Promover equidade racial demanda esforço contínuo e coletivo de toda a sociedade
Por: GIFE| Notícias| 21/03/2022Mais de 200 pessoas foram mortas e feridas no que ficou conhecido como Massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960, na África do Sul, durante protesto contra a Lei do Passe, que obrigava pessoas negras a carregar um cartão com os locais onde eram autorizados a circular na vigência do apartheid. Anos depois, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou que todo 21 de março marca o Dia Internacional contra a Discriminação Racial.
Apesar do fim do regime racista, a população negra continua a sofrer diariamente múltiplas violações de seus direitos. Das 6.416 pessoas mortas em intervenções policiais em 2020 no Brasil, 78,9% eram negras, 76,2% tinham entre 12 e 29 anos e 98,4% eram do sexo masculino, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. O estudo aponta negros como os mais vulneráveis à violência letal.
“No Brasil, ainda lidamos com um fato bem preocupante: o mito da democracia racial, com consequências como a falácia de que ‘não existe racismo porque somos todos miscigenados’. Isso dificulta, por exemplo, a criação de ações para equidade racial de forma mais incisiva”, explicam Marisa Silva, coordenadora de implementação e Ana Carolina Moraes, coordenadora de Recursos Humanos da Fundação Roberto Marinho (FRM), integrantes da Rede Temática (RT) de Equidade Racial do GIFE.
Para a dupla, relembrar e discutir fatos históricos é importante no sentido de não repetir os mesmos erros do passado, mas é necessário avançar e criar pactos de combate à discriminação, racismo e ao extermínio da juventude negra.
O Instituto Unibanco, por sua vez, aponta a importância de entender o racismo como reflexo de mais de 300 anos de escravidão e o fato de que a abolição não garantiu o mínimo necessário para que as pessoas negras pudessem ascender socialmente ao longo da história. Trata-se, portanto, de combater um racismo estrutural, presente em que todas as instituições, bem como nossa cultura.
Papel da educação
O governo do Rio Grande do Sul lançou, no dia 16 de março, o programa de Educação Antirracista, reforçando o fato de que crianças não nascem racistas e que é na escola que este debate deve se instaurar. A iniciativa oferecerá formação às equipes da Secretaria da Educação focada no letramento racial, incentivando que docentes das escolas da rede estadual de todas as áreas do conhecimento trabalhem com referências africanas e indígenas.
Ao citar a famosa frase do educador e filósofo Paulo Freire – ‘Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo’ -, Marisa e Ana Carolina da FRM defendem que educação é a base de tudo. “Trabalhar na perspectiva de uma educação antirracista e do letramento racial é fundamental. Essas ações precisam ser cotidianas e consistentes para que possamos caminhar para uma sociedade mais igualitária e justa”, afirmam.
Uma das iniciativas da Fundação Roberto Marinho que visa contribuir com o debate é o projeto A Cor da Cultura, que reúne materiais e metodologia educacional para a valorização do patrimônio cultural afro-brasileiro.
Outra ação que pode apoiar o trabalho nas instituições de ensino é o grupo de Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola, elaborado pela Ação Educativa com o objetivo de possibilitar a avaliação de práticas e criação de novos caminhos para construção de uma educação marcada pela igualdade racial.
Múltiplas faces do racismo
O racismo é um fenômeno complexo. Além de posicionamentos preconceituosos extremos – como assassinatos, xingamentos e ofensas a pessoas negras -, há uma camada mais sutil, mas que também se configura como preconceito.
“O racismo não está presente apenas em atitudes de violência física: ele se faz presente na linguagem, nos estereótipos, nos olhares, nas escolhas de profissionais para a equipe, na narrativa que se decide contar. Ou seja, pode se manifestar nas dimensões ideológicas, práticas, institucionais e estruturais”, expõe Viviane Soranso, coordenadora do Programa Raça e Gênero da Fundação Tide Setubal, integrante e mobilizadora da Rede Temática (RT) de Equidade Racial do GIFE.
Um primeiro passo para o real enfrentamento deste cenário é, segundo a especialista, reconhecer a existência e, ao mesmo tempo, admitir-se racista. “Ninguém quer ser visto como racista, mas negar-se ao debate é uma forma de reforçar preconceitos existentes e impedir mudanças e avanços reais pela equidade.”
Marisa e Ana Carolina citam a importância, por exemplo, de pessoas brancas assumirem os privilégios que desfrutam por viverem em uma sociedade racista.
Preconceito sem trégua
Os pontos de reflexões ressaltados pelas especialistas ficam evidentes ao observar situações recentes, como a guerra na Ucrânia. Diversas reportagens têm comparado a diferença do acolhimento oferecido a refugiados ucranianos, sírios e demais povos vítimas de conflitos no Oriente Médio. São muitas as notícias de mulheres doando suprimentos e carrinhos de bebê em estações de trem e pessoas recebendo refugiados em suas casas, além de políticas nacionais de recepção de refugiados por países que fecharam as portas durante outras crises migratórias.
Também tem se falado sobre discriminação racial com pessoas negras que moram na Ucrânia e estão encontrando mais dificuldade para sair do país. O cenário conecta-se diretamente ao racismo que Viviane define como um processo social, histórico e político que elabora mecanismos para que pessoas ou grupos sejam discriminados.
A própria imprensa tem sido criticada pelos comentários durante a cobertura noticiosa. Alguns jornalistas e apresentadores afirmaram que, por se tratar da Europa, não se esperava uma guerra, comparando Kiev, a capital, com lugares como Iraque e Afeganistão.
Diogo Bercito, jornalista, listou esses comentários em matéria na Folha de S.Paulo, e afirmou: “A ideia implícita, e às vezes explícita mesmo, é de que é esperado um país árabe ou africano estar em guerra. É habitual, também, que a sua população tenha que se refugiar. Como se essa fosse a sua natureza, sua essência.”
Avanços produzidos na pauta racial
Por mais que a almejada equidade racial no Brasil ainda esteja distante, é preciso destacar avanços promovidos ao longo dos anos. Abaixo, o redeGIFE listou alguns deles.
– Criminalização do racismo na Constituição Federal de 1988;
– Participação brasileira e assinatura de compromisso de enfrentamento ao racismo durante III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, na África do Sul, em 2001;
– Lei 10.639/2003: tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da Rede de Ensino;
– Lei 12.288/2010: instituiu o Estatuto da Igualdade Racial;
– Lei 12.711/2012: estabeleceu reserva vagas nos cursos de graduação das universidades federais para estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e quilombolas;
– Lei 12.990/2014: determinou cotas para pretos e pardos em concursos públicos.
Engajamento do investimento social privado
Equidade Racial é um dos temas abordados na série O que o Investimento Social Privado pode fazer por?, que reúne agendas nas quais o apoio e alocação de recursos do setor privado ainda são insuficientes para responder à complexidade e abrangência dos desafios.
O guia temático elenca seis estratégias de atuação para os investidores sociais:
- Fortalecimento de iniciativas promovidas por organizações negras ou lideradas por pessoas negras;
- Fortalecimento de lideranças negras;
- Fomento ao empreendedorismo negro;
- Equidade racial no campo educacional;
- Equidade racial no mundo corporativo;
- Conhecimento e posicionamento público.
A Rede Temática (RT) de Equidade Racial do GIFE tem atuado sobretudo na última estratégia, de produção de conhecimento e posicionamento público. Para Viviane, institutos, fundações, empresas, associações, universidades e governos têm o dever e a responsabilidade de, de forma mais urgente e estruturada possível, tomar medidas para modificar essa realidade.
“Desconstruir o racismo é um exercício que deve ser realizado diariamente, desde os movimentos mais simples aos mais complexos, com a criação de políticas públicas, passando por mudanças na cultura e nas estruturas organizacionais como políticas internas de enfrentamento”, aponta Viviane, reforçando o caráter transversal da atuação na pauta e a importância de pessoas negras ocuparem espaços de poder e tomada de decisão.
Participe
Em razão do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, GIFE, Fundação Tide Setubal, Instituto Ibirapitanga, Itaú Social, Fundação Roberto Marinho e Instituto Unibanco, além de outras organizações, assinam a carta pública ISP Contra o Racismo e pela Equidade Racial.
“Em face da expressiva recorrência do racismo e da persistência das desigualdades raciais refletidos em índices sociais e econômicos, e dos episódios frequentes de violência e discriminação sofridos pela população negra, o investimento social privado e a filantropia brasileira precisam afirmar o compromisso com a promoção da equidade racial e o fortalecimento do combate ao racismo dentro de suas organizações e na sua dedicação institucional de endereçar recursos privados para a produção de bem-público”, pontua trecho do documento.
As organizações convidam, ainda, para que todos os investidores sociais se engajem em discutir, pensar e cooperar nas diversas possibilidades de atuação e contribuição da filantropia, somando esforços cotidianos de elaboração, articulação e coordenação de ações práticas e estratégicas contra o racismo e pela justiça racial.