Utilidade Pública Federal e OSCIP

Por: GIFE| Notícias| 07/06/2004

ALEXANDRE CICONELLO
Coordenador da área jurídica e do escritório Brasília da Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais)

O universo das entidades sem fins lucrativos no Brasil é extremamente amplo e heterogêneo. Entre organizações comerciais, clubes de futebol, hospitais e universidades privadas, associações de produtores rurais, organizações de defesa de direitos, fundações e institutos empresariais, clubes recreativos e esportivos, organizações não-governamentais, creches, asilos, abrigos, centros de juventude, associações de bairro, entidades ambientalistas, centros comunitários, associações de interesse mútuo, etc, existem perfis, objetivos e perspectivas de atuação social bastante distintos e às vezes opostos.

Todas as entidades citadas acima são constituídas juridicamente como associações ou fundações, sendo que a finalidade não-lucrativa é uma de suas características. Para complicar um pouco mais, além das já conhecidas associações e fundações, existem outras entidades sem fins lucrativos no Brasil, como as organizações religiosas, os cartórios, serviços sociais autônomos, condomínios em edifícios, unidades executoras (associações de pais e mestres e caixas escolares), comissões de conciliação prévia, entidades de mediação e arbitragem, partidos políticos e sindicatos.

É importante ter em mente essa enorme diversidade e complexidade das entidades sem fins lucrativos no país quando analisamos os títulos e as qualificações atualmente existentes, conferidos pelo governo federal. Os principais são: Utilidade Pública Federal (UPF), OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e Certificado Beneficente de Assistência Social (Ceas).

A principal característica de uma titulação ou qualificação conferida pelo Estado é destacar, entre o universo das entidades privadas sem fins lucrativos, aquelas que são voltadas para esfera pública ou em um dado momento histórico possuem alguma relevância para o poder público.

É importante observar que o Estado brasileiro sempre reconheceu, apoiou e incentivou com repasse de recursos públicos diretos e indiretos as associações e as fundações voltadas para a prestação de serviços nas áreas da saúde, educação e assistência social. As organizações que formam esse universo sempre tiveram uma relação privilegiada com o poder público.

A Constituição Federal de 1934, por exemplo, declara a imunidade tributária para estabelecimentos particulares de educação, nos seguintes termos: “”Art 154 – Os estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou profissional, oficialmente considerados idôneos, serão isentos de qualquer tributo.””

Um pouco depois, em 1935, por meio da Lei Federal nº 91, que institui o título de Utilidade Pública Federal, o Estado cria um título jurídico de reconhecimento de utilidade pública para entidades sem fins lucrativos, mediante um processo discricionário de qualificação. Com esse diploma legal, o Estado brasileiro, pela primeira vez, reconhece o caráter “”público””, ou melhor, destaca que determinadas associações e fundações podem ser consideradas como de utilidade pública. O principal requisito é que sirvam desinteressadamente à coletividade. Desse modo, é criada uma distinção legal entre as associações e fundações que servem à coletividade e em geral, e entre aquelas que servem apenas a interesses restritos de seus associados e instituidores.

Podemos traçar paralelos entre a imunidade de impostos para as entidades educacionais, prevista na Constituição de 1934, e a criação do título de Utilidade Pública Federal, instituído em 1935. O gozo da imunidade exigia que a entidade fosse considerada oficialmente idônea. Segundo o procurador José Eduardo Sabo Paes, “”possivelmente é este adjetivo de idôneo que irá exigir a regulamentação da utilidade pública em legislação específica um ano após.””

No início, o título de utilidade pública federal tinha apenas um caráter honorífico. Contudo, posteriormente, foram agregados alguns benefícios às organizações tituladas, muito embora o art. 3º da referida lei previa que “”nenhum favor do Estado decorrerá do título de utilidade pública””. Aliás, essa é uma característica de nossa legislação: inicialmente se reconhece um campo de organizações consideradas de utilidade ou interesse público e, posteriormente, destina-se a essas organizações alguns incentivos e facilidades de acesso a recursos públicos.

Nessa primeira tentativa de identificar a “”utilidade pública”” de um conjunto de organizações, a concessão ou não do título era uma competência do presidente da República, que agia de forma discricionária, ou seja, poderia conceder ou não o título, baseado em critérios pessoais ou políticos. Isso reflete a tendência extremamente paternalista e pouco transparente do Estado brasileiro da época. Ou seja, as entidades tituladas como de Utilidade Pública Federal naturalmente eram aquelas alinhadas com a política de governo. Para as organizações da sociedade civil de perfil mais contestatório e crítico, não havia possibilidade de reconhecimento estatal e de acesso a recursos públicos.

A Lei 9.790/99, que instituiu a qualificação como OSCIP, também optou por reconhecer o caráter público de um conjunto de organizações da sociedade civil até então não reconhecidas pelo Estado, por meio uma qualificação conferida pelo poder público.

A lei criou um novo sistema classificatório que diferencia organizações sem fins lucrativos de interesse público daquelas de benefício mútuo (para um número limitado de associados) e de caráter comercial. A novidade é que o processo para a concessão dessa qualificação é baseado em critérios objetivos, a partir da identificação de áreas de atuação social consideradas como de interesse público.

A classificação realizada pela Lei 9.790/99 foi um avanço na identificação da pluralidade de iniciativas sociais de interesse público promovidas pelas inúmeras associações e fundações existentes no país. Esse recorte abarca tanto os tradicionais campos de atuação das organizações sem fins lucrativos (educação, saúde e assistência social) quanto os novos campos de atuação (como promoção do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, promoção de direitos estabelecidos, voluntariado e construção de novos direitos etc).

Cabe ressaltar, entretanto, que a Lei 9.790/99 não interfere nos marcos jurídicos anteriores, em especial no título de Utilidade Pública Federal e no Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (antigo Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos). Uma das razões para isso foi o de facilitar a formação das condições políticas necessárias que possibilitassem a aprovação do projeto de lei no Congresso Nacional. Foi previsto um processo de transição entre o sistema anterior e o novo, por meio do art.18 da referida lei, que até agora não se revelou eficaz e demonstra as contradições existentes na criação de uma nova qualificação sem um debate profundo e sem uma alteração do sistema anterior ainda vigente.

Não faz sentido atualmente a existência de dois “”títulos”” públicos conferidos pelo governo federal (Utilidade Pública Federal e OSCIP) às associações e às fundações e que são concedidos pelo mesmo órgão (Ministério da Justiça), seguindo lógicas, requisitos e critérios diferenciados.

A Lei 91 de 1935 deveria ser revogada, extinguindo o título de Utilidade Pública Federal. Além disso, algumas exigências para a concessão da UPF deveriam ser obrigatórias para as entidades que pretendem se qualificar como OSCIP, como, por exemplo, estabelecer prazo mínimo de constituição legal (2 ou 3 anos) para que as associações ou fundações possam se qualificar como OSCIP e incluir a apresentação do relatório de atividades como documento necessário para instruir o processo dessa qualificação.

Um dos objetivos da Lei 9.790/99 foi fortalecer as organizações da sociedade civil, como forma de aprofundar a democracia e a cidadania no Brasil. Contudo, a falta de prazo e de apresentação de relatório de atividades para a qualificação como OSCIP estimula a constituição de novas organizações, muitas vezes existentes apenas formalmente, sem nenhuma atividade concreta, voltadas unicamente para a prestação de serviços.

O Estado deve reconhecer entidades que demonstrem concretamente uma atuação social considerada de interesse público. O Estado não pode reconhecer, como vem ocorrendo, apenas uma declaração de intenções (Estatuto Social). Essa questão fica ainda mais relevante quando sabemos que as organizações qualificadas como OSCIP possuem uma maior facilidade de acesso a recursos públicos (termo de parceria, incentivo fiscal, etc.).

Associe-se!

Participe de um ambiente qualificado de articulação, aprendizado e construção de parcerias.

Apoio institucional