Manifestos reforçam importância do compromisso social com a pauta antirracista

Por: GIFE| Notícias| 13/07/2020

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população brasileira se autodeclara negra. Mais de 70% das pessoas que vivem em situação de extrema pobreza são negras. Especialistas apontam que a juventude negra vive um verdadeiro genocídio: a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. A esses dados, somam-se acontecimentos recentes como o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, por um policial branco, que ocasionou a eclosão de milhares de protestos no mundo todo pelo fim do racismo e da violência policial contra pessoas negras. 

O contexto de vulnerabilidade ao qual populações são submetidas por conta da cor da pele é agravado à luz da pandemia de Covid-19. Se antes, com a chegada da doença ao país, os primeiros casos foram de pessoas que haviam viajado para o exterior, essa realidade sofreu uma mudança com o passar do tempo e, atualmente, a maior disseminação do vírus tem sido constatada entre pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social. 

De acordo com uma análise realizada pela Agência Pública a partir dos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, entre 11 e 26 de abril, a quantidade de pessoas negras que morreram em decorrência da nova doença quintuplicou: de 180 para 930. Em contrapartida, oito entre os dez bairros de São Paulo com maior número absoluto de mortes têm menos negros que a média da cidade. Mesmo com dados incompletos, é possível afirmar que, nos Estados Unidos, o cenário se repete: de acordo com a BBC News Brasil, apenas 15% da população do estado de Illinois é negra. Entretanto, 35% dos casos e 40% das mortes foram de pessoas negras. 

Para Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras, Rurais e Quilombolas (CONAQ), não será possível alcançar uma democracia de fato se as desigualdades que marcam a sociedade brasileira, entre elas o racismo estrutural, não forem ultrapassadas. “A população negra, historicamente, sempre lutou para defender seus direitos. As comunidades quilombolas começaram a se formar com a chegada dos primeiros negros ao país, que resistiram à escravidão. Já são 520 anos de resistência e luta por direitos. A pandemia só escancarou a dimensão dessa desigualdade que nós sempre denunciamos”, afirma. 

A CONAQ é uma das mais de 150 organizações que fazem parte da Coalizão Negra por Direitos, que lançou recentemente o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Baseado em valores como ‘colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças’, o documento, que já conta com cerca de 54 mil assinaturas, reforça a importância da luta por um futuro livre de racismos e de todas as formas de opressão a partir de 14 princípios e 25 agendas. 

Entre os princípios está a luta pela igualdade de direitos, o combate à discriminação racial e ao genocídio da população negra, a defesa do exercício do protagonismo de mulheres e homens negros, a luta pela preservação de comunidades quilombolas, entre outros. Já entre as agendas, estão erradicação da pobreza, fim do desemprego, garantia de direitos trabalhistas, defesa de direitos humanos, garantia do direito e preservação da infância negra, entre outras. 

Para Biko, trata-se de um debate que deve ser feito com toda a sociedade. “Precisamos introduzir o tema na sociedade porque a questão do racismo é delicada, as pessoas não querem se assumir racistas, mesmo com uma postura racista. Os setores parceiros que investem no tema e dialogam sobre a construção de um novo modelo de sociedade são estratégicos para a nossa luta.”

Confira o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia neste link

Chamado ao setor privado  

Além da movimentação no âmbito da sociedade civil, ações e iniciativas têm sido colocadas em prática para incentivar que o setor privado e empresarial também assuma o compromisso de não apenas não praticar racismo, mas ser antirracista. Nesse sentido, o Instituto Identidades do Brasil (IDBR) e o Sistema B Brasil lançaram o manifesto Seja Antirracista. A iniciativa defende que não é necessário ter mais mortes de pessoas negras para que exista um engajamento contínuo na pauta racial. Por isso, convoca pessoas físicas e empresas a assinar e integrar o manifesto, tido como um espaço de comprometimento público daqueles que entendem que vidas negras importam. 

Pedro Teles, gestor de comunidades e relacionamento do Sistema B Brasil, citou a colega Luana Geno, fundadora do IDBR e idealizadora da campanha “Sim à Igualdade Racial”, para reforçar que, quando se trata de coronavírus, as consequências enfrentadas são muito diferentes de acordo com o contexto da população. “Em uma entrevista recente, Luciana comentou que estamos todos no mesmo mar revolto, mas longe de estarmos todos no mesmo barco. Enquanto uns estão passando em barcos tranquilos, outros estão resistindo numa canoa furada.” 

Nesse sentido, o gestor elenca uma série de perguntas que ajudam a compreender a relação entre as desigualdades sociais e o avanço da nova doença: Quem são as pessoas afetadas mais diretamente? Quem está morrendo mais? Quem está de fato conseguindo se isolar e quem não está? 

Segundo Pedro, o manifesto é um convite a um primeiro passo. De um lado, as pessoas físicas estão convidadas a se aprofundar sobre o assunto, buscando conteúdos e se comprometendo com melhores narrativas. Aqueles que assinarem estão se comprometendo a, por exemplo, promover a necessidade de uma educação antirracista, se educar sobre o racismo estrutural no Brasil, não dizer que só existe uma raça – a humana – para minimizar discussões sobre racismo, apoiar pessoas negras e não associá-las automaticamente ao racismo.  

Já para as empresas, o convite inicial é para que tornem públicos dados como o número de pessoas negras em cargos executivos da organização e, posteriormente, para que pensem e articulem ações envolvendo o compromisso e o desenvolvimento de metas e planos para melhorar essa questão internamente. “É um nível de comprometimento público para trabalhar questões como empregabilidade e diferenças salariais”, aponta Pedro. 

O gestor reforça que a ideia é aumentar cada vez mais as quase 41 mil assinaturas de pessoas e 312 de empresas, para que, a partir de ferramentas e conteúdos, a sociedade caminhe na direção de uma posição e atuação antirracista. 

Confira o manifesto Seja Antirracista neste link

A incidência do investimento social privado no tema 

Recentemente, o tema ganhou um novo espaço de debate no ambiente do GIFE: uma Rede Temática sobre equidade racial criada por institutos e fundações com o objetivo de ampliar o debate, promover trocas de conhecimento, incentivar a construção e o desenvolvimento da equidade racial interna e externamente nas organizações, além de desenvolver e qualificar seus espaços de atuação a partir de uma perspectiva afirmativa da agenda. 

“Há uma constatação comum e preocupante sobre o espaço bastante reduzido do combate ao racismo e da promoção de equidade racial na composição e atuação dessas organizações, o que as afasta da realidade social e racial brasileira, comprometendo os seus resultados e relevância”, explica Viviane Soranso dos Santos, coordenadora do Programa Raça e Gênero da Fundação Tide Setubal e integrante da RT.  

Coordenado por organizações associadas ao GIFE, como Instituto Ibirapitanga, Open Society Foundations, Fundação Tide Setubal, Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Ford Foundation e Instituto Natura, o grupo foi pensado a partir do lançamento do guia O que o Investimento Social Privado pode fazer por Equidade Racial?, que integra a iniciativa ISP Por’, uma série de oito temas da agenda pública sobre os quais a atuação do ISP é insuficiente para responder aos atuais desafios e tem potencial de expansão. 

Para a coordenadora, a evolução de casos da pandemia no Brasil, que teve início com pessoas que haviam viajado para a Europa e receberam tratamento em hospitais particulares e, posteriormente, a chegada do vírus nas periferias urbanas, habitadas, em grande maioria, por pessoas negras, reforçam os impactos nas mortes, em desigualdades educacionais e no sofrimento psicológico dessas populações.

A doença escancarou uma realidade já presente na nossa sociedade, que é a desigualdade racial, causada pelo racismo estrutural constituinte da sociedade brasileira, com impactos devastadores que ferem direitos constitucionais como o direito à vida, à saúde, à educação, à renda, entre outros”, afirma. 

Representando uma das organizações coordenadoras do grupo, Viviane reforça que há uma expectativa de que mais fundações e institutos da filantropia e do investimento social privado estejam comprometidos com a agenda da equidade racial e que o conhecimento aplicado na prática possa incidir sobre o desenvolvimento de ações reais para o avanço da pauta. 


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