Brasil tem potencial, mas não tem investimento e estratégias para favorecer produção científica, afirma cientista brasileira que atuou no sequenciamento do genoma do novo coronavírus
Por: GIFE| Notícias| 08/03/2021
Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil há pouco mais de um ano, houve uma mobilização no campo médico e científico para tentar entender seu funcionamento e, com isso, buscar maneiras de combatê-lo. Foi em março do ano passado que os nomes de duas cientistas ganharam os holofotes por suas contribuições: Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) e coordenadora do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), e Jaqueline Goes de Jesus, formada pela Universidade Federal da Bahia pelo Programa de Patologia Humana e Experimental – parceria entre a UFBA e a Fundação Oswaldo Cruz (PgPAT/UFBA-Fiocruz) -, pós-doutoranda do IMT/USP e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Ambas lideraram a equipe brasileira responsável por sequenciar o genoma do vírus em 48 horas, ação de extrema importância para determinar a origem de epidemias, o comportamento das variantes do vírus e formas de evitar a transmissão. O feito virou notícia e chamou atenção para o fato de duas mulheres estarem à frente de importantes descobertas realizadas pelo setor científico brasileiro dentro de universidades públicas, que atualmente sofrem desmontes e são alvos de ataques.
No Dia Internacional da Mulher, o redeGIFE traz entrevista exclusiva com Jaqueline sobre a importância de não apenas incentivar, mas proporcionar condições para que mais meninas sigam carreira nas Ciências, a necessidade de valorização da pesquisa em instituições de ensino superior no Brasil e como a área tem sido pilar fundamental no combate à pandemia de Covid-19. Confira.
redeGIFE: Há cerca de um ano, o seu nome e o de Ester Sabino foram assunto de inúmeras reportagens sobre as brasileiras que lideraram a equipe que sequenciou o genoma do novo coronavírus em tempo recorde. Em uma sociedade machista, o que significa ter o nome de duas cientistas frente a um avanço científico tão importante?
Jaqueline: Ter não só os nossos nomes, mas também de toda a equipe figurando esse feito foi uma comprovação de que, apesar de grande parte da sociedade não nos enxergar como pioneiras, capazes e competentes de realizar algo grandioso, o potencial das mulheres existe e está sendo utilizado no mundo todo, mesmo que a sociedade não tome conhecimento disso. Os nossos nomes acabaram ficando mais conhecidos, mas ter uma equipe de mulheres trabalhando em um projeto de relevância tão grande mostrou que as mulheres podem, sim, trazer inovação, resultados importantes e significativos e uma representatividade que ainda não temos em grande escala.
redeGIFE: Para Marcelle Soares-Santos, astrofísica e professora da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, a presença de mais meninas na Ciência não se trata apenas de motivação, e sim do enfrentamento de barreiras concretas para tal. Por ser uma cientista mulher e negra, você enfrentou essas barreiras em sua trajetória profissional?
Jaqueline: Eu diria que a minha trajetória é um pouco atípica no que costumamos observar para mulheres negras. Meus pais vêm de famílias muito humildes, passaram por dificuldades na infância. Foi a partir da educação que conseguiram suplantar a linha da pobreza e ter uma qualidade de vida um pouco melhor, que foi oferecida a mim e a meu irmão. Então, quando me perguntam se sofri dificuldades por ser uma mulher negra, gera uma dúvida na resposta, porque sempre tive incentivo dos meus pais. Nós não tínhamos luxo em casa, mas nunca faltou alimentação adequada e eles investiram tudo o que podiam em termos de educação. Nesse sentido, sei que estou em um lugar de privilégio em relação a outras meninas negras talvez da mesma cidade ou do mesmo bairro que eu.
redeGIFE: Existem barreiras sociais que se impõem no caminho de meninas que desejam seguir carreira nas Ciências?
Jaqueline: Acredito que, em casos como o meu, a dificuldade maior fica por conta da própria sociedade, que nos coloca em um lugar de ‘não pode’, ‘não deve’, ‘não tem capacidade’, ‘não alcança o nível de entendimento’. Para além da minha experiência pessoal, de ter tido que enfrentar algumas situações para poder demonstrar o meu valor e a minha competência, tem, sim, a falta de oportunidades. A grande maioria das meninas e mulheres negras que sonham em fazer alguma coisa na área acadêmica precisa de muito incentivo. É aí que reside o grande empecilho para que as coisas se encaminhem da forma que a gente almeja. Eu não senti tanta dificuldade porque tive uma orientação muito forte dos meus pais na educação. Mas talvez essa seja uma realidade muito diferente e mais difícil para outras famílias em que os pais não têm esse entendimento da educação. Nesses casos, os próprios filhos precisam alcançar essa compreensão e usar recursos próprios para conseguir superar essa barreira e alcançar uma posição academicamente melhor.
redeGIFE: De acordo com a sua experiência, é possível apontar quais poderiam ser estratégias mais assertivas para aumentar a representatividade e a presença feminina nas pesquisas?
Jaqueline: A palavra do momento para ter mais meninas e mulheres ocupando espaços é oportunidade. Dar oportunidade para que se instrumentalizem, para que usem o conhecimento adquirido na educação dentro de uma área profissional, para que tenham experiência para desenvolver suas habilidades e, a partir daí, construir esse caminho que deveria ter sido construído pelo Estado, pela sociedade, mas não houve incentivo. Hoje tenho uma ideia muito clara sobre o que pretendo fazer para apoiar outras meninas. Ainda não tenho os instrumentos para isso, mas com o meu reconhecimento nacional e, ouso dizer, internacional, percebi que uma conversa, uma reunião ou uma ideia de projeto, talvez, ajudem a mudar algumas realidades. Antes mesmo de ficar conhecida pelo trabalho que tenho feito, já vinha conhecendo alguns projetos. Uma escola em São Paulo, por exemplo, oferece cursos de programação para mulheres, uma área que sabemos que são poucas as profissionais atuando e despontando. O que me chamou atenção nessa proposta é a retroalimentação: houve um investimento inicial e a ideia é que, quando as meninas estiverem no mercado de trabalho, possam pagar o curso para a educação de uma outra pessoa. Isso faz girar a roda da oportunidade para que cada vez mais meninas, mulheres, negras e nordestinas possam alcançar esse sucesso profissional, ocupar esses espaços e ter representatividade.
redeGIFE: Mesmo diante de cortes de financiamento em pesquisas e polêmicas envolvendo declarações sobre a rotina de instituições de ensino superior públicas brasileiras, as descobertas envolvendo o coronavírus no meio acadêmico continuaram. O próprio equipamento usado no sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2 está relacionado ao financiamento público. Qual é o papel do financiamento público de pesquisas no Brasil?
Jaqueline: Uma percepção que tenho é de que pelo menos 90%, senão mais, das pesquisas científicas brasileiras são, de fato, financiadas com recursos públicos, já que elas acontecem nas universidades públicas. São pouquíssimas instituições de iniciativa privada que fazem pesquisa científica no país, diferente de outros lugares no mundo. Talvez a nossa equipe tenha alcançado o resultado tão rapidamente também por conta do recurso britânico devido à parceria que temos. Se fôssemos depender dos trâmites brasileiros, talvez não teríamos reagentes para fazer o sequenciamento no momento em que o vírus foi detectado pela primeira vez no Brasil. Esse cenário é o que a maioria dos nossos pesquisadores enfrenta. Temos um potencial produtivo muito bom e significativo, mas não temos recursos, investimento e estratégias, governamentais ou não, para favorecer essa produção científica.
redeGIFE: Você enfrentou dificuldades de financiamento ao longo de sua trajetória?
Jaqueline: Dentro da nossa rede de colaboradores, não é raro trocarmos reagentes porque faltou em determinado laboratório. E então você me pergunta: faltou porque não tem dinheiro ou porque os trâmites alfandegários são tão complicados que você compra um produto hoje e só vai receber daqui a 60 dias? Por que fora do Brasil os trabalhos, as publicações e o desenvolvimento científico são feitos com uma brevidade muito maior? Porque existe uma estrutura que favorece esse processo. Nesses lugares tem a iniciativa privada investindo na Ciência e tem o próprio governo dando estrutura para que tudo isso aconteça. O meu grupo de pesquisa, por exemplo, trabalha em um laboratório sem ar-condicionado. Não é raro passarmos mal de calor porque precisamos usar durante 14 a 16 horas todos os equipamentos de proteção que esquentam ainda mais, para depois chegar um presidente e falar que nós não sabemos o que estamos dizendo. É por aí que vemos que não existe reconhecimento do nosso trabalho por parte de quem deveria, de fato, reconhecê-lo.
redeGIFE: Você acredita que os avanços científicos contabilizados ao longo da pandemia contribuíram para a percepção pública e valorização da área da Ciência?
Jaqueline: Eu acredito que o nosso e outros grupos de pesquisa abriram caminhos para mais divulgações científicas. Nossas conquistas contribuíram para isso. Mas não creio que nessa era de obscurantismo que estamos vivendo iremos conseguir muitos avanços no sentido de ter recursos e reconhecimento por nosso trabalho. Esse tem sido um momento de acender um alerta para a sociedade começar a refletir que existem cientistas trabalhando arduamente no Brasil, que estão trazendo benefícios para a sociedade que até então não sabíamos. Onde estava a sociedade, os governantes, a mídia e os parceiros comerciais quando aconteceram epidemias como a de zika e febre amarela e essas mesmas cientistas estavam trabalhando no sequenciamento do genoma? O nosso trabalho não é de hoje. Eu espero realmente que, daqui a dois anos, não tenhamos esquecido o que aconteceu e não percamos de vista o trabalho que cientistas não só da área da saúde, mas de todas as áreas do conhecimento têm feito.
redeGIFE: Muitos especialistas pontuam que a gravidade do cenário brasileiro diante da pandemia poderia ter sido mais e melhor controlada com a colaboração generalizada e conscientização da população. Em um país onde parte do povo, incluindo autoridades brasileiras, não acredita em evidências e comprovações científicas, como combater a descredibilização das Ciências?
Jaqueline: Acredito que a grande mudança vai acontecer quando tivermos governantes que pensem a Ciência como um investimento e não como gasto, já que são os recursos públicos que de fato nos trazem possibilidades, estrutura e financiamento para a realização de projetos. Por que o Brasil não é pioneiro, por exemplo, na produção de plástico voltado à área médica, já que temos um polo petroquímico na Bahia? Temos comprado material da Alemanha, que não deu conta de abastecer o mercado mundial. Em razão dessa demanda, compramos quatro vezes mais caro que o valor original e esperamos três meses para receber um produto de uso diário, sendo que tudo isso poderia ser produzido aqui. Na minha opinião de usuária e não de entendedora do mercado internacional, o Brasil poderia estar em uma condição de exportador mundial. Enquanto as pessoas estiverem vivas, a área da saúde precisará de investimentos, de médicos e de hospitais.
redeGIFE: Além de iniciativas como doação de recursos e kits de alimento e higiene por parte de seus associados, o próprio GIFE, lendo o cenário da emergência, lançou algumas iniciativas relacionadas à área da saúde, como a plataforma Emergência COVID. Desde março do ano passado, foi possível notar o aumento no interesse e engajamento por esse tema. Qual seria um primeiro passo para empresas que desejam investir na área da saúde e/ou pesquisa científica no Brasil?
Jaqueline: Nesse momento, o mais importante é ter conhecimento de quais setores dentro da área da saúde estão em necessidade. O nosso grupo de pesquisa, por exemplo, está tentando montar uma plataforma para fazer identificação de novas variantes do vírus. Então, empresas que desejam investir podem, talvez, procurar startups que estejam atuando de forma mais incisiva na produção de insumos e de testes, muito mais para identificação dos vírus nessa etapa que estamos vivendo agora. É importante entender o que está acontecendo, em quais setores existe real necessidade de investimento e, a partir disso, começar de forma pequena, mesmo que seja um conjugado de empresas investindo juntas. Acredito que, por esse caminho, é possível começar a fazer alguma coisa.