População negra sempre teve direitos negados, defendem especialistas

Por: GIFE| 11º Congresso GIFE| 05/04/2021
Violência contra mulheres também acontece com a negação de direitos básicos

O evento de encerramento do 11º Congresso GIFE coincidiu com a data em que o Brasil atingiu e ultrapassou a marca de 300 mil vidas perdidas em razão da Covid-19. A live Democracia, Cidadania e Participação, que integrou o último dia da programação, debateu, entre outros temas, a desigualdade que marca a sociedade brasileira, construída a partir de relações racistas. 

Enquanto mediador do debate, Átila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil, reforçou a possibilidade de que a palavra ‘crise’ não seja suficiente para caracterizar a urgência que o país enfrenta com a “erosão das instituições e do chamado pacto de 1988 que marcou a transição democrática brasileira”.

“Diante da gravidade da crise e do ineditismo da destruição institucional, me pergunto se já não estamos vivendo, ainda que com novas características, uma situação de ruptura, mesmo que a aparência ainda seja de institucionalidade democrática.” 

Essa ‘aparência’ de democracia foi discutida também por Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). Oscar defendeu que por mais que tenham sido produzidos diversos avanços, a Constituição Federal de 1988 foi um projeto aquém das urgências de vários setores da sociedade, marcada pela desigualdade, transversal a diferentes dimensões: social, racial, de gênero, de acesso a bens de cultura e outras.

“Nesses 30 anos, nós tivemos uma enorme incompletude do projeto democrático de 1988. Sem que essas desigualdades tenham sido enfrentadas, a democracia se dá de maneira incompleta porque aqueles que têm o poder, têm a capacidade de moldar o Estado e as regras que regulam, inclusive, o setor econômico, de forma a atender seus interesses, além de distorcer a própria ideia de Estado de Direito, de que somos iguais perante a lei e merecemos tratamento respeitoso. Quem usa a lente de direitos humanos diariamente vê que aqueles que se encontram em grupos historicamente discriminados não são percebidos como iguais e podem ser mortos pela polícia, não ter tratamento de saúde adequado e acesso a uma educação de qualidade”, explicou.  

A esse cenário somam-se as decisões políticas de 2018 que, conforme defendeu Oscar, levaram ao poder um grupo hostil a essas estruturas já fragilizadas e à Constituição Federal.

“É da natureza do populismo autocrático combater as instituições democráticas. No caso brasileiro, o que temos visto é uma estratégia de emperramento, ou seja, emperra a área racial, a ambiental e, com isso, permite que as forças de desigualdade e violência prevaleçam. Mas a resistência a essa hostilidade democrática nunca foi tão forte. O Brasil está vivendo sua maior ebulição de questionamento dessas injustiças estruturais.” 

Democracia para quem? 

É quase consenso que muitas das 300 mil mortes de brasileiros em razão da Covid-19 poderiam ter sido evitadas com o reconhecimento da gravidade do novo vírus desde o início e políticas para garantir o uso de máscaras e o real distanciamento social. Aplicando a lente de raça nesse contexto, a situação é ainda mais dramática. 

“A falta de indignação com mortes evitáveis é algo que a população negra vivencia há muitas décadas, seja porque deixam morrer ou pelo extermínio a bala”, observou Bianca Santana, jornalista, escritora e colaboradora da UNEafro, que defendeu que a democracia tida por escrito na Constituição, que colaborou para oficializar direitos a mulheres, pessoas negras e população quilombola, por exemplo, sempre esteve a ser construída, sem nunca ter sido, de fato, efetivada.  

A jornalista defendeu que, muito antes da eleição de 2018, mais precisamente desde a abolição da escravatura, em 1888, a população negra não tem garantido o direito à vida, um dos mais básicos e fundamentais, considerando os dados que denotam seu extermínio. Nesse sentido, Bianca pontuou que, no atual momento, soma-se à luta política nas instituições democráticas, uma batalha para garantir a sobrevivência física desses povos, sistematicamente mais atingidos pelo novo coronavírus do que pessoas brancas, sem esquecer que a todo esse cenário de racismo, violência do Estado e desigualdades soma-se a fome (conheça a campanha Tem Gente Com Fome).  

“Na minha visão, o que está desmoronando é a expectativa da população de que essa democracia seja concretizada, algo que nunca aconteceu. Eu realmente não acredito que se trata de retomar algo que a gente já tenha vivido ou de reconstituir uma democracia que o Brasil já tenha experienciado. Se trata de inventar uma democracia que nunca vivemos, sempre lembrando que enquanto houver racismo, não haverá democracia.” 

Papel do sistema de justiça 

O papel dos sistemas de justiça na garantia do cumprimento da Constituição Federal e dos direitos nela estabelecidos em direção a uma sociedade democrática também foi tema de debate. Enquanto Átila comentou sua frustração diante de certo grau de tolerância das instituições de justiça frente à situação crítica vivida pelo país, Oscar defendeu que, pelo fato de fazerem parte e estarem imersas na sociedade, as instituições apresentam as mesmas falhas identificadas em outros setores, com atores que usam a justiça de forma mais progressista e outros que usam como um instrumento de perpetuação da violência e das desigualdades.

O diretor também reforçou que, considerando a eleição democrática e as ações de um presidente antidemocrático, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional têm conseguido, por mais que ainda exista uma grande insuficiência, reagir de maneira responsiva às demandas da sociedade civil, além de estabelecer alguns parâmetros para barrar propostas do governo federal consideradas mais violentas.

Entretanto, o sistema de justiça ainda enfrenta um grande desafio que é a forma como o governo subverte a ordem constitucional e democrática sem necessariamente alterá-la. Em termos mais práticos, isso significa que, uma vez que não é possível aprovar a alteração de algumas leis, como o Estatuto do Desarmamento, por exemplo, o governo atua por meio de decretos. 

“O que precisamos demandar e policiar hoje de maneira mais adequada é a para-institucionalidade desse governo. A justiça tem dificuldade de operar nesse campo. Ao mesmo tempo em que estamos vendo o pior da política de um lado, temos um caminho aberto para a construção de outro projeto político. Eu não apostaria todas as minhas fichas na justiça. Temos que demandar, mas também precisamos fazer política, porque ela [a justiça] sozinha não vai conseguir colocar barreiras suficientes ao avanço de uma agenda anticivilizatória”, afirmou Oscar. 

Abertura do campo para novos diálogos 

Inúmeros debates no âmbito do investimento social privado já reforçaram a necessidade de cada vez mais movimentos que combatam o racismo estrutural, inclusive dentro das organizações, com mais pessoas negras, sobretudo mulheres, integrando o quadro de funcionários e posições de tomada de decisão, entre conselheiras, diretoras e demais cargos. 

A essa questão soma-se também o apoio a coletivos, movimentos sociais e organizações negras. Ao mesmo tempo que explica que tem visto maior procura por essa aproximação, Bianca reforçou que o mais comum é uma procura por parte das organizações apoiadoras por seus iguais. Ou seja, apesar de estarem dispostas a conversar com movimentos de mulheres negras, por exemplo, essas organizações buscam critérios e parâmetros semelhantes aos seus. 

“São pensamentos como ‘eu topo conversar com organizações negras, mas precisa ter alguém que tenha os mesmos critérios que os meus, precisamos de um interlocutor que tenha estudado na Universidade de São Paulo e que tenha parâmetros mínimos de comunicação. Muitas vezes, me parece um campo narcísico, por adotar critérios técnicos que garantem a presença dos seus iguais. Isso vale para o campo da filantropia, que financia quem se parece com ela porque só confia nos formatos e modelos que ela propõe”, explicou. 

Para a jornalista, trata-se de uma busca por pessoas de pele escura que tenham uma trajetória de pessoas com pele branca, o que dificulta a articulação e a contratação de pessoas negras. “Quem sabe como mudar o mundo é quem está trabalhando nas bases da sociedade, experimentando e assumindo risco. O filantropo deve pensar se usa seu recurso para perpetuar a sociedade da forma como está hoje ou para promover uma sociedade mais justa, solidária e coesa. Ele deve correr o risco de investir nas pessoas que estão experimentando esse risco”, completou Oscar. 

Para um futuro mais representativo e democrático 

Os participantes da mesa também discutiram sobre as perspectivas de futuro, sobretudo o cenário político para 2022, ano de eleição para os cargos de presidente da república, governadores dos estados, senador, deputados federais e deputados estaduais para governar o país e os estados pelos próximos quatro anos. Bianca pontuou a presença de apenas candidatos homens, brancos, vindos de lugares e espaços privilegiados, denunciando a falta de representatividade de mulheres, sobretudo negras, como candidatas. E reforçou a importância de maior representação no Congresso Nacional. 

“A Coalizão Negra por Direitos mapeou, no início de 2019, apenas oito deputados ou deputadas negros e negras com a luta antirracista como pauta prioritária. Isso não é nada. Precisamos ampliar essa presença e, para isso, devemos fortalecer quem está nos territórios, olhando para o trabalho de base para transformar a liderança negra popular em liderança política efetiva. Se tivermos um quilombo no Congresso a partir de 2022, poderemos sonhar com outros futuros possíveis para o executivo, mas essa é uma percepção pessoal. Tenho certeza que existem muitos outros caminhos”, afirmou. 

Oscar, por sua vez, citou o exemplo dos governos e caminhos políticos de outros países para exemplificar a ameaça de permanência no poder e deterioração do sistema democrático promovida por líderes autoritários. “O que aconteceu nos Estados Unidos e na Itália, onde a população foi capaz de interromper esse processo de ascensão autoritária, é fundamental. Acredito que a eleição de 2022 não será sobre se somos mais ou menos liberais, de esquerda ou direita. Talvez tenhamos que fazer uma escolha entre: somos democráticos ou não, com todas as idiossincrasias que vamos sofrer com isso. Em 2018, esse dilema foi mal enfrentado. 2022 é uma oportunidade de corrigir isso.”

Assista ao vídeo da live neste link.


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