Advocacy e apoio a pequenos produtores são oportunidades para atuação do ISP no desenvolvimento de cadeias sustentáveis de produção e distribuição de alimentos

Por: GIFE| Notícias| 26/10/2020

Outubro marca o Dia Mundial da Alimentação (16), data propícia para refletir sobre a relação entre cadeias de produção e distribuição de alimentos e fome, um dos indicadores mais gritantes da crise escancarada pela pandemia. Só no Brasil, esse número é de mais de dez milhões de pessoas.

No país, o tema da alimentação se relaciona com desafios ditados pelo agronegócio e pela indústria alimentícia. Discussões mais recentes envolvendo ambos os setores, para citar apenas duas, se referem à liberação indiscriminada de agrotóxicos pelo governo brasileiro e ao pedido de revisão feito pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento do Guia Alimentar para a População Brasileira, referência nacional e internacional para a promoção da saúde e formulação de políticas públicas.

Frente a esse cenário, faz-se ainda mais necessário o debate sobre cadeias mais inclusivas, sustentáveis e agroecológicas para a produção e distribuição de alimentos na direção de aprimorar e superar modelos hegemônicos, frequentemente capturados por estratégias corporativas transnacionais. O objetivo é combinar respeito ao meio ambiente e aos pequenos produtores e promoção de segurança alimentar como direito humano. Na lógica do “Bom, limpo e justo”, como defende o movimento Slow Food.

“O custo da alimentação é um possível obstáculo para o brasileiro comer de forma mais saudável. Para alcançarmos sistemas alimentares mais sustentáveis e inclusivos, é preciso não apenas comercializar produtos orgânicos, mas ir além disso e proporcionar meios para que o produtor estabeleça uma conexão profícua com o consumidor”, afirma Georgia Pessoa, diretora executiva do Instituto Humanize.

A organização nasceu com o propósito de apoiar a atuação estratégica de entidades de referência voltadas ao fomento das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Em diversas frentes, o Instituto atua para contribuir com o desenvolvimento sustentável e a geração de renda, firmando alianças que incentivem o empreendedorismo inclusivo, o acesso ao mercado e o empoderamento de comunidades e cidadãos.

Encurtando distâncias, diversificando o prato

Para Andre Degenszajn, diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga, uma das premissas de uma cadeia mais inclusiva, justa e sustentável são os chamados circuitos curtos. O princípio básico é o de que os alimentos não deveriam viajar longas distâncias.

“Quanto mais curta é a distância entre a produção e o consumo, menor o número de intermediários e, consequentemente, maior o valor que fica com o produtor e menor o custo para o consumidor. Sem contar que um modelo de produção centralizado tende a reforçar uma monotonia alimentar, que é a lógica das monoculturas, em oposição à agricultura familiar. A tendência é uma homogeneização das culturas alimentares. O país todo começa a ter uma só dieta quando o ideal em um país como o Brasil é a valorização da diversidade regional e cultural na alimentação”, explica.

Soluções para desafios na distribuição

Andre explica que esse modelo dos circuitos curtos, no entanto, não serve para algumas regiões, como a Amazônia, por exemplo, que não possui um mercado consumidor local significativo. Nesses casos, é necessário criar soluções para comercialização e escoamento da produção local.

É da Amazônia, por exemplo, que vem o maior insumo da Coca-Cola Brasil. João Carlos Santos, agrônomo e especialista em agricultura no Amazonas da Coca-Cola Brasil, explica a relação da empresa com o desenvolvimento econômico e socioambiental da região.

“É do coração da floresta, de áreas protegidas pelos ribeirinhos, que adquirimos o fruto. O estado do Amazonas fornece todo o guaraná utilizado nas bebidas da Coca-Cola Brasil. Estamos presentes em mais de 90% das áreas produtivas de guaraná do território amazonense. Na base da cadeia estão agricultores familiares de 14 municípios, que comercializam a produção por meio de associações e cooperativas.

Desde 2016, com o programa Olhos da Floresta, a companhia vem fortalecendo as cooperativas e associações no interior do estado, a fim de contribuir para melhorar a logística, a segurança do trabalho e incentivar boas práticas de manejo sustentável na cadeia do guaraná.

“Contribuímos para a geração de 14 mil empregos diretos e indiretos. O impacto positivo desse trabalho chega a mais de 112 comunidades e 365 famílias.”

Desertos alimentares

Outro desafio, segundo Andre, é fazer os alimentos chegarem a regiões de mais difícil acesso. “Alguns lugares do país, principalmente em áreas mais pobres de centros urbanos, não contam com nenhuma oportunidade de compra de alimentos frescos, o que abre espaço para o consumo de ultraprocessados, que dispõem de validade maior e de uma logística de transporte muito mais simplificada”, problematiza.

Por meio de um de seus programas, denominado Sistemas Alimentares, o Instituto Ibirapitanga atua para contribuir com a construção de um sistema alimentar saudável, justo e sustentável. Uma das iniciativas apoiadas pelo Instituto na área de distribuição de alimentos é o projeto Circuitos Agroecológicos, que busca fortalecer a Rede de Agroecologia Povos da Mata, localizada na Bahia, estruturando circuitos de comercialização em parceria com a Rede Ecovida, presente no Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Instituto apoia ainda o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), buscando assegurar o acesso a comunidades de baixa renda.

“Como esses apoios, esperamos inspirar outras iniciativas, atrair mais pequenos produtores e ampliar o acesso ao consumo desse tipo de produção”, afirma.

O que o ISP por fazer?

Para Andre, uma oportunidade de contribuição do investimento social privado com a agenda está em ações que ampliem as condições para a expansão de práticas agroecológicas.

“Já há um consenso bastante amplo, não só no Brasil, mas no mundo, da importância de expandir práticas agroecológicas, que apontam para um tipo de relação com a produção que leva em conta as dinâmicas naturais e territoriais. Mais que uma prática, a agroecologia é uma ciência, uma técnica, um conhecimento e um movimento social também, na medida em que incorpora questões ligadas à justiça social”, observa.

Outro campo possível para a atuação do ISP, segundo Andre, é o do advocacy para controle ou criação de políticas públicas voltadas à regulação do setor. Algumas políticas importantes na área, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) vêm sofrendo com a falta de investimentos públicos, explica. 

“A pandemia colocou um desafio enorme porque as crianças deixaram de comer na escola, mas o PNAE sempre foi um mecanismo importante de fomento à agricultura familiar e de garantia de segurança alimentar para os estudantes. Já o PAA foi quase que completamente desidratado financeiramente – existe apenas no papel. O programa garantia que qualquer produtor, por menor que fosse a escala e mais precária a forma de produção, conseguisse comercializar seu produto para o governo. Ações que visem o controle social em relação a essas políticas públicas são um papel fundamental da filantropia e do investimento social privado com a possibilidade de produzir um impacto em uma escala que poucas áreas permitem ao lidar com o tema da alimentação”, enfatiza.

O diretor do Instituto Ibirapitanga menciona ainda o déficit na oferta de crédito e apoio técnico aos pequenos produtores e desafios relacionados à regulamentação do consumo como oportunidades para a atuação do setor.

Para Georgia, fortalecer pequenos produtores em situação de maior vulnerabilidade para que possam se inserir no mercado de forma perene é algo que precisa ser impulsionado. “Nisso, a filantropia tem um papel importante a exercer. Conectar os mercados em diferentes regiões e colocar os agricultores familiares em uma rota de produção que contribua com a segurança alimentar e nutricional é um caminho que tem sido adotado e, inclusive, fortalecido frente à pandemia”, observa.

Cadeias em aprimoramento

Representantes da indústria de produção e distribuição de alimentos ligados à rede de atores do GIFE têm experimentado novas formas de se aproximar dessas premissas. É o caso do GPA.

Susy Yoshimura, diretora de sustentabilidade da empresa, explica que um dos desafios ligados à cadeia de abastecimento tem a ver com o baixo grau de formalização de diversos pequenos produtores, o que dificulta as relações comerciais com o grande varejo.

“Estamos conectados com o tema da sustentabilidade desde a origem do Grupo. Mesmo assim, os desafios ainda são muitos, como mudar o mindset interno, adaptando as regras feitas para grandes players a pequenos produtores. No entanto, existem algumas condições relacionadas a certificação, operacionalização, prazo de entrega, padronização, embalagem, rotulagem e questões de ordem fiscal e tributária para abastecimento em diferentes regiões do país que sabemos que ainda são inviáveis para a maior parte desses pequenos produtores”, explica.

Para ampliar as condições desses trabalhadores do campo, dando a eles a oportunidade de fornecer para empresas do grande varejo, a diretora conta que o grupo realiza um processo que inclui capacitação e aporte financeiro.

“Fazemos um trabalho educativo voltado ao desenvolvimento institucional desses negócios em parceria com organizações da sociedade civil que já se relacionam com esses pequenos produtores e, por isso, possuem maior legitimidade e conhecimento para estabelecer esse diálogo”, afirma.

Uma dessas iniciativas é o programa Caras do Brasil, que há mais de 20 anos atua incentivando o desenvolvimento da cadeia de produção alimentar sustentável, com foco em pequenos fornecedores de produtos representativos das diferentes culturas culinárias regionais. Atualmente, são 28 produtos e 12 produtores no portfólio. Desde a criação da iniciativa, já passaram pelo programa mais de 100 pequenos negócios.

“Esse programa faz uma curadoria de produtos com critérios diferenciados. O mel produzido por comunidades indígenas do Xingu, por exemplo, não teria espaço na mesma gôndola do mel tradicional, mas damos a ele condições diferenciadas e isso para nós é um misto de investimento social com estratégia comercial.”

Com readequação de portfólio e nova estratégia, o programa Caras do Brasil já contabiliza um crescimento de 235% nas vendas dos produtos. “Tem espaço. Só temos que estar dispostos, seja apoiando o desenvolvimento de pequenos produtores, seja nos adequando às suas particularidades”, observa Susy.


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