Sociedade Civil: muito mais que um setor

Por: GIFE| Notícias| 07/08/2006

Carlos March*,

A construção do bem-estar geral de uma sociedade já não pode ser realizada por meio de políticas públicas, cujo impacto se dê apenas na riqueza e na pobreza. Além disso, resulta imprescindível incidir no abismo social entre os que têm acesso a recursos e aqueles que não têm; entre os que podem e os que não podem; entre aqueles que sabem como chegar e os que não sabem nem ao menos como começar.

As assimetrias que geram as sociedades atuais já não se solucionam com políticas públicas de igualdade – dar a todos o mesmo -, porque isso aumenta o abismo. Hoje, se requer que a construção do que é público -garantindo de que algo voltado ao bem comum chegue a todos em iguais condições de acesso e com idênticos padrões de qualidade – esteja baseada na equidade (dar a cada um o que necessita).

Para construir a equidade ao transitar pelo abismo, as organizações da sociedade civil (OSC) devem deixar de se definirem como setor. A sociedade civil organizada não é um setor, é muito mais do que isso. É um lugar composto de diversos setores. Isso a converte no lugar para incidir os abismos sociais.

O abismo da fragmentação setorial que permite aceitar que o Estado e as Empresas são setores distintos, quando ambos deveriam ser ferramentas da sociedade que devem articular-se para construir bem comum no lugar de bem-estar setorial. Quando o Estado e os empresários – e até as OSC – se percebem como setor, convertem-se em fim e começam a desenvolver ações para dentro, deixando de servir como meio, cuja missão está no bem comum.

O abismo do rol investido que se dá quando os operadores do sistema se sentem primeiros dirigentes e logo cidadãos, no lugar de assumirem-se como cidadãos-dirigentes. Quando o dirigente político deixa de se sentir cidadão, captura o Estado para colocá-lo ao serviço de interesses pessoais ou setoriais. Quando o empresário se esquece de ser cidadão, maximiza lucros às custas de não cumprir com a lei e ignora investir com responsabilidade social.

O abismo que existe entre contabilizar tangíveis e administrar intangíveis. A Diferença do Estado, que monopoliza o capital da representação e opera desde o poder formal, e da empresa, que cria capital econômico e acumula poder financeiro, as OSC constroem capital social, que não é outra coisa que confiança. A confiança composta pela combinação do marco de previsibilidade institucional e da liderança de seus membros impulsiona intangíveis como o voluntariado, as alianças intersetoriais, as estratégias de comunicação m sociedade com os meios, doações diversificadas ou o máximo dos intangíveis: o poder simbólico.

O abismo que existe entre apostar em resultados e sustentar processos. Em estratégias de desenvolvimento sustentável, os resultados dever ser emergentes do desenvolvimento de um processo, do contrário, as OSC se convertem em instituições de êxito, em vez de serem ferramentas de transformação. Devemos entender que sustentar um processo, também é um resultado.

Um abismo analisado pelo filósofo colombiano Bernardo Toro é o existente entre gestão pública e bem público. Uma contratação pública é um bem público apenas se é transparente, porque se houver corrupção se está negando a igualdade de acesso. Um sistema de educação pública só pode ser considerado se os professores que o integram matriculam seus filhos à escola pública, porque se decidem enviá-los para a rede privada, reconhecem que a qualidade exigida para todo o bem público está denegrida.

O abismo que existente entre partidos políticos e uniões transitórias eleitorais (UTE). A recuperação dos partidos políticos não parte da evangelização dos cidadãos, mas em um trabalho intenso e pragmático com os afiliados para que elevem suas exigências. Afinal, quando os afiliados deixaram de exigir ideologia, os partidos abandonaram a doutrina; quando os afiliados deixaram de exigir políticas públicas, os partidos deixaram de elaborar plataformas programáticas. Quando os afiliados deixaram de exigir dirigentes de qualidade, os partidos políticos se reduziram à mínima expressão da listas arenosas, deformadas em perversas alianças para ganhar eleições.

O abismo que existe entre sistema democrático e a democratização do sistema. Todos os cidadãos têm que consentir com a agenda institucional, porque é daí que se resolve qualidade de vida em nível macro. Não existe inclusão social sem inclusão cívica.

O abismo entre o velho e o novo. As organizações da sociedade civil deveriam acompanhar decididamente os dirigentes emergentes que começam a gerir o Estado a partir de valores sociais. Não serve deixar passar o tempo para que se vá o velho, porque velho não tem a ver com temporalidade, mas com vigência. Se o público se constrói com instituições, as instituições se constroem com homens. Não se pode construir o novo com os arquitetos do velho em plena vigência.

O abismo entre incidir no poder real e promover mudanças desde o poder difuso. As organizações da sociedade civil, em comparação ao poder de incidência que tem o Estado e as empresas, possuem um limitado poder real. Da habilidade para construir poder difuso a partir da operação em espaços coletivos transversais, é de onde o escasso poder real se converte em um poder difuso impossível de medir e neutralizar. As OSC não geram mudanças desde o seu poder real, mas de seu poder difuso.

O abismo entre a própria organização e os espaços coletivos pode ser mudado se conseguirmos ver no coletivo a superação da própria organização. Para isso é preciso superar outro abismo implícito, que existe entre a coincidência programática das organizações e a inteligência emocional do que cada um resigna para do outro, que permite construir alianças.

Em síntese, se constrói o público desde a sociedade civil se nos começamos a ver como atores articulados e não como um protagonista diferenciado; como meios e não como fins; como administradores de intangíveis e não como possuidores do tangível; como construtores de um capital social baseado na equidade; como gestores de mudanças desde o poder difuso e sobre tudo, construímos e incidimos no público se nos assumirmos como lugar e não como setor; se trabalharmos para diminuir o abismo e não para aumentar-nos como organizações. Construir sociedade desde o abismo, esse lugar que habita a grande maioria das pessoas, a que exclui o mercado e que ignora o Estado.

*Carlos March é representante da Fundação Avina em Buenos Aires, Argentina.

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