Os desafios do encarceramento de mulheres no Brasil

Por: GIFE| Notícias| 04/10/2021
encarceramento de mulheres

Mais de 740 mil mulheres estão presas em todo o mundo, um aumento de 17% em relação a 2010. De acordo com o relatório Global Prison Trends 2021 a alta está relacionada a uma política de encarceramento, como leis que criminalizam posse de pequenas quantidades de drogas ou, ainda, países que punem mulheres que cometem transgressões em contextos de violência, pobreza ou descriminação. 

O levantamento mostra que a desigualdade de gênero faz com que, em muitos contextos, mulheres sejam menos beneficiadas por absolvições ou liberações do que os homens, mesmo que muitas delas sejam consideradas de baixo risco. 

Segundo a mais recente edição do World Female Imprisonment List, o Brasil é o quarto país no mundo com mais mulheres encarceradas, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Trecho da última edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres – mostra que, entre os países que mais encarceram mulheres, o Brasil teve um aumento de 455% na taxa de aprisionamento entre 2000 e 2016, enquanto a Rússia, por exemplo, teve redução de 2%. Do total de mulheres privadas de liberdade, 45% ainda não haviam sido julgadas ou condenadas. 

Com o objetivo de refletir sobre esse cenário  e quais são os possíveis caminhos para reverter o quadro, o redeGIFE conversou com Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

redeGIFE: Atualmente, há uma tendência global no encarceramento de mulheres. No caso específico do Brasil, quais são os fatores que podem explicar o aumento de 455% nessa taxa entre 2000 e 2016? 

Marina: Uma das principais causas para esse aumento é a atual Lei de Drogas, que entrou em vigor em 2006 e aumentou as penas relacionadas ao crime de tráfico. Se por um lado a lei promoveu um avanço ao deixar de punir com prisão o crime de porte para uso pessoal, na prática isso trouxe algumas consequências negativas, uma vez que não há critérios objetivos para diferenciar traficantes e usuários. Portanto, muitas vezes a pessoa que antes seria enquadrada no crime de porte, passa a ser enquadrada no tráfico. Além disso, o policial tem um papel-chave na definição do enquadramento legal do delito, pois nos casos das prisões efetuadas com fundamento na Lei de Drogas – normalmente prisões em flagrante fruto do policiamento ostensivo – a palavra do policial tem um peso enorme.  

redeGIFE: Segundo o INFOPEN, no Brasil, 62% das mulheres privadas de liberdade cometeram crimes relacionados a tráfico. Deste total, 77% das presas afirmam que entraram no mundo do crime por influência ou indução do marido, namorado ou companheiro, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). O que essa relação diz sobre as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira?

Marina: Os crimes relacionados à Lei de Drogas não envolvem violência ou grave ameaça. Também é fundamental destacar que, em geral, as mulheres não desempenham papéis de liderança ou mesmo relevantes na estrutura das organizações criminosas. A maior parte acaba atuando no comércio ou transporte de pequenas quantidades e em atividades para as quais é atribuída menor importância. O envolvimento de mulheres em atividades ligadas ao tráfico de drogas por influência dos companheiros é recorrente e o histórico de vulnerabilidade social contribui para isso. Ao serem condenadas, deixam de desempenhar o papel social que nossa sociedade machista e patriarcal impõe – que é o papel de mãe e cuidadora do lar -, ficam profundamente estigmatizadas e são esquecidas pelos seus maridos, namorados e até familiares. É uma dupla punição. 

redeGIFE: Segundo dados do INFOPEN Mulheres, do total de mulheres privadas de liberdade em 2016, 45% ainda não haviam sido julgadas ou condenadas. De que forma esse dado está relacionado a política de encarceramento? Há crença de que prisões terão efeitos diretos na diminuição da criminalidade? 

Marina: O altíssimo índice de mulheres presas provisoriamente – número que também se verifica no caso dos homens – mostra o desrespeito às garantias individuais da presunção de inocência, do devido processo legal e da ampla defesa, para além de evidenciar a cultura punitivista extremamente arraigada na sociedade. A prisão hoje é a principal resposta para os conflitos criminais. Atualmente, temos a terceira maior população prisional do mundo e, nem por isso, os altos índices de criminalidade no país têm diminuído. Muito pelo contrário: o encarceramento em massa corre paralelo ao fortalecimento das organizações criminosas e o aumento da violência. Temos uma política de segurança pública focada no policiamento ostensivo, que pouco investe em investigação para o desmantelamento do crime. Tal realidade acaba levando para as nossas prisões jovens que foram presos muitas vezes com pouca quantidade de droga, mas que, ao entrar no sistema prisional, acabam sendo inseridos numa malha criminal bem mais complexa, alimentando um círculo vicioso sem fim. As condenações criminais são baseadas em provas frágeis e muitas vezes ilegais, com reconhecimentos de suspeitos feitos à revelia da lei e em desconformidade com a ciência. 

redeGIFE: Quais são as possíveis alternativas para reverter esse cenário de encarceramento em massa? 

Marina: A seletividade e o racismo marcam o sistema de justiça criminal do início ao fim, sendo a população carcerária majoritariamente formada por pessoas negras, jovens e de baixa escolaridade. Para enfrentar o encarceramento massivo e a seletividade é importante combater o racismo que estrutura a nossa sociedade. Para tanto, são importantes políticas afirmativas nas instituições do sistema de justiça, além de fortalecer as políticas de alternativas penais – para que a pena de prisão deixe de ocupar lugar central – e também as iniciativas de justiça restaurativa que se contraponham à cultura da vingança, a partir de uma perspectiva de responsabilização e reparação de danos. Já existem diversas iniciativas nacionais e internacionais que valem ser amplificadas. 

redeGIFE: De que forma o foco no encarceramento pode produzir danos à vida da pessoa depois de sua passagem pelo sistema prisional? 

Marina: No lugar de ressocializar, a pena de prisão acentua o ciclo da violência, esgarça ainda mais o tecido social e traz consequências desastrosas para a comunidade. Os preconceitos e os estigmas sociais – intensificados no caso das mulheres – dificultam que egressos do sistema prisional consigam empregos e moradias. Além disso, a passagem pela prisão também impacta nas relações sociais e familiares. Conflitos são inerentes à sociedade, não importa classe, gênero ou raça. Já a prisão cumpre fundamentalmente um papel de controle de determinadas populações, majoritariamente a população negra. A verdade é que o acesso à Justiça é diferente a depender da cor e da classe social.  

redeGIFE: De acordo com o Global Prison Trends 2021, mulheres que entram nos sistemas prisionais geralmente viveram ou vivem situações de vulnerabilidade, histórico de abuso de substâncias e questões de saúde mental. O INFOPEN mostra que 62% das mulheres presas são negras. De que forma o racismo e outras questões sociais interferem na situação prisional feminina no Brasil? 

Marina: O debate sobre o encarceramento feminino, sobretudo a condição de mães e gestantes presas, envolve a superação do racismo estrutural. Além dos números evidenciarem um maior aprisionamento de mulheres negras, também há a distinção no tratamento dessas mulheres nas prisões, com violações de direitos e uso de violência física e psicológica. Ao racismo, somam-se outros problemas estruturais de nossa sociedade, como a desigualdade social e o pouco acesso à educação, que também reflete diretamente no perfil das mulheres presas no Brasil. Apenas 34% delas têm mais do que o Ensino Fundamental completo. A falta de acesso a direitos básicos, como moradia, educação, saúde e alimentação, que acompanha grande parte da nossa população, culmina em muitos casos na falta de acesso a uma defesa criminal de qualidade e na entrada dessas mulheres no sistema penal.  

redeGIFE: O Brasil contava, em março de 2020, início da pandemia de Covid-19 no país, com 208 mulheres gestantes, 44 puérperas e mais de 12 mil mães de crianças de até 12 anos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional – Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos, Quais legislações olham para a questão da maternidade no sistema prisional brasileiro? 

Marina: Existem dois dispositivos que garantem o direito ao vínculo materno-infantil para mulheres presas: o Marco Legal da Primeira Infância de 2016, e o habeas corpus coletivo concedido pelo STF [Supremo Tribunal Federal] em 2018, que afirmou o direito à prisão domiciliar de grávidas e mães de crianças de até 12 anos que respondem por crimes sem violência. Apesar desses dispositivos, a Justiça brasileira segue resistindo a cumprir a lei. O IDDD produziu um relatório intitulado “Mães Livres: a maternidade invisível no sistema de Justiça” que revela que em todas as etapas do processo penal, a maternidade não é levada em consideração ou é utilizada como forma de punir ainda mais a mulher pelo fato de ter descumprido o papel social esperado por ela na sociedade. Essa situação é ainda mais dramática com relação à mulher negra. O documentário Mães Livres, também produzido pelo IDDD, mostra algumas dessas mulheres. 

redeGIFE: De que forma o sistema de justiça pode evitar violações de direitos tanto para as mães como para os filhos?

Marina: O impacto que o rompimento no convívio entre mães e filhos pode ter no desenvolvimento das crianças é nefasto, principalmente durante a primeira infância. Mais da metade das mulheres presas são mães solo e cerca de 25% são responsáveis pelo sustento da família. Ou seja, quando a justiça se nega a cumprir a lei e mantêm essas mulheres presas, está colocando as crianças em situação de vulnerabilidade social. Muitas vezes as crianças acabam institucionalizadas, vão para abrigos e perdem o contato com a mãe. As consequências disso se perpetuam por gerações no núcleo familiar. Com a pandemia, a situação tornou-se ainda mais grave. Em março do ano passado, iniciamos um mutirão carcerário para obtermos a liberdade de gestantes e lactantes – além de outras pessoas nos grupos de risco da Covid-19 – presas provisoriamente no estado de São Paulo. Nesse caso, mais do que defender a liberdade, trabalhamos para defender o direito à vida dessas mulheres em presídios superlotados e insalubres, locais extremamente propícios para a proliferação de doenças infecciosas. 


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