Vulnerabilidades dos idosos em Campinas: violências que vão além do idadismo

Por: Fundação FEAC| Notícias| 03/07/2023
Vulnerabilidades dos idosos em Campinas: violências que vão além do idadismo

O aumento das vulnerabilidades e violências sofridas pelos idosos nos últimos anos têm sido pauta de uma série de campanhas e projetos ao redor do país e no mundo. Em Campinas, atividades alusivas à campanha nacional Junho Violeta marcaram o período com o intuito de conscientizar a população e transformar essa realidade, trabalhando o respeito, o fortalecimento de vínculos e o enfrentamento das violências.

De acordo com dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um em cada seis idosos sofre algum tipo de violência no mundo. Em Campinas, o número de casos dobrou no primeiro quadrimestre de 2023. Foram 74 denúncias contra 37 de janeiro a abril de 2022. Segundo levantamento do Sisnov (Sistema de Notificação de Violência), as ocorrências registradas somente nesse período correspondem a quase 51,3% do total verificado no ano anterior.

Apesar da violência física ser a primeira a vir à mente quando o assunto é violação dos direitos dos idosos, a verdade é que existem muitas outras maneiras de violação, como negligenciar seus cuidados; abandonar e não prover assistência; agredir verbalmente e causar humilhação; e discriminar por suas condições físicas, mentais e/ou por preconceito, o chamado idadismo.

“Eu acho que isso tem a ver com o formato de sociedade que a gente tem hoje. As estruturas sociais e as relações desiguais favorecem as violências, como o racismo, o machismo, o idadismo”, evidencia Natália Valente, especialista em violências pela Fundação FEAC.

Todos têm direito a um envelhecimento ativo e saudável

Outra violência comum é a infantilização, que desconsidera completamente as vontades do idoso e o diminui, colocando-o em uma posição de obediência aos adultos. “Nós viemos de uma sociedade em que você fala que o idoso vira criança. Sim, muitas vezes ele precisa de mais cuidados, quando ele é acometido de uma doença, por exemplo. Quando não, ele tem total capacidade e pode ter um envelhecimento ativo e saudável. Nós temos que respeitar isso”, ressalta Karla Borghi, coordenadora de Políticas Públicas para a Pessoa Idosa de Campinas.

Em Campinas, as duas principais violências são: física, que acomete principalmente os idosos de 60-70 anos; e a negligência, que é a violência cometida contra os idosos com mais de 70 anos de idade. (veja infográfico ao final da matéria)

José Alberto Macedo, presidente do Conselho do Idoso de Campinas, aponta que, para além das violações, a terceira idade ainda está sujeita a diversas outras vulnerabilidades que intensificam seu sofrimento e são consideradas formas de violência. Entre elas estão o sistema de transporte não adaptado, a habitação não digna e a falta de acessibilidade e oportunidades no mercado de trabalho.

“O preconceito com a idade é o maior precursor da violência. Quando você diz que ‘o que é velho tem que ficar de lado’ você coloca o idoso como alguém que não tem valor”, explica Karla. “Ao fazer uma campanha contra o preconceito, espera-se que diminuam muito os índices de violência, porque você passa a ver essa pessoa como um ser humano que tem os seus direitos e que deve ter a garantia de todos eles”, complementa.

Atitudes discriminatórias pioram saúde mental e física de idosos

Segundo relatório divulgado em 2021 pela OMS, uma em cada duas pessoas no mundo já teve uma atitude discriminatória contra idosos, comportamento que piora a saúde mental e física dessas pessoas e, consequentemente, sua qualidade de vida.

Nesse contexto, a profissional reforça a importância da educação e das atividades intergeracionais para o enfrentamento do idadismo. “Hoje, Campinas tem mais idosos do que crianças e adolescentes, se a gente for ver estatisticamente. Precisamos urgentemente começar a fazer com que a educação faça as pessoas enxergarem o idoso como alguém que tem suas próprias vontades, uma história de vida. Você vai querer que alguém tome a decisão por você? Que ninguém respeite sua autonomia, seu querer?”, questiona.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa é de que a população brasileira com 65 anos ou mais triplique, alcançando os 58,2 milhões em 2060. Isso equivaleria a 25,5% da população total e faria com que o número de idosos fosse maior do que o de crianças – que poderão corresponder a 14% nesse mesmo ano.

Aumento e subnotificações na pandemia

Em um período em que era tão importante ficar em casa para evitar contato com o vírus, muitas pessoas se viram diante de um perigo ainda maior: o confinamento com o agressor. Assim como a violência doméstica e o abuso sexual contra crianças – crimes comumente cometidos por pessoas do convívio familiar da vítima –, a violência contra os idosos também cresceu. No Brasil, o número de notificações aumentou 59% durante a pandemia de covid-19, segundo Disque100 e Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Entre março e junho de 2020, foram mais de 25 mil denúncias.

Mesmo com o aumento, a coordenadora de Políticas Públicas para a Pessoa Idosa de Campinas chama a atenção para a subnotificação de casos. “Esse idoso estava recluso, então, muitas vezes, a denúncia não ocorria. Com o retorno das atividades, você percebe um aumento em 2021 e mais ainda em 2022”, aponta Karla. Para 2023, a previsão é que esse número continue crescendo. Campinas acompanha a tendência nacional.

O boletim da Vigilância Socioassistencial, divulgado pela Prefeitura Municipal de Campinas, mostra que, em 2020 e 2021, foram registradas apenas 99 denúncias, dado que possivelmente não reflete a gravidade da situação enfrentada na cidade.

Foi durante a pandemia também que as campanhas de conscientização sobre a violência contra o idoso ganharam força no país. O Dia Mundial da Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa, que ocorre em 15 de junho, foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa em 2006. Entretanto, Campinas e vários outros municípios só adotaram efetivamente a campanha do Junho Violeta em 2021, após aumento dos índices de violência.

Para Karla, a conscientização da população sobre o que é a violência contra a pessoa idosa também faz com que os números aumentem. “As pessoas passam a enxergar uma violência que antes era velada e começam a denunciar.”

Em 2023, Campinas abraçou ainda mais a causa e desenvolveu uma agenda que contou com uma série de eventos para reforçar a importância do enfrentamento das violências sofridas pela terceira idade. O objetivo é conscientizar a população campineira e trazer visibilidade a um assunto que vem ganhando cada vez mais espaço no debate público.

Atuação da FEAC

Nesse sentido, o papel da FEAC é investir em ações e apoiar projetos que se proponham a atuar em três dimensões fundamentais: reduzir as vulnerabilidades e violências, garantir os direitos da terceira idade e impulsionar o convívio familiar e comunitário.

Em uma de suas frentes de atuação, o Programa Acolhimento Afetivo cocria e apoia projetos desenvolvidos por Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI), como o Da Horta ao Prato e o Nossas Gerações: Quem canta seus males espanta.

O projeto Da Horta ao Prato tem o intuito de criar um espaço de troca de vivências e informações entre os idosos e os parceiros, buscando o incentivo ao consumo consciente de alimentos por meio da oficina, assim como a autonomia dessas pessoas. Além disso, um dos pontos primordiais defendidos é a acessibilidade e inclusão. Com cerca de 50% dos idosos cadeirantes, os canteiros são suspensos e possuem passarelas adequadas. Atualmente, até 20 pessoas idosas são acolhidas na Associação Franciscana de Assistência Social Coração de Maria (Afascom).

Já o projeto Nossas Gerações: Quem canta seus males espanta atua a partir do incentivo à musicoterapia. Por meio do resgate às memórias, desenvolvimento da criatividade e autonomia, a ação leva um pouco de arte aos idosos moradores das ILPI parceiras: Assistência Vicentina Frederico Ozanam de Campinas – Lar São Vicente de Paulo, Lar Da Amizade Ilce da Cunha Henry, Lar Evangélico Alice de Oliveira, Associação Franciscana de Assistência Social Coração de Maria (saiba mais sobre o projeto e uma das OSC beneficiadas no quadro ao final da matéria)

Em relação às melhorias de gestão, houve a implementação do sistema Gero360, software concebido para organizar e facilitar o acompanhamento da rotina, medicamentos e informações gerais de cada idoso acolhido pelas ILPI. Para isso, foram disponibilizadas às instituições todo o suporte e equipamentos adequados. As OSC contempladas foram o Lar São Vicente de Paulo – quem propôs o projeto –, Afascom, Lar da Amizade, Lar Alice de Oliveira e o Lar dos Velhinhos.

No ano passado, a FEAC adotou a marca EnvelhESSÊNCIA no qual um dos objetivos é o enfrentamento à violência contra os idosos. Durante o período, foram produzidas reportagens, peças informativas para as redes sociais e um hotsite, para tratar da temática e abordar o assunto com a profundidade que ele requer. Para Natália, o principal objetivo da atuação da FEAC é impactar positivamente a população idosa com um todo, seja na melhoria da gestão dos equipamentos, na implementação de práticas sociais e culturais nas comunidades e ações que promovam qualidade de vida e melhores serviços e atendimentos.

“A sociedade está envelhecendo. Nossos espaços não são acessíveis e não são pensados para pessoas idosas. Se a gente quer fortalecer que esse idoso conviva na sua comunidade, com a sua família, temos que melhorar isso”, ressalta Natália.

Projeto promove resgate de memórias e histórias de vida de idosos

Uma das formas de enfrentar a violência contra os idosos é colocá-los em uma posição de protagonismo, oferecendo um espaço de escuta, diálogo e, principalmente, de valorização dessa pessoa e da experiência de vida que ela desenvolveu ao longo de todos esses anos.

É por meio dessa filosofia que surge o projeto Balaio de Memórias, idealizado pelo Crami Campinas, instituição parceira da FEAC. A iniciativa foca na restauração e fortalecimento de vínculos familiares e no rompimento dos ciclos de violência sofridos pela terceira idade.

Nesse trabalho, os idosos acabaram se tornando personagens principais, protagonistas da própria vida e do documentário produzido pela organização. O projeto foi responsável por estimular o raciocínio, a memória e trouxe, até mesmo, benefícios para a saúde mental dos idosos que apresentavam sinais de depressão.

Acolhimento no Lar da Amizade e o Projeto Nossas Gerações

A Organização da Sociedade Civil (OSC) Lar da Amizade – Ilce da Cunha Henry tem o intuito de acolher e proteger integralmente mulheres idosas em situação de vulnerabilidade social. Atualmente, ela faz parte das 150 Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) de Campinas e conta com a presença de 35 moradoras, na faixa dos 65 a 98 anos, com ou sem vínculos familiares. A instituição é parceira da Fundação FEAC e possui um convênio com a Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas.

Além de acolher e restaurar a dignidade dessas mulheres, a instituição frequentemente promove atividades para gerar integração e socialização entre elas. A ideia é mantê-las ativas, exercitando a mente e o corpo. O Lar oferece terapia ocupacional, fisioterapia, musicoterapia, arteterapia, dança, bingo, rodas de conversa e atividades junto à psicóloga.

O Projeto Nossas Gerações, apoiado pela FEAC, é um dos responsáveis por levar música ao Lar da Amizade. Conduzida pelo músico e professor Ricardo Botter Maio, a oficina dá a oportunidade de as idosas aprenderem a tocar instrumentos feitos com materiais recicláveis, além de fortalecer vínculos, resgatar memórias, trabalhar a criatividade e o pertencimento delas. Até o final do projeto, a ideia é que as idosas desenvolvam uma melodia autoral com auxílio do professor.

“Nós valorizamos a idosa que chega e a que já está aqui conosco. É muito importante para elas, porque, lá fora, a negligência é muito grande, a falta de carinho, de cuidados. Aqui, ela se sente útil.”, expõe Margareth Barbosa, coordenadora da casa.

Mesmo nos casos em que a moradora está com a saúde mais debilitada e/ou apresenta algum tipo de deficiência, ela continua participando de todos os compromissos do dia a dia, nem que seja só para observar. A organização preza pela inclusão e busca adaptar as atividades para cada contexto e grau de dependência.

Por meio do trabalho da ILPI, as idosas recebem toda assistência, cuidado e respeito; sua autonomia e protagonismo são valorizados; e elas se veem livres das situações de vulnerabilidade que se encontravam anteriormente.

Como foi a agenda de Campinas para a campanha do Junho Violeta

5 de junho – “Envelhecer com Dignidade é um Direito da Pessoa Idosa”. Roda de conversa, realizada no Espaço Kits-Campinas Shopping, que buscou discutir a importância de garantir um envelhecimento digno, saudável e ativo.

12 de junho – 1ª Reunião Descentralizada do Conselho Municipal do Idoso de Campinas, no Espaço Cultural Maria Monteiro. O encontro tratou sobre as políticas públicas e ações que dizem respeito à terceira idade campineira.  

13 de junho – Roda de Conversa com o Grupo Programa Saúde Toda Vida, sediada no Clube Fonte São Paulo e organizada pela Unimed Campinas. A ideia foi criar um espaço de diálogo para discutir questões voltadas a saúde e bem-estar dos idosos.

14 de junho – Aula Inaugural da Turma das Oficinas Geração Mais Conectada, no Centro de Referência da Juventude, que se propôs a trabalhar a inclusão digital, autonomia dos idosos e o enfrentamento à violência financeira.

15 de junho – Seminário “Envelhecer com Dignidade é um Direito”, do Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa, realizado na Câmara Municipal de Campinas. O evento conta com o apoio da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos (SMASDH) e tem o objetivo de trabalhar a valorização do idoso e a potencialização do combate à violência. Os palestrantes convidados são: Jessyka Bram – gerontóloga, cientista, pesquisadora, produtora de conteúdo, empreendedora e membro da Associação Brasileira de Gerontologia (ABG) e da Alzheimer; Natalia Carolina Verdi – advogada, presidente da Comissão do Direito do Idoso na OAB-SP, mestre em gerontologia pela PUC-SP.

19-22 de junho – Ações nos terminais de Campinas (Central, Ouro Verde, Campo Grande, Barão Geraldo) para conscientização sobre os direitos dos idosos.

24 de junho – Presença da coordenadoria de Políticas Públicas para a Pessoa Idosa na Praça Vila Aurocam, a fim de divulgar e oferecer serviços para a terceira idade campineira.

Conheça a cartilha sobre a campanha do Junho Violeta de 2023: Proteja, cultive o amor e respeite a pessoa idosa. Envelhecer com dignidade é um direito! Está disponível para download.

Mais vagas no Projeto Geração Mais Conectada

Lançado em outubro de 2021, após urgência verificada durante a pandemia, o projeto Geração Mais Conectada é uma parceria entre a Coordenadoria Setorial de Políticas Públicas para a Juventude e a Coordenadoria Setorial de Políticas Públicas para a Pessoa Idosa.

“Nós constatamos que grande parte dos idosos são o que nós chamamos de analfabetos tecnológicos. Eles não conseguem, muitas vezes, mexer nos aplicativos e aparelhos celulares. E, hoje em dia, todo mundo resolve tudo com o celular na mão”, conta Karla Borghi, coordenadora de Políticas Públicas para a Pessoa Idosa de Campinas. A falta de inclusão também é um tipo de violência e acaba por deixar aquele grupo vulnerável a outras violações, justamente por não conseguir acessar determinados espaços e não poder se proteger.

O projeto, que visa a inclusão de pessoas maiores de 60 anos no universo digital e a diminuição da violência financeira, foi retomado no final do mês de maio e conta com uma oficina de capacitação. O que antes eram apenas 32 vagas, hoje são 92. “A ideia é ampliar ainda mais no segundo semestre, para que todo o telecentro esteja capacitado e o idoso consiga aprender efetivamente o que precisa nessa oficina”, expõe a coordenadora. “A gente tem que empoderar esse idoso para fazer com que ele consiga se proteger desse tipo de violência.”

Por Bárbara Vetos

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