O desafio é urgente para a filantropia e o Investimento Social Privado (ISP) no Brasil. Este especial é uma prévia do 13º Congresso GIFE, onde especialistas e lideranças se reunirão para debater como o setor pode contribuir para a construção de uma sociedade mais justa.
Em um cenário de desigualdades históricas e estruturas sociais marcadas por assimetrias, a filantropia brasileira se vê diante de uma provocação cada vez mais urgente: o que realmente significa desconcentrar poder, conhecimento e riquezas? Questionamento que, de acordo com especialistas do setor, apontam para a necessidade de uma reconfiguração das práticas de quem investe em transformação social.
“Desconcentrar poder, conhecimento e riquezas” é justamente o tema do 13º Congresso GIFE, que acontece de forma bienal há 25 anos. O evento acontece entre os dias 7 e 9 de maio em Fortaleza (CE) e vai reunir especialistas, lideranças e organizações para debater o papel da filantropia e do ISP na busca por justiça social. Apoio às organizações da sociedade civil (OSCs), fortalecimento da equidade de gênero e raça e soluções para um desenvolvimento sustentável e democrático, são alguns dos temas que nortearão o encontro.
Para Cassio França, secretário-geral do GIFE, o tema geral do Congresso reflete um compromisso da organização. “Enquanto houver desigualdades raciais, de gênero e de renda nesta proporção no Brasil, será momento de colocar esse debate sobre a mesa. Estamos dando seguimento à história do GIFE, explicitando a sua responsabilidade em convidar o ecossistema filantrópico a fazer discussões que possam contribuir com um país equânime.”
Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá e conselheiro do GIFE, avalia a escolha como corajosa e importante. “O GIFE ter escolhido esse para ser o tema do Congresso é uma iniciativa que merece todo apoio da filantropia e do Investimento Social Privado. É uma agenda de vanguarda, uma agenda que precisa ser colocada e é extremamente importante que esse tema seja discutido em um fórum nacional com a grandeza que é o Congresso GIFE.”
O 12º Congresso GIFE abordou a emergência de desafiar as estruturas de desigualdades que alicerçam o país. As reflexões suscitadas podem ser lidas na 1º edição da revista redeGIFE – Especial Congresso.
A versão mais recente da tradicional lista da Forbes, que classifica os países com maior número de bilionários, pela primeira vez alcançou a marca global de três mil super-ricos, que concentram fortunas estimadas em 16,1 trilhões de dólares. O valor só não ultrapassa o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos e China, maiores economias globais. Nessa lista, o Brasil ocupa a nona posição com 55 bilionários.
Estes números revelam uma conjuntura que, na avaliação de Beatriz Johannpeter, diretora do Instituto Helda Gerdau, nos convoca a refletir sobre qual futuro queremos construir. “O esgotamento de modelos tradicionais de desenvolvimento deixa evidente que manter as estruturas atuais não é mais viável. O debate sobre novos caminhos para a filantropia, assim como o da migração para uma Economia de Impacto, nos mostra que, para alcançarmos prosperidade, precisamos alocar não apenas recursos, mas também as condições de dignidade e acesso.”
Para ela, o terceiro setor tem uma oportunidade única de liderar essa mudança. No entanto, afirma que para transformar essas estruturas, não basta apenas distribuir recursos: é preciso investir na construção de novos sistemas, fortalecendo redes colaborativas e adotando estratégias de Investimento de Impacto que incluam todos os públicos.
“Falar em desconcentrar é discutir como ampliar o acesso ao poder, ao conhecimento e à riqueza. E perceber com lucidez a relevância desse tema para o Brasil”, destaca Inês Lafer, presidente do Conselho do GIFE e diretora do Instituto Betty e Jacob Lafer. “Não se trata apenas de crescimento econômico, como o aumento do PIB, por exemplo. A questão central é: como os recursos gerados por esse crescimento estão sendo distribuídos na sociedade?”
Percepção compartilhada por Maria Elvira, coordenadora da Rede de Mulheres do Ceará. “Essa desconcentração se dá por meio de políticas, ações e mudanças culturais que questionam e enfrentam privilégios estruturais: por exemplo, reconhecendo que o racismo, o machismo e a desigualdade de classes não são apenas problemas individuais.”
Mas essa está longe de ser uma discussão que se limita ao terceiro setor. Giovanni Harvey, defende que esse debate ultrapassa as fronteiras da filantropia. “Quais são os princípios que regem a nossa democracia? O que nós entendemos como uma sociedade minimamente equilibrada que garanta às pessoas oportunidades iguais, independentemente das suas origens sociais, regionais e identidades?”
Nesse sentido, o diretor acredita que as filantropias têm um papel relevante na disseminação e problematização dessa questão, provocando o envolvimento de outros setores sociais. Um exemplo são as contribuições que o setor tem feito no debate da política tributária brasileira “Não é uma tarefa apenas da filantropia, mas a filantropia, principalmente a partir da postura de alguns filantropos, tem tido uma voz relevante nesse debate”, acrescenta.
Embora historicamente associada à doação de recursos financeiros, a filantropia e o ISP vem sendo desafiados a rever seus próprios modos de operar, para um efetivo enfrentamento aos abismos sociais do país, sendo necessário ir além da transferência de recursos.
Nessa perspectiva, Maria Elvira menciona o papel decisivo do ISP e chama atenção para a importância de sua contribuição ativa com a descentralização de poder, buscando repensar suas estruturas decisórias. “A descentralização do poder no ISP é importante porque promove maior equidade, eficácia e legitimidade nas ações que buscam gerar impacto social. Isso significa redistribuir a capacidade de decisão e de acesso a recursos para além das elites econômicas, valorizando a participação ativa das comunidades e dos grupos historicamente marginalizados”, aponta.
De acordo com dados do Censo GIFE 22-23, por exemplo, o cenário de governança e diversidade do ISP é preocupante, tendo em vista que serão necessárias cerca de duas décadas para que haja uma paridade de gênero na composição dos conselhos deliberativos. No quesito raça, a previsão é que demore em torno de 60 anos para que todas as organizações tenham pelo menos uma pessoa negra integrando seus conselhos deliberativos.
“O ISP tem potencial para ser um grande aliado das organizações da sociedade civil, mas para isso precisa revisar suas práticas com mais coragem e compromisso político. A parceria só será verdadeiramente transformadora se for baseada em confiança, equidade, escuta e descentralização de poder”, reitera Maria Elvira.
Marcelle Decothé, diretora de estratégia na Iniciativa Pipa, faz coro à essa leitura. Para ela, a concentração desses três ativos se manifesta de forma intensa nas próprias cadeias de tomada de decisão de para onde e quem vai receber esses recursos, impactando em quem disputa na ponta o futuro do Brasil. “Nos conselhos, nas lideranças institucionais, nos fluxos de financiamento que ainda privilegiam grandes organizações tradicionais em detrimento de organizações comunitárias, periféricas e lideradas por pessoas negras e indígenas.”
Ela demonstra preocupação especialmente na perspectiva da produção de conhecimento, questionando quais óticas, ferramentas e metodologias são produzidas as leituras a respeito do campo. “Nêgo Bispo nos ensinou que o compartilhamento de conhecimentos e saberes é o oposto da mercantilização de opiniões. Saberes e práticas centradas em pessoas negras e periféricas também devem ser levados em consideração no desenho de estratégias de doação e grantmaking no Brasil. A mudança estrutural passa por entregar poder de decisão a quem vive os problemas que o setor busca enfrentar.”
Para Cassio França, o ISP e a filantropia precisam ter a capacidade de valorizar a diversidade territorial brasileira. “O investimento social privado e a filantropia devem estar atentos para a valorização dos diferentes territórios brasileiros, apostar nas capacidades do território e investir nas organizações da sociedade civil. Ao mesmo tempo, devem usar o seu capital social e político para estabelecerem relações de cooperação com o Estado e com as políticas públicas.”
Bia Fiuza, conselheira do GIFE e diretora institucional do Instituto de Música Jacques Klein (IMJK), acredita que o caminho para descentralizar esse poder, riqueza e conhecimento, é justamente a relação de confiança. “É muito importante que financiadores e executores trabalhem em parceria, para que essas relações sejam mais horizontais possíveis, focando nos resultados a serem alcançados. As relações de poder no âmbito da filantropia não contribuem para se atingir os objetivos quando se tem causas em comum.”
Diante disso, Giovanni Harvey traz como reflexão que a luta pela descentralização de poder é histórica, e acredita que é um momento propício para enfrentar esse cenário. “Temos, nas últimas décadas, visto alguns movimentos que rompem com esses ciclos que vêm desde o processo de colonização do Brasil, mas não é uma tarefa fácil”, finaliza
Mais reflexões sobre esta tarefa árdua poderão ser vistas a partir desta quarta-feira (07) no 13º Congresso GIFE em Fortaleza (CE). Confira a programação completa do evento e acompanhe a cobertura no site e nas redes sociais.
Natália Passafaro
Coordenação de Comunicação
Geovana Miranda
Analista de Comunicação
Afirmativa
Reportagem & Texto
Marina Castilho
Design & Desenvolvimento