Terceiro setor enfrenta diversas ameaças

Por: GIFE| Notícias| 08/03/2004

LESTER M. SALAMON
Diretor do Centro de Estudos da Sociedade Civil do Johns Hopkins Institute for Policy Studies

Publicado originalmente no jornal The Chronicle of Philanthropy (8/1/2004). Reprodução autorizada.

As organizações norte-americanas sem fins lucrativos sobreviveram à extraordinária batalha travada contra os desafios financeiros, competitivos, de accountability e de legitimidade enfrentada ao longo das duas últimas décadas. Mas os caminhos que elas trilharam, apesar de ajudarem-nas a sobreviver e até mesmo a prosperar, impuseram riscos aos atributos que tornam estas entidades tão importantes.

Nos últimos 20 anos, as organizações norte-americanas sem fins lucrativos viveram um crescimento considerável, basicamente devido à maior integração com a economia de mercado. Elas comercializaram com êxito seus serviços, iniciaram empreendimentos comerciais, estabeleceram parcerias com empresas, adotaram técnicas de administração do mercado, remodelaram suas estruturas organizacionais, incorporaram sofisticados métodos de marketing e de administração financeira na captação de recursos e, freqüentemente, descobriram novas formas de usar o dinamismo e os recursos do mundo corporativo para promover seus objetivos organizacionais. Como resultado, o terceiro setor do século 21 não é mais “”your father′s nonprofit sector””. Melhor, ele foi substancialmente reinventado e redesenhado.

Assim como estas mudanças foram úteis para as ações sem fins lucrativos, entretanto, elas também trouxeram enormes problemas para as organizações e para todos aqueles que dependem do trabalho especial que elas desempenham. Entre os riscos mais significativos estão:

Crise de identidade. A tensão é crescente entre o caráter de mercado que as organizações imprimem ao seu crescente número de serviços e o seu objetivo social.

Essa tensão já é instransponível no campo da saúde, no qual os reembolsos do governo e dos planos de saúde tornam extremamente difíceis para as organizações não-lucrativas sustentar suas ações sociais, o serviço comunitário e as ações de capacitação e de pesquisa, que já não são mais as marcas registradas de seu envolvimento.

Universidades privadas também estão enfrentando a crescente tensão entre a missão de propagar conhecimento e o aumento da dependência de acordos de licenciamento, o que as leva a restringir o acesso aos frutos da pesquisa científica em razão do interesse econômico. Pressões similares estão se infiltrando nas operações de outras organizações, induzindo-as a perseguir os ricos clientes dos subúrbios e transformando instituições artísticas e culturais em empreendimentos sociais tão atentos à qualidade artística como às demandas de mercado.

Maior pressão sobre os dirigentes. As intensas pressões sobre as organizações também dificultam o trabalho de seus dirigentes, exigindo que eles não sejam mestres apenas em sua área de atuação, mas também nos mercados privados nos quais operam, nas numerosas políticas públicas que afetam e no intenso desenvolvimento da tecnologia e da administração com o qual eles devem conviver em seu dia-a-dia.

Mais além, eles têm de fazer tudo isso ao mesmo tempo em que gerenciam um crescente e complexo exército de stakeholders que incluem clientes, empregados, membros do conselho, doadores, governo, competidores do mundo lucrativo e parceiros comerciais. Isso sem dizer que eles também têm de demonstrar boa performance ao disputar com outras organizações, não-lucrativas e lucrativas, taxas, membros do conselho, clientes, contratos, doações, visibilidade, prestígio, influência política e voluntários. Não é à toa que as crises de estresse são cada vez mais comuns, apesar da satisfação e da excitação que o trabalho não-lucrativo sempre exigem.

Crescente ameaça à missão social. Sem surpresa alguma, essa pressão está prejudicando as organizações a atingir seus objetivos principais.

Forçadas a contar com recursos externos, as organizações naturalmente começaram a direcionar suas ofertas de serviços para aqueles que podem pagar. O que começou como uma forma de subsidiar as ações para os mais necessitados, logo acabou se tornando fonte essencial de renda. Organizações que dependem da captação de recursos sempre são tentadas a localizá-los em locais onde elas vão seduzir clientes que podem pagar. Enquanto as entidades forem atraídas para o mercado comercial, mais elas enfrentarão ameaças aos seus objetivos sociais básicos.

Pequenas organizações em desvantagem. As pressões atuais criaram dilemas particulares para os pequenos grupos, já que a adaptação às pressões do mercado requer acesso efetivo à tecnologia avançada, ao marketing profissional, aos parceiros corporativos, à captação de recursos sofisticada e a um complexo sistema de reembolso governamental, questões problemáticas para as pequenas organizações. Conseqüentemente, as pressões de mercado não estão criando apenas um fosso digital, mas um verdadeiro “”vácuo de sustentabilidade”” que as pequenas organizações estão cada vez mais impossibilitadas de transpor. O resultado, muitas vezes, é a redução da diversidade no terceiro setor e a diminuição de um de seus atributos mais admirados: sua possibilidade de ser um campo de testes de novas idéias.

Corrosão da confiança pública. As organizações norte-americanas estão bem além do curioso estereótipo do voluntariado desinteressado mantido pelas doações caridosas. Porém, a imagem pública continua enraizada neste modelo, e muito pouco tem sido feito para mudar a percepção popular e mostrar a nova realidade que prepondera no setor.

Como conseqüência, as organizações ficam vulneráveis quando grandes acontecimentos, como a tragédia do 11 de Setembro, deixam que exemplos de má administração e escândalo revelem que elas estão muito mais engajadas comercialmente do que o público suspeita. O resultado é uma crescente ameaça à confiança pública, da qual as organizações dependem em último grau.

O que tudo isso sugere é um desequilíbrio entre a “”distinção imperativa”” do mundo não-lucrativo, isto é, as ações que as organizações fazem para permanecerem diferenciadas e, portanto, justificar impostos distintos e outros privilégios que elas usufruem, e sua “”sobrevivência forçada””, ou seja, os papéis que elas acabam desempenhando para continuar a existir. Atualmente, a balança anda pendendo para o lado da última opção.

Para corrigir isso, os pesquisadores e os líderes do terceiro setor precisam repensar os valores básicos e os propósitos das organizações sem fins lucrativos.

A evolução do terceiro setor nos Estados Unidos arremessou longe o que nossos conceitos e valores existentes são capazes de aceitar. As noções existentes de “”benefício público”” ou “”propósito social”” que focam diretamente no “”serviço para os pobres”” negligenciam ou depreciam outros objetivos válidos que as organizações podem utilizar, como a perseguição da qualidade, o encorajamento da diversidade, a disposição para servir mesmo na ausência de lucro e a promoção da comunidade.

Os executivos das organizações precisam articular uma nova razão para a existência das organizações sem fins lucrativos no século 21 e terem certeza que esta lógica é refletida nas doutrinas legais e nas missões e nas ações das organizações.

O público precisa saber dos desafios que estas organizações estão enfrentando e quais os caminhos que elas estão trilhando para superar as dificuldades.

Apesar do crescimento das pesquisas sobre o setor, os dirigentes ainda não têm nada próximo a uma central de notícias como a Bloomberg, com informações sobre as tendências e como outros líderes as estão utilizando. Mais importante, o público permanece totalmente desinformado sobre como as organizações sem fins lucrativos atualmente operam nos Estados Unidos.

Para remediar isso, é preciso desenvolver uma boa comunicação e iniciar um intenso esforço de convencimento público. Isso não deve ser confundido com o ritual de celebração das ações sociais e do voluntariado que os departamentos de relações públicas de muitas organizações acabam fazendo. Em vez disso, o público precisa ser apresentado à complexa realidade das ações sem fins lucrativos. Isso vai requerer, por exemplo, um reconhecimento mais explícito da longa e substancial parceria do terceiro setor com o Estado e esforços para usar técnicas comerciais na promoção do bem público.

Concluindo, diversas ações concretas devem ser feitas para revitalizar o terceiro setor norte-americano e reconectá-lo ao público. Entre elas:

  • Encorajar o Estado a utilizar contrapartidas na sua assistência às organizações sem fins lucrativos e assim garantir que os impostos repassados vão para causas com fins públicos, além de promover incentivos para entidades que permanecerem focadas em gerar resultados sociais;
  • Pressionar o Congresso para flexibilizar o advocacy sem fins lucrativos, que é mais restrito nos Estados Unidos do que em outros países democráticos;
  • Criar diretrizes claras que expliquem porque as organizações cobram por alguns serviços e onde os recursos gerados são empregados, o que ajudará o público a distinguir entre entidades sem fins lucrativos e as lucrativas;
  • Promover a aprovação de leis de incentivos fiscal para investimentos na estrutura tecnológica das organizações sem fins lucrativos e, assim, superar a desvantagem que elas têm ao captar recursos em razão da falta de acesso ao mercado de ações. Poucos passos seriam necessários para ajudar a criar uma maior participação das entidades sociais na competição contra as empresas;
  • Persuadir fundações a se transformarem em “”bancos filantrópicos”” que separam “”financiamento””, “”empréstimos”” e “”garantias de empréstimo”” e assim maximizam o impacto dos recursos filantrópicos;
  • Ter certeza de que as políticas de reembolso dos principais programas de governo, dos quais as organizações dependem tanto para financiar suas atividades, não tornem impossível para as entidades desempenhar suas ações de fins públicos, como suas atividades sociais, de capacitação, de advocacy e de pesquisa;
  • Substituir o atual sistema de incentivos fiscais para as doações por um mecanismo no qual o incentivo fiscal não depende dos ganhos que a pessoa têm. Isso vai ajudar a democratizar as doações e provavelmente incrementar o montante doado.

Os norte-americanos sempre falam, da boca para fora, da importância que nós damos às organizações sem fins lucrativos, enquanto a maioria ignora os desafios que essas entidades enfrentam. Os dirigentes acabam, por decisões próprias, escolhendo os riscos que suas organizações podem assumir para continuar sobrevivendo.

Apostar no modelo estereotipado em que os norte-americanos acreditam parece não ser o mais adequado. Diante das enormes pressões que sofrem, os dirigentes precisam de ajuda para ter certeza de que o balanço que eles fazem entre a distinção e a sobrevivência é o melhor disponível. De outra forma, os norte-americanos correm o risco de preservar um terceiro setor muito diferente daquele que nós desejamos.

Associe-se!

Participe de um ambiente qualificado de articulação, aprendizado e construção de parcerias.

Apoio institucional