão das armas no Brasil não é baseada em pesquisa, já que as informações sobre elas não estão acessíveis aos pesquisadores. Neste aspecto, o Brasil parece que ainda continua no regime militar. Temos uma situação absurda, na qual a proliferação de armas, que é um aspecto fundamental da violência urbana, não é estudada cientificamente no Brasil. Por isso o parlamentar vota muito na base do “”achismo”” e, naturalmente, o lobby das indústrias de armas envia informações que podem não ser verdadeiras.
redeGIFE – Por que é tão difícil ter acesso aos dados sobre as armas no Brasil?
Rangel – Para ter uma idéia e perceber por que não há controle de armas no Brasil, à polícia federal cabe combater o tráfico ilegal, e ela tem a informação da arma apreendida. Mas para fazer o rastreamento e descobrir de onde veio essa arma, é preciso ter a informação de quem a comprou originalmente. Essa informação está com o exército, que não transmite para a polícia federal. O exército recebe a informação sobre produção, exportação e venda de armas, e a polícia federal, a quem cabe reprimir, não pode juntar as duas pontas para fazer o rastreamento da arma. As coisas estão de maneira a não permitir que haja investigação e, portanto, que não haja combate ao tráfico ilegal. É com isso, entre outras coisas, que o Estatuto do Desarmamento visa a acabar. Ele pretende centralizar tudo no Ministério da Justiça, que tem técnicos para analisar isso.
redeGIFE – Quais são os principais dados apresentados pelo estudo do Iser/Viva Rio?
Rangel – Eu daria destaque a um dado que está tendo enorme repercussão no mundo e que foi nossa última pesquisa, concluída em julho, na qual constatamos que 33,1% das armas apreendidas na ilegalidade foram legalmente vendidas para cidadãos de bem. Analisamos 77.527 armas, o maior número já estudado até hoje. O comércio legal é livre e o que o Estado deve fazer é reprimir o tráfico ilegal. Só que, ao contrário das drogas, as armas são fabricadas legalmente. Menos de 1% das armas é de fabricação caseira. Já houve duas conferências na ONU sobre controle de armas e o grande debate aconteceu entre os EUA e alguns países produtores de armas, como China e Israel, que queriam separar o mundo do comércio legal e o do tráfico ilegal, e a comunidade internacional, liderada pela própria ONU, que dizia que para controlar o tráfico ilegal é necessário controlar o comércio legal.
redeGIFE – Atualmente há diversos movimentos da sociedade civil pelo desarmamento. Existem ações que poderiam ser feitas para que as armas de fogo sejam efetivamente tiradas da população, mas ainda não o são?
Rangel – Sim. E esta é a grande lacuna do Estatuto do Desarmamento: o controle dos chamados brokers, que são os intermediários. Isso não está previsto no Estatuto, mas estamos insistindo com os parlamentares e alguns deputados devem propor isso no debate da Câmara. Isso é fundamental porque a fábrica de armas não irá vender direto para o Fernandinho Beira-Mar, por exemplo. Ela vende para um intermediário, que vende para o crime organizado. É o intermediário quem faz a transição do legal para o ilegal, mas a lei não fala nada disso, nem o Estatuto, que é proposta de mudança da lei. Os brokers se instalam em qualquer país e fazem a ponte com os bandidos. Para mim, esta é a grande deficiência do Estatuto.
redeGIFE – Mas essas ações estão no âmbito do Estado.
Rangel – São dois aspectos: ao Estado cabe exatamente esse controle, que não existe, e aí eu somaria ao controle dos brokers o acesso de especialistas às informações, já que não há transparência alguma nem pesquisa. Mas existe um outro lado muito importante, que chamamos genericamente de demanda e que faz com que o cidadão compre arma. Aí devem entrar as organizações da sociedade civil que procuram convencer o cidadão que ter uma arma em casa ou no carro é muito mais um risco para ele e para sua família do que um instrumento de defesa. Para conscientizar as pessoas a não terem mais armas e apoiar o Estatuto, fizemos uma grande marcha aqui no Rio de Janeiro. Haverá também em Recife, Brasília, Vitória e São Paulo. Algumas pessoas dizem que estamos querendo desarmar os cidadãos de bem, enquanto os bandidos continuam armados, mas queremos é que o cidadão de bem se desarme para se proteger da sua própria arma, que pode ser usada contra ele e sua família.
redeGIFE – Você sente que essa consciência de que ter arma não é sinônimo de auto-defesa tem aumentado?
Rangel – Sim, tem aumentado. Tanto que, em janeiro de 2000, o Instituto Vox Populi fez uma pesquisa nacional e constatou, na época, que cerca de 60% das pessoas se manifestavam pela proibição de armas. Hoje, uma pesquisa do Ibope apontou que já atingimos mais de 80%. Acho que isso é fruto das nossas campanhas, mas muito mais da experiência de vida, já que nossa atuação é limitada. As pessoas vêem que quem reage a um assalto morre. Isso é uma questão de bom senso.
redeGIFE – O Estatuto do Desarmamento tem sido tratado com a atenção necessária?
Rangel – Acho que o governo não se empenhou suficientemente, porque se isso tivesse acontecido, teria sido aprovado na Comissão de Segurança da Câmara dos Deputados. Vários partidos da base de sustentação do governo disseram que não iam votar porque não havia uma posição por parte do governo. Então, acredito que há pessoas se empenhando para isso, mas não houve uma posição de governo e isso enfraquece muito a aprovação.
redeGIFE – Até agora como isso tinha sido tratado?
Rangel – O primeiro projeto foi de 1999, apresentado pelo senador Renan Calheiros. Foi aprovado por uma comissão e derrotado por outra no Senado. E exatamente porque ficou nesse impasse é que houve um acordo entre o presidente do Congresso, senador José Sarney, e o presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, criando uma comissão mista, de deputados e senadores, que estudou cerca de 70 projetos que circularam ao longo dos anos. Eles procuraram reunir tudo isso e chegar a um consenso, que foi o que se chamou de Estatuto do Desarmamento. Isso foi em regime de urgência para o Senado e foi aprovado em 20 dias. Mas deveria ter seguido o mesmo ritual na Câmara dos Deputados, ou seja, não ir para comissão alguma e sim direto para o plenário. Assim, já teríamos votado e eliminado isso há muito tempo. Só que o lobby das armas, que financia campanha de muitos deputados, conseguiu manobrar e mandou para a Comissão de Segurança, que tem um grande número de deputados ligados a policiais e a pessoas que foram financiadas por esse lobby. Aí o Estatuto foi desconfigurado. Agora foi para a Comissão de Constituição e Justiça, onde temos a esperança de que ele seja restaurado, mas o lobby aí também é forte.
redeGIFE – Quais as chances de agora ele ser aprovado, da maneira como deve ser?
Rangel – Acho que depende muito da nossa capacidade de mobilização, porque muitos deputados conhecem apenas dois discursos: o da verba, quer para suas campanhas, quer para eles próprios, e o do voto. Na medida em que o eleitorado demonstra que está consciente e mostra que pode não reelegê-los, eles são capazes de ceder. Por isso nós estamos nos mobilizando.
redeGIFE – O Estatuto prevê a realização de um plebiscito sobre o tema em 2005. Por que esperar tanto tempo para que ele seja feito?
Rangel – Eu também faço essa pergunta. Pergunto-me por que vamos esperar dois anos se a razão maior do Estatuto é acabar com essa matança de pessoas. Há coisas que podem esperar, mas o desarmamento não pode. No projeto original está previsto o referendo, no qual o Congresso decide, mas o povo é consultado se está de acordo ou não. E os argumentos contra o referendo são muito frágeis. Um deles é que só temas muito relevantes merecem referendo e plebiscito. Ora, as pessoas estão morrendo, isso não é relevante? Todas as pesquisas de opinião pública dos últimos três anos apontam que a maior preocupação do brasileiro hoje é a insegurança. Outro argumento é que isso é algo muito técnico, que o povo não está preparado para decidir. Mas a mesma turma que participou da campanha do plebiscito sobre o regime do governo é que agora vem dizer que é muito complexo decidir se o cidadão quer ou não quer arma. No fundo, eles sabem que o povo quer o desarmamento e não estão querendo submeter isso a ele. Outro argumento que usam é que isso é muito caro. Mas caros são os custos da violência. Além disso, poderíamos perfeitamente fazer coincidir o referendo com a eleição, o que não encarece nada. Também dizem que o Brasil não tem tradição, nunca teve referendo. E eu digo que o Brasil também nunca teve tradição de impeachment, e essa foi a melhor coisa que já fizemos. Então, o que nós não temos é tradição de democracia. Se não temos tradição de referendo é hora de ter e aperfeiçoar o sistema democrático.