Coalizão Direitos Valem Mais questiona: a serviço do que e de quem está a economia brasileira?

Por: GIFE| Notícias| 09/11/2020

“Em 2020, quando a Covid-19 chegou ao Brasil, encontrou um sistema de saúde enfraquecido e sobrecarregado. Os cortes de investimento impostos pelo Teto de Gastos reduziram as políticas sociais de proteção da população mais vulnerável, deixando o Brasil com baixa imunidade para enfrentar a pandemia do coronavírus. Por isso, precisamos com urgência aprovar um orçamento capaz de proteger a população na crise.”

A análise acima está por trás da criação da Coalizão Direitos Valem Mais: pelo fim do Teto de Gastos e por uma nova economia. Criada em 2018, a iniciativa é fruto de um esforço intersetorial (conselhos nacionais de direitos, redes, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, centrais sindicais e instituições acadêmicas) para atuar por uma nova economia comprometida com os direitos humanos, com a sustentabilidade socioambiental e com a superação das profundas desigualdades do país.

Para isso, defende o fim da Emenda Constitucional 95, o chamado Teto de Gastos, medida aprovada em dezembro de 2016 pelo Congresso que restringe por vinte anos os gastos públicos com serviços essenciais como saúde e educação.

“A Coalizão Direitos Valem Mais nasce para questionar o que a Organização das Nações Unidas considera a política de austeridade mais drástica e antidireitos do planeta e a relação de subordinação imposta às áreas sociais e ambiental pela economia. A pergunta-chave que nos orienta é: a serviço do que e de quem está a economia brasileira?”, explica Denise Carreira, coordenadora da Coalizão Direitos Valem Mais.

Segundo a coordenadora, a iniciativa deseja contribuir para democratizar o debate sobre economia, explicitando as escolhas políticas que dão base às medidas, seus reais beneficiários e sua conexão com os problemas enfrentados pela população.

“Vivemos sob a égide do que chamamos fundamentalismo econômico, que impede o debate público qualificado sobre alternativas e impõe uma agressiva política de austeridade como único caminho, como verdade absoluta, articulado a um perverso discurso que cobra mais sacrifícios da população mais pobre e de setores médios. Um caminho que somente tem acirrado desigualdades, destruído a capacidade do Estado de garantir direitos, privatizado bens públicos, destruído o meio ambiente e atacado a Constituição Federal, tudo isso aprofundado no contexto da pandemia.”

Teto de Gastos

Especialistas de setores diversos consideram que o Teto de Gastos afeta setores essenciais, como saúde, educação e assistência social. Frente à pandemia, os impactos da medida têm requerido ainda mais urgência sobre esse debate.

Para Denise, a medida é a espinha dorsal da atual política econômica comprometida com a diminuição do Estado garantidor de direitos.

“É importante destacar que o Teto de Gastos estabeleceu um limite somente para as despesas primárias e não para as despesas financeiras, deixando de fora o pagamento de juros e o encargo da dívida pública brasileira, cujo aumento se deve, sobretudo, ao excessivo nível de incentivos fiscais por meio de subsídios e renúncias tributárias e ao pagamento elevado de juros”, explica.

De acordo com estudo realizado pela Coalizão, apesar das despesas primárias como um todo apresentarem um crescimento real de apenas 1,6%, no período entre 2016 e 2019, as despesas com juros cresceram 7,7% ao ano.

“A austeridade no Brasil tem servido efetivamente como uma forma perversa de drenagem de recursos públicos para benefício de interesses privados e contribuído para a fragilização da capacidade do Estado de atuar em prol da garantia de direitos e da dinamização de uma economia em profunda recessão. Na pandemia, o Teto de Gastos se tornou ainda mais insustentável”, alerta.

A Coalizão tem acompanhado duas propostas revogatórias: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 54/2019, elaborada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal; e a PEC 36/2020, que reúne senadores de vários partidos. Para a coordenadora, seria importante que o investimento social privado se manifestasse publicamente favorável ao fim do Teto de Gastos e reforçasse a demanda por um ciclo de audiências públicas sobre o tema.

“Acreditamos que é necessário ampliar, pluralizar e qualificar o debate público. É extremamente desigual a abordagem dos meios de comunicação brasileiros acerca de perspectivas críticas à austeridade e de propostas comprometidas com outra lógica que não a defensora do ajuste fiscal a qualquer custo. O ciclo de audiências públicas seria fundamental para explicitar as posições e interesses em jogo.”

Nota ao Congresso e à sociedade brasileira

Recentemente, a Coalizão Direitos Valem Mais publicou uma nota técnica endereçada ao Congresso e à sociedade com um conjunto de propostas que visam fortalecer a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021 como instrumentos para o enfrentamento da pandemia e de suas consequências nas condições de vida da população. Entre outras medidas, o documento defende um Piso Mínimo Emergencial para manutenção de serviços públicos essenciais, como saúde, educação, assistência social e segurança alimentar.

Com a medida, a educação, por exemplo, ganharia R$ 36,9 bilhões, o que permitiria melhores condições para a retomada das escolas no contexto de pandemia, com menor número de alunos por turma, maior número de profissionais, adequação das escolas para o cumprimento de protocolos de segurança e proteção, ampliação da cobertura de acesso à internet de banda larga e retomada dos programas de assistência e permanência estudantil na educação básica e no ensino superior.

PEC do Pacto Federativo

A nota alerta ainda para o grande risco ao país imposto pela PEC do Pacto Federativo (PEC 188/2019). O Pacto Federativo estabelece obrigações financeiras, leis, sistemas de arrecadação de recursos e os campos de atuação de cada ente federativo. Define como os tributos arrecadados pela União serão distribuídos entre os três níveis de governo, além de determinar como as receitas serão direcionadas para despesas obrigatórias, nas quais os governos não podem mexer; despesas vinculadas, que recebem, obrigatoriamente, um percentual fixo das receitas; e as despesas discricionárias, que podem ser manejadas com mais liberdade pelos políticos.

A medida propõe alterar tudo isso passando a ditar a maneira como estados e municípios devem arrecadar receitas e dividir as responsabilidades entre si. Além disso, a PEC do Pacto Federativo prevê a desvinculação de receitas públicas de órgão, fundos e despesas; a proibição do socorro da União a estados e municípios em dificuldades financeiras; a extinção do Plano Plurianual; e a restrição de créditos a estados e municípios.

No documento, a Coalizão afirma que a PEC “representa o efetivo desmonte da capacidade do Estado brasileiro de garantir direitos, proteger a população e enfrentar nossas profundas desigualdades sociais. Caso tal PEC seja aprovada, os resultados práticos serão a implosão do pacto federativo brasileiro, com o fim da solidariedade fiscal entre os entes da federação e uma radical e acelerada precarização da oferta de serviços públicos com aumento das desigualdades regionais”.

Segundo Denise, a experiência internacional revela que é um equívoco brasileiro a constitucionalização de regras fiscais, que, necessariamente, devem ser flexíveis para adaptar o país ao contexto de mudanças.

“O Brasil está extremamente atrasado nesse debate. As mudanças defendidas pela Coalizão nas regras fiscais estão sintonizadas com princípios observados nas práticas e recomendações internacionais, tais como regras fiscais de média duração, com revisão a cada quatro anos; construção de regras fiscais a partir da necessidade de financiamento do Estado dos DHESCA (direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais), do plano plurianual de investimentos e do custeio da administração pública; flexibilidade, permitindo adoção de política fiscal contracíclica para amenizar efeitos dos ciclos econômicos e cláusulas de escapes para situações extraordinárias; e garantia de financiamento do conteúdo mínimo dos direitos e de não retrocesso social.”

Segundo a coordenadora, uma ampla literatura aborda a injustiça federativa no Brasil, identificando o grande desequilíbrio entre a maior responsabilidade constitucional pela garantia de políticas públicas e a menor capacidade arrecadatória de tributos que recai, principalmente, sobre os municípios.

“No Brasil, a União tem maior capacidade arrecadatória de impostos, além de ser o único ente federado que pode emitir dinheiro. Por isso, deve assumir maior responsabilidade no financiamento das políticas públicas e na proteção da população. Esse desequilíbrio federativo precisa ser urgentemente corrigido para a viabilização das políticas sociais e ambientais no país.”

Reforma tributária

A Coalizão defende ainda a aprovação de uma ampla reforma tributária progressiva, solidária, justa e sustentável, com a tributação emergencial dos setores mais ricos para ampliação das condições de financiamento das políticas públicas e garantia da renda básica permanente, como propõe a campanha A Renda Básica que Queremos.

“É necessário urgentemente um sistema tributário que reduza desigualdades, inclusive regionais, e respeite os princípios constitucionais de capacidade contributiva e igualdade tributária material. Isso seria possível com a redução da tributação sobre a produção e o consumo e a ampliação sobre o patrimônio e a renda, como fazem os países desenvolvidos. De tal forma que o lado das receitas contribua com o lado das despesas na construção de uma gestão orçamentária socialmente inclusiva, economicamente funcional e ambientalmente sustentável”, defende Denise.

A coordenadora observa que a Coalizão Direitos Valem Mais se conecta a um movimento global de questionamento do papel da economia intensificado com a pandemia.

“Vivemos um momento dramático de crescimento assustador da fome, da miséria, do desemprego, da falência de milhares de empresas e do acirramento das desigualdades e violências, em especial, contra pessoas negras, enraizadas no racismo estrutural que organiza a política econômica de austeridade. Acirramentos que ocorrem no contexto de aceleração das mudanças climáticas no planeta e de seu potencial de aprofundamento dessas desigualdades.”


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