A transformação do clima é pauta urgente que se conecta a diferentes segmentos da sociedade, com interferência direta na saúde, bem-estar, educação e economia. O Especial redeGIFE ouviu ambientalistas, acadêmicos e atores do ISP e da sociedade civil para saber: qual é o papel de cada um de nós nesse desafio?
A complexidade da agenda ambiental é quase tão grande quanto a própria biodiversidade dos inúmeros e distintos ecossistemas espalhados mundo afora. Apesar da vastidão do tema, as mudanças climáticas se destacam como debate urgente e se conectam com os mais complexos desafios globais da atualidade.
De acordo com o Art. 225 da Constituição Federal, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.
Ao redor do mundo, pelo menos 155 Estados reconhecem a seus cidadãos o direito de viver em um ambiente saudável, seja por meio da legislação nacional ou de acordos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Com um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 13) especialmente dedicado a combater as mudanças climáticas e seus impactos a partir de ações que envolvam conscientização, sensibilização, formação e educação, a Organização das Nações Unidas (ONU) deixa claro que se trata de um desafio coletivo.
“Mudanças climáticas são um problema urgente. Nós temos menos de uma década para reduzir pela metade nossas emissões. Todas as pessoas, em todos os níveis da sociedade, devem desempenhar um papel em nos manter abaixo de 1,5 ºC de aquecimento [compromisso estabelecido no Acordo de Paris, assinado durante a Conferência das Partes sobre o Clima (COP) de 2015]. Temos uma necessidade de colaboração sem precedentes”, afirma Nando van Kleeff, gerente do Programa de Ação Climática da IKEA Foundation.
De acordo com dados mapeados pelo guia O que o Investimento Social Privado pode fazer por Mudanças Climáticas, para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5 ºC, as emissões de dióxido de carbono (CO2) teriam que diminuir em cerca de 45% até 2030, além de chegar a zero as emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050.
São metas ambiciosas, principalmente para países como o Brasil. O país emitiu, em 2016, 2,27 bilhões de toneladas brutas de gás carbônico, um aumento de 9% em relação a 2015.
Setores como a agropecuária apresentam grandes impactos negativos sobre o meio ambiente, sendo responsável por 74% das emissões em 2016. Grande parte desse total deve-se à conversão de florestas em pastos e agricultura. As mudanças no uso e ocupação da terra constituem a fatia que mais emite gases de efeito estufa no caso brasileiro (51% das emissões brutas em 2016), seguido da agropecuária (22%, sendo a maior parte proveniente de produção animal).
“Atualmente, a temperatura média está aumentando a uma taxa de 0,18 ºC por década e a concentração de gás carbônico a uma taxa de 25ppm [partes por milhão]. Em 2021, essa concentração deve chegar a cerca de 420ppm, aproximadamente 50% a mais do que na era pré-industrial. Caso essa tendência não seja revertida, podemos atingir um aumento de temperatura média de até 2 ºC no final deste século, com consequências bastante graves para boa parte do planeta”, explica Ricardo Galvão, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).
O especialista alerta que o Brasil já apresenta um aumento de temperatura no chamado arco do desmatamento – que bordeja o sul da floresta amazônica desde o Maranhão até o norte do Mato Grosso -, da ordem de 2 ºC, com a estação seca durando de três a mais semanas, em comparação com o resto da floresta. “Caso essa tendência não seja imediatamente revertida, podemos alcançar o ponto de não retorno, em que a maior parte da floresta se tornará uma savana em poucas décadas”, observa.
A Floresta Amazônica, maior floresta tropical do mundo, juntamente com o ecossistema marinho, são os dois grandes responsáveis por absorver gás carbônico e, com isso, reduzir as emissões de gases do efeito estufa na atmosfera, além de seus impactos sobre diversas agendas socioambientais. Cada qual com suas especificidades e potências, ambos enfrentam desafios de preservação.
As mudanças climáticas e a pandemia são fenômenos que, de uma maneira ou outra, afetam a todos, mas de formas completamente diferentes. Em ambos os casos, os mais atingidos são populações em situação de vulnerabilidade econômica e social.
O termo ‘justiça climática’ é uma variação mais recente de ‘justiça ambiental’. O sociólogo norte-americano Robert D. Bullard criou o conceito quando passou a investigar danos causados pela poluição em minorias sociais.
As populações indígenas, por exemplo, enfrentam impactos em diferentes frentes, como restrição no acesso a água e interferência nas condições para agricultura com a contaminação dos rios, violação de seus territórios com a ação de garimpeiros, a ocupação irregular das terras, o desmatamento ilegal e os retrocessos na demarcação dessas áreas, entre outros fatores que contribuem para o aumento da vulnerabilidade desses povos.
Se nas florestas, as populações indígenas são as que mais sofrem com a degradação ambiental, no contexto urbano são as populações social e economicamente vulneráveis, geralmente moradores de comunidades periféricas, sobretudo pessoas negras. A ausência de políticas públicas em áreas como moradia e saneamento básico, e a falta de medidas ambientais, têm consequências diretas na saúde dessas populações.
“No último verão, saí do Parque União, no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde estava 46 graus. Chegando no Flamengo, estava 37 graus. São nove graus de diferença em um espaço de quinze quilômetros no máximo. Quando morei na Maré, meu filho teve que tomar adrenalina duas vezes por conta de problemas respiratórios graves. Depois que mudamos, ele nunca mais teve nenhum tipo de problema”
conta Jailson de Souza, fundador do Observatório de Favelas e diretor geral do Instituto Maria e João Aleixo.
No contexto urbano, morar perto de parques, praças ou zonas arborizadas é um privilégio para poucos. Isso porque áreas sombreadas, onde é possível descansar, praticar exercícios e levar crianças para passear, por exemplo, são cada vez mais raras. A população negra, por ser historicamente colocada às margens da sociedade, é maioria em comunidades e favelas, onde o cuidado público com áreas verdes é ainda menor.
Foto: Agência Brasil
Destruição de áreas naturais, mudanças climáticas, poluição do ar, extinção da biodiversidade e contaminação da água estão entre as práticas que levam ao comprometimento do planeta e colocam em xeque o direito humano à saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 23% de todas as mortes estão ligadas a riscos ambientais.
O ano de 2020 marcou uma combinação trágica e inédita na Amazônia brasileira: queimadas e pandemia. Ao todo, os nove estados da Amazônia Legal registraram mais de 28 mil internações de pessoas com quadros de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) entre os meses de agosto e outubro, época da maioria dos focos de incêndio no bioma. Estima-se que as queimadas na Amazônia elevaram em 1 bilhão de reais os gastos hospitalares no período de dez anos.
Estatísticas como essas demonstram o desafio de pensar a emergência climática de forma transversal com agendas públicas e sociais e são a razão pela qual o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou recentemente uma resolução reafirmando as obrigações dos Estados de proteger os direitos humanos, inclusive tomando decisões mais incisivas sobre os desafios ambientais.
“No caso da Amazônia brasileira, por exemplo, além das queimadas que causam doenças respiratórias, o aquecimento global tem interferido na temperatura dos oceanos, que afetam as chuvas e o período das cheias na região, sem contar as doenças infecciosas pela questão sanitária. Com isso, muitas pessoas não veem outra saída a não ser o deslocamento de seus lares, que acarreta em mudança ou perda de emprego e em transferência ou evasão escolar dos filhos. Só neste exemplo, estamos falando de impactos em saúde, moradia, educação e trabalho e renda”, observa Marina Marçal, coordenadora de Política Climática do Instituto Clima e Sociedade (iCS).
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que o mundo terá cerca de 200 milhões de ‘migrantes ambientais’ até 2050, incluindo pessoas que se deslocam entre fronteiras ou internamente em seus países. Nos piores cenários, a estimativa chega a 1 bilhão de migrantes ambientais nesse mesmo período.
Para Jean Metzger, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da USP, a atual situação pandêmica deixou mais clara a relação entre a degradação ambiental e a continuidade da vida humana.
“À medida que degradamos o meio ambiente, expomos a humanidade a novos patógenos de espécies silvestres e isso tem consequências econômicas, sociais e, claro, na nossa saúde. Outras consequências, no caso do desmatamento e queimadas, envolvem áreas como produção agrícola, geração de energia, além da questão ética da extinção de espécies. Dessa forma, fica claro que cuidar do ambiente é cuidar de nós mesmos. A natureza é parte da solução para um mundo mais sustentável, resiliente e saudável.”
As populações indígenas e as comunidades ribeirinhas também enfrentam desafios em diferentes instâncias, como a ausência do apoio do poder público para sua proteção, bem como questões políticas envolvendo a não demarcação de terras, que acarretam uma gama de desafios que aumentam a vulnerabilidade dessas populações.
De acordo com dados do Censo GIFE 2018, 88% das organizações respondentes não têm foco em ambiente urbano e sustentabilidade em nenhum dos projetos ou programas mais representativos, cenário que pode ser encarado como uma oportunidade para uma atuação mais expressiva do investimento social privado (ISP), sobretudo considerando a amplitude e as inúmeras possibilidades da pauta.
“Muitas empresas já estão anunciando compromissos com a redução de emissões e investimentos em iniciativas inovadoras visando o desenvolvimento de diferentes elos de suas cadeias de valor, como melhor infraestrutura e tecnologias com atributos de eficiência energética e/ou uso de recursos renováveis, por exemplo”, conta Tiago Egydio, coordenador de conservação ambiental da Fundação Espaço ECO.
Para Renata Chagas, diretora do Instituto Neoenergia, é hora de unir forças. “Temos que pensar na agenda climática como uma pauta comum e urgente, de interesse de todo o planeta, visando à sustentabilidade e coexistência de todos.”
Contudo, a tarefa impõe desafios de governança e articulação, pois exige que governos se organizem em arranjos inéditos e o setor privado reveja sua forma habitual de atuar, tomando para si algumas responsabilidades, como observa Thais Ferraz, gerente executiva do Instituto Arapyaú.
“O ISP pode contribuir dando apoio a novos arranjos de financiamento e produção, por exemplo, que ajudem a acelerar a transição de nossa economia para um modelo de desenvolvimento mais sustentável, que promova prosperidade social com baixo impacto ambiental. A agenda climática é abrangente e não deve ser dissociada das questões sociais.”
Considerando a conexão entre a agenda ambiental e as pautas sociais, endereçar desafios da natureza neste momento é uma forma de contribuir para uma recuperação mais sustentável no pós-pandemia. A partir de aprendizados obtidos no enfrentamento à crise e pensando em formas de promover mais participação e inclusão de todas as populações, sobretudo as marginalizadas e socialmente vulneráveis, o conhecimento compartilhado pode promover o trabalho conjunto ou, ao menos, uma coordenação de esforços na direção das mesmas metas.
Confira os caminhos apontados pelos diversos atores e especialistas consultados para esta reportagem que se colocam como oportunidades para uma atuação mais estratégica do investimento social privado na direção de promover a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável.
Ações de engajamento e comunicação
Fomento à busca de novas soluções
Investimentos em modelos não predatórios
Políticas e projetos de reciclagem de resíduos
Promoção do aumento de energias renováveis
Arborização
Avanço de estudos sobre hidrogênio verde
Conexão do ecossistema brasileiro com a comunidade global
Apoio a organizações locais
Novos arranjos de financiamento e produção
Projetos de proteção e recuperação de biomas e espécies em ameaça de extinção
Conservação e uso sustentável dos oceanos
Redução do uso de combustíveis fósseis
Exigência de produtos rastreáveis
Parcerias público-privadas para transportes públicos e carros elétricos
Processos de produção com uso mais eficiente dos recursos públicos e privados
Desenvolvimento de novas tecnologias
Fortalecimento de sistemas agrícolas tradicionais
Apoio a associações da floresta
Desenvolvimento e implementação de ferramentas financeiras
Fomento a modelos sustentáveis de negócio
Produção e disseminação de conhecimento baseado em evidências
Advocacy para formulação de políticas públicas regulatórias e alocação de recursos públicos para questões relacionadas ao tema
Fomento a arranjos financeiros como blended finance
Fomento a programas estruturantes de logística reversa
Aumento/profissionalização da capacidade de coleta e triagem de recicláveis no Brasil
O uso dos saberes e conhecimentos locais pode apoiar a agenda econômica, diversificando a produção e gerando trabalho e renda. Uma visão estratégica pode incentivar a criação de polos industriais de baixo carbono para processar os produtos e estimular novos empregos nas cidades, envolvendo também centros de pesquisa e universidades. Além de empregar pessoas e incentivar sua participação nos empreendimentos, o processo também reduziria a pressão sobre a floresta e as unidades de conservação.
Conheça organizações, iniciativas e redes que se dedicam à defesa do meio ambiente e ao enfrentamento das mudanças climáticas, bem como à promoção e garantia dos direitos de populações afetadas.
Jovens do Complexo da Maré observaram o problema do descarte irregular de lixo em suas comunidades e decidiram criar o projeto, que promove debates e atividades socioambientais nas favelas.
As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) trabalham no manejo agroflorestal e no fortalecimento de sistemas agrícolas tradicionais, que garantem a segurança alimentar local e também fornecem alimentos para comunidades vulneráveis nas periferias de São Paulo.
A rede viabiliza negócios em prol da floresta Amazônica com garantia de origem, rastreabilidade e transparência, promovendo comércio ético. Ao comprar um produto de origem florestal, o selo garante a procedência do produto, que fortalece o trabalho dessas comunidades no uso sustentável da floresta.
Com o objetivo de promover atividades sustentáveis e, com isso, ser um modelo e centro de educação, cultura, comunidade e autossuficiência para a paz, dois irmãos criaram a organização durante a pandemia. O Instituto, que mantém um projeto de ensino de culinária vegetariana, criou o Favela Card, um vale-refeição doado para moradores que pode ser usado nos comércios da região.
Coalizão Brasil: Clima, Florestas e Agricultura
Movimento multissetorial composto por entidades que lideram o agronegócio no Brasil, organizações da sociedade civil e empresas com o objetivo de articular e facilitar ações para o país promover um novo modelo de desenvolvimento econômico pautado na economia de baixo carbono.
Recicleiros: Programa Cidade Mais
O projeto implementa a coleta seletiva em municípios e apoia empresas no cumprimento da logística reversa, assessorando as prefeituras na implementação da coleta seletiva inteligente e oferecendo às empresas a reciclagem de embalagens pós-consumo com responsabilidade socioambiental.
Espaço de reflexão e ação estratégica, a think thank é uma iniciativa do Rio Climate Challenge (RCC) que reúne lideranças com o objetivo de exercer pressão sobre as posições oficiais brasileiras sobre as mudanças climáticas.
Por meio de uma rede de especialistas, o Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil é conduzido pelo Observatório do Clima e tem o objetivo de contribuir com a educação da sociedade sobre o uso responsável do solo no território brasileiro.
A plataforma de inovação multisetorial existe para acelerar o surgimento e desenvolvimento de inovações que contribuam com a agenda climática. O objetivo é fomentar um ecossistema de pessoas e organizações que apoiam o empreendedorismo climático no Brasil.
Uma realização do Instituto Neoenergia e da WWF-Brasil, o projeto tem como objetivo tornar a restauração, manutenção e adaptação dos recifes de corais uma agenda prioritária no Brasil, além de engajar diversos atores sociais em prol da preservação dos oceanos.
Lab Perifa Conection: Clima e Periferias
Iniciativa em parceria com o Instituto Clima e Sociedade, consiste em uma formação em Clima, Ambiente e Sustentabilidade voltada a comunicadores e ativistas que vivem nas periferias do Rio de Janeiro, com o objetivo de democratizar os debates sobre as mudanças climáticas.
O guia é direcionado a investidores sociais privados e organizações filantrópicas e aborda conceitos, informações sobre panorama, contexto e tendências, além de possibilidades de atuação de organizações do ISP no tema.
O objetivo da plataforma é trazer reflexões e apontar caminhos para aprofundar o engajamento da filantropia e do investimento social privado na conservação e no desenvolvimento inclusivo e sustentável da região, unindo esforços para a produção de conhecimento e consolidação de alianças em favor da Amazônia.
Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
Leonardo Nunes
ASSISTÊNCIA DE COMUNICAÇÃO
Estúdio Cais
REPORTAGEM/TEXTO
Estúdio Cais
INFOGRÁFICO
Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO