Urbanismo social: como criar cidades mais inclusivas e solidárias?

Por: Fundação FEAC| Notícias| 03/10/2022
UrbaniZarte: projeto, em Campinas, estimulou integração e convivência em espaços públicos de regiões vulneráveis

UrbaniZarte: projeto, em Campinas, estimulou integração e convivência em espaços públicos de regiões vulneráveis

As cidades crescem atualmente a uma velocidade sem precedentes. Segundo estimativa do IBGE, a população urbana brasileira chega a 179 milhões de habitantes, representando 84,3% da população total do país. E as regiões metropolitanas concentram a maioria absoluta (88,6%) dos assentamentos irregulares ou favelas.  

O Brasil é hoje o país mais urbanizado da América Latina e com um dos índices mais alarmantes de desigualdade social. Nesse contexto, garantir o direito à cidade é também assegurar dignidade às pessoas e condições de exercer plenamente a cidadania. 

Em Campinas, levantamento da prefeitura mostra que cerca de 20,4% dos habitantes se encontram em situação de vulnerabilidade social e parte significativa deste total mora em áreas com infraestrutura insuficiente, atingidas por problemas como violência, tráfico de drogas, fragilização de vínculos afetivos e sociais, discriminação etária, étnica, de gênero, por deficiência, entre outras. Segundo o Ipea, de 2021, o déficit habitacional no Brasil é de 8 milhões de moradias. 

Há muitas abordagens possíveis para se enfrentar a pobreza e a violência em locais de alta vulnerabilidade social e tornar as cidades mais solidárias e inclusivas. Em comum, costumam ter o foco na participação dos moradores na definição das soluções. “As avaliações indicam que os projetos criam um estímulo inicial para que as pessoas voltem a ocupar os espaços públicos de integração e convivência nas comunidades. O desejo da comunidade em ocupar e se apropriar de um espaço público é o primeiro passo para (re)qualificar e adequar seu uso”, afirma Sílnia Prado, coordenadora do Programa Fortalecimento de Vínculos da Fundação FEAC e coordenadora do projeto UrbaniZarte (leia mais sobre ele abaixo)

O arquiteto Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Insper, em São Paulo, reforça: “Para ser eficaz, qualquer intervenção urbana tem de estar integrada a um plano de ação local. Uma praça, uma Unidade Básica de Saúde (UBS), uma creche, medidas de mobilidade urbana, nada disso se faz setorialmente. As ações precisam estar integradas. E iniciam-se pelo espaço público – que é o lugar em que as pessoas podem se encontrar e alavancar a vida comunitária”. 

O exemplo de Medellín 

Uma estratégia bem-sucedida de urbanismo social nasceu em Medellín, na Colômbia, e vem sendo replicada em diversos países. Até o início do século, a cidade, a segunda maior do país, com 2,6 milhões de habitantes, ainda era apontada como uma das mais violentas do mundo. A partir de 2004, a gestão do então prefeito Sergio Fajardo e do urbanista e diretor de Projetos Urbanos da Prefeitura, Alejandro Echeverri – que ficaria conhecido como o “pai” do urbanismo social –, transformou profundamente a vida nas áreas mais pobres de Medellín. A iniciativa teve continuidade nas outras administrações, durando cerca de 15 anos – o que fez da experiência um case de sucesso internacional. 

A estratégia adotada consistiu em uma intervenção urbana integrada para promover melhoria da qualidade de vida e inclusão socioterritorial, com soluções de questões habitacionais e de infraestrutura, criação de um amplo equipamento público de atendimento integral, além de gestões participativas, envolvendo governo, organizações da sociedade civil e moradores. Desde então, o conceito de urbanismo social é associado ao projeto de Medellín. 

Experiência colombiana: comunidades de Medellín ganharam moderno complexo educacional e recreativo

“Enquanto conceito, metodologia e programa, pode-se dizer que o urbanismo social nasce em Medellín”, afirma Carlos Leite, que esteve diversas vezes em Medellín, como consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para conhecer o programa. A experiência colombiana inspirou importantes iniciativas no Brasil. Atualmente, diversos estados adotam modelos de intervenção urbana que replicam parcialmente as ações implementadas no país vizinho.  

No modelo de Medellín, os chamados “equipamentos públicos” são os grandes polos de encontro da comunidade, com bibliotecas, parques e centros educacionais abertos 24 horas e 365 dias no ano, com funções esportivas, culturais e educativas. No orçamento, o investimento em educação passou de 12%, em 2003, para 40%, em 2006. O crescimento ocorreu também na pasta de cultura, cujo orçamento saltou de 0,68% para 5%, no mesmo período.  

Espaços de convivência e equipamentos âncora 

Existem hoje dois casos de maior envergadura no Brasil que se inspiraram em Medellín: a Rede dos Centros Comunitários da Paz (Compaz) e o Mais Vida nos Morros, ambos no Recife (Pernambuco). O secretário de Segurança Pública Cidadã do Recife, Murilo Cavalcanti, em sua terceira gestão no cargo, está inaugurando o quinto Compaz, que é um grande equipamento âncora no meio dos territórios mais vulneráveis, semelhante aos centros colombianos.  

“Eles não fizeram o programa integral, não possuem um projeto de urbanismo, de habitação, de melhoria de favelas, mas têm a ideia do grande equipamento âncora, com governança compartilhada na comunidade. Já é um grande avanço”, explica Carlos Leite.  

Já o programa Mais Vida nos Morros, premiada política pública do Recife, implantada pelo Secretário de Inovação Urbana, Túllio Ponzi, adota diretriz oposta ao Compaz: não investe em equipamento público, mas na implementação do chamado urbanismo tático, com entregas rápidas e que ganham em escala. Como Recife tem muitos morros, assim como Medellín, e a comunidade pobre vive nesses locais, a administração pública investiu em programas de contenção de áreas de risco e melhorias de drenagem nos morros. Também criou áreas de convivência, praças, melhorou a acessibilidade e ampliou muito o foco nas crianças, com espaços lúdicos e seguros para infância. 

O Mais Vida nos Morros também firmou uma parceria com a Fundação Bernard van Leer, que trabalha com o programa Urban95, voltada à primeira infância, e a experiência foi replicada em diversas cidades do país. 

“Quando se fala em urbanização de favelas no Brasil, duas coisas são dramaticamente complexas, custosas e demoradas: melhoria de infraestrutura – água, esgoto, saneamento básico – e habitação social. O programa Mais Vida nos Morros não ataca nenhum deste dois problemas. Por outro lado, ele consegue ser muito mais ágil e ganha em escala”, diz o urbanista. Hoje em dia, o programa já está em 56 favelas/morros no Recife e impacta diretamente mais de 40 mil pessoas. Estudos de avaliação de impacto atestam a eficácia da medida com melhoria da qualidade de vida da população local. 

Estratégia de prevenção à violência 

Mais recentemente, o governo do estado do Pará, inspirado no Compaz, criou um modelo muito similar em lugares de maior violência: os centros educacionais e recreativos Usinas da Paz, em Belém. Os complexos são voltados “para a prevenção à violência, inclusão social e o fortalecimento comunitário”, destaca a prefeitura do município.

No Ceará, a prefeitura de Fortaleza criou a Rede Cuca, uma rede de proteção social e oportunidades formada por três Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), mantidos pela prefeitura em parceria com a iniciativa privada, por meio da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude. 

A experiência do UrbaniZarte, em Campinas 

Entre 2016 e 2019, o projeto UrbaniZarte, do Programa Fortalecimento de Vínculos, da Fundação FEAC, realizou intervenções nestas áreas mais vulneráveis, nas cinco macrorregiões do município, com o objetivo de prevenir o agravamento da vulnerabilidade social e reforçar vínculos familiares e sociais. São eventos, com duração de quatro horas, nos quais pessoas, coletivos e instituições promovem atividades interativas, com foco em esporte, arte, cultura e cidadania, em espaços públicos de integração e convivência.  

“Em 2016, fizemos o primeiro desses eventos e, aos poucos, vimos chegar os diversos públicos dos territórios. Percebemos que as pessoas queriam se integrar de alguma forma: os skatistas se aproximaram para andar nas imediações da praça; meninos que batiam bola ali pediram para ocupar um pedaço da quadra”, relembra Sílnia Prado, historiadora de formação, especialista em projetos na área de cultura e líder do Programa Fortalecimento de Vínculos. 

Essas atividades são gratuitas e voltadas para toda a comunidade. O intuito é que ajudem a fortalecer as relações dentro dos territórios e consolidar as redes locais, promovendo o diálogo e o compartilhamento de experiências com a finalidade de encontrar coletivamente soluções para os desafios comunitários.  

Desde o início oficial do UrbaniZarte foram realizadas 23 edições do projeto – cinco em 2017, nove em 2018 e nove em 2019 –, que registraram mais de 10 mil participantes no total. O programa foi interrompido em 2020 devido à pandemia e deve retomar as atividades em 2023. Ainda neste semestre será lançado um guia on-line, que apresenta as linhas gerais do projeto, seus objetivos e resultados. 

Por Natália Rangel

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