Terceiro setor ibero-americano precisa defender sua identidade

Por: GIFE| Notícias| 03/11/2003

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

Durante o último Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor, realizado no ano passado, em Barcelona, Joaquim Falcão foi escolhido para ser o presidente da edição de 2004 do evento. Mestre em direito pela Universidade de Harvard, atualmente ele é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, vice-presidente do Instituto Itaú Cultural e conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Em entrevista ao redeGIFE, ele fala sobre a importância da democracia na construção da sociedade civil organizada, os efeitos da globalização no exercício da cidadania, o desenvolvimento do terceiro setor na Ibero-América e as expectativas com relação ao Encontro.

redeGIFE – Qual a importância da realização do Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor no Brasil, neste atual momento político e econômico?
Joaquim Falcão – O mundo está mudando. O Brasil está mudando. Quem não perceber corre o risco de ficar para trás. A criação de blocos, alianças e comunidades é condição de sobrevivência das nações na globalização. O mundo, sobretudo a Europa, como diz [Antonio] Saenz de Miera [espanhol, especialista em fundações européias], vê o Brasil hoje como a possibilidade de um novo tipo de sociedade, capaz de inovar no combate à desigualdade de renda e à fome e de vir a ser o maior celeiro do mundo. A sociedade civil, o terceiro setor, não pode ficar fora deste processo, já que somos parte integrante dele e devemos ser pró-ativos. A convergência ibero-americana é nossa tarefa, nossa aliança natural.

redeGIFE – Quais são as expectativas com relação aos resultados do Encontro?
Falcão – São duas expectativas principais. A primeira é alimentar o impulso ibero-americano. Estamos geograficamente juntos, estamos geneticamente juntos, mas estamos muito separados. Existe uma complementaridade entre a Ibero-América da América do Sul (Brasil e países de origem espanhola) e a Ibero-América da Europa (Espanha e Portugal). Precisamos praticá-la mais intensamente. A Comunidade Européia tende a pressionar Portugal e Espanha para que sejam apenas europeus, e os Estados Unidos tendem a nos pressionar para que sejamos apenas americanos. Não somos nem um, nem outro. Não nos podemos negar a história. Temos é que reforçar nossos vínculos ibéricos. A segunda expectativa é conhecer, informar-se, trocar experiências, criar redes, reinventar a história, formular projetos e parcerias nunca dantes imaginados.

redeGIFE – De que maneira a globalização afeta o exercício da cidadania em níveis local e regional?
Falcão – A globalização afeta de duas maneiras. Negativamente, na medida em que a globalização econômica e tecnológica é assimétrica e desigual. Ela mantém e às vezes agrava uma exclusão mundial além da digital, mas também nas áreas da educação, da saúde e do bem estar, sem o que cidadania não há. Positivamente, ela afeta na medida em que legitima e difunde diretos humanos universais e assim contribui para uma cidadania local e regional mais igualitária. Só neste ambiente favorável aos direitos universais foi possível a vitória brasileira na quebra de patentes dos remédios contra Aids. Em São Paulo, vamos discutir estes problemas e procurar novos caminhos.

redeGIFE – Como os países ibero-americanos têm se relacionado para o intercâmbio de informações e de experiências em democracia e promoção da cidadania?
Falcão – No começo de 1900, havia 25 democracias (e mesmo assim restritas, onde homens negros e mulheres não podiam votar) num mundo de 55 países soberanos. Inclusive no mundo ibero-americano. Portugal e Espanha só se democratizaram depois de alguns países da América Latina. Hoje existem 120 em 192 paises existentes. A democracia, ainda que múltipla, é a grande conquista do século XX. Caminho irreversível. Foi ela que permitiu o desenvolvimento da sociedade civil organizada, do terceiro setor. A nossa representatividade não se confunde com a dos partidos políticos, que reside no voto. Está na nossa missão e nos valores que defendemos. Enquanto a filiação partidária decresce no mundo inteiro, a participação em ONGs, associações, fundações e institutos cresce. Ao captar o desejo de participação democrática dos cidadãos, o terceiro setor reInventa a polis, reInventa a política.

redeGIFE – Até que ponto as barreiras comerciais e econômicas influenciam este relacionamento?
Falcão – Influenciam e muito. Os países ibero-americanos, da América Latina em especial, se deram conta, ainda que um pouco tarde, de que os países desenvolvidos enviam uma dupla mensagem na globalização. “”Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço”” parece ser a regra. Acabam por tornar a globalização um relacionamento esquizofrênico. É o que temos visto com referência às barreiras econômicas. Querem derrubar qualquer barreira referente a direitos de propriedade intelectual, mas manter as agrícolas. Um contra-senso. Invertem o slogan maior da globalização ecológica. Em vez de “”Pense globalmente e aja localmente””, fazem o inverso, pensam localmente e agem globalmente. Haja a ver os Estados Unidos e o protocolo de Kyoto. Pensa no Texas e age na ONU. Como observou com razão um amigo europeu, a Europa paga mais em subsídios agropecuários para uma vaca do que os países em desenvolvimento pagam em salário desemprego para um seu cidadão. Algo está errado neste processo.

redeGIFE – Qual o papel do terceiro setor na formação de um bloco de países ibero-americanos?
Falcão – Na consolidação de parcerias ibero-americanas, o terceiro setor leva vantagens sobre os governos. Somos mais informais, mais múltiplos, mais ousados, mais pulverizados, mais experimentais. Muitas entidades do terceiro setor partilham de valores além de locais, transnacionais também. E quando falamos em terceiro setor pensamos também nos projetos de responsabilidade social das empresas locais e globais. São indispensáveis. Podemos mais facilmente encontrar projetos comuns. Podemos lançar luz sobre áreas onde mais tarde nossos países possam se debruçar, complementar e unir. Criar vínculos positivos, como se diz na psicologia. No momento atual, a Ibero-América é uma origem, um ideal, mas é sobretudo uma construção a ser feita.

redeGIFE – É possível levar à articulação de blocos regionais, como a Alca e o Mercosul, questões sociais e culturais, além da perspectiva econômica? Como fazer isso?
Falcão – Não somente é possível, como indispensável. Na medida em que a globalização significa uma integração de mercados, a cultura é fundamental. Pois para vender seus produtos em outro país, ou a empresa se adapta aos hábitos locais ou os combate, tenta mudá-los. Com isso muda a identidade dos países. Em Cancun, a Europa queria exclusividade na marca “”roquefort””, “”presunto de Parma”” e “”queijo feta””. Pode-se pensar França, Itália e Grécia sem estas marcas, estes hábitos, estes produtos? A concorrência global é mais e mais uma concorrência cultural. Japoneses pretenderam registrar como marcas suas nada menos do que o nosso cupuaçu e o açaí. A questão da cultura e da identidade dos países é a maior arena recôndita da globalização, onde se vai decidir o jogo. Hoje os melhores times são o american way of life e o savoir faire. Mas o jogo tende a se ampliar. As ONGs, as fundações e os institutos do terceiro setor ibero-americano têm um papel a desempenhar não só na defesa da identidade cultural local e regional, mas também na exportação destas identidades. Reação, mas, sobretudo, ação. Defesa, mas, sobretudo, ataque, como uma boa seleção de futebol campeã do mundo.

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