Relatório Mundial 2019 da Human Rights Watch aponta graves ameaças aos direitos humanos no Brasil

Por: GIFE| Notícias| 11/03/2019

 

Um momento sombrio e com muitas ameaças à garantia de direitos fundamentais dos brasileiros. Isso é o que revela o informe produzido pela Human Rights Watch sobre o Brasil, parte do Relatório Mundial 2019. Em sua 29ª edição, a Human Rights Watch analisou práticas de direitos humanos em mais de 100 países.

Em relação ao Brasil, os dados são preocupantes, como é o caso das informações referentes à violência, que atingiu um novo recorde, com cerca de 64 mil homicídios em 2017, sendo que a polícia soluciona apenas uma pequena porcentagem deles. Um amplo estudo conduzido por criminologistas e jornalistas estima que o Ministério Público tenha apresentado denúncia em apenas dois em cada dez casos de homicídio no Brasil.

Segundo o relatório, abusos cometidos pela polícia, incluindo execuções extrajudiciais, contribuem para um ciclo de violência que prejudica a segurança pública e coloca em risco a vida de policiais e civis. Dados de fontes oficiais compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que 367 policiais em serviço e de folga foram mortos em 2017, conforme as últimas informações disponíveis. Policiais em serviço e fora de serviço mataram 5.144 pessoas em 2017, 20% a mais do que em 2016.

Outro ponto de atenção do relatório diz respeito às condições carcerárias, tortura e maus tratos a detentos. Menos de 15% dos presos têm acesso a oportunidades educacionais ou de trabalho, e os serviços de saúde são frequentemente deficientes. A Defensoria Pública do Rio informou que, somente naquele estado, 266 pessoas morreram nos presídios em 2017, a maioria devido a condições tratáveis, como diabetes, hipertensão ou doenças respiratórias.

A mesma falta de atenção e descaso ocorre também com crianças e adolescentes que estão em situação de conflito com a lei. O relatório cita, por exemplo, um estudo de 2018 do Instituto Sou da Paz, que aponta que 90% das crianças e adolescentes detidos no estado de São Paulo afirmaram que foram maltratados pela polícia militar durante a prisão, e 25% disseram que foram agredidos por agentes socioeducativos. Investigações do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e da Human Rights Watch revelaram numerosos casos de maus-tratos em vários estados. Os abusos frequentemente não são investigados ou punidos adequadamente.

O estudo aponta ainda outras ameaças aos direitos humanos em várias áreas, como em relação à liberdade de imprensa (140 repórteres foram intimidados, ameaçados e, em alguns casos, fisicamente agredidos durante a cobertura das eleições); a violência contra as mulheres (no final de 2017, mais de 1,2 milhão de casos de violência doméstica estavam pendentes nos tribunais e mais de 4.539 mulheres foram assassinadas no Brasil); trabalho escravo (de janeiro a outubro, o Ministério do Trabalho identificou 1.246 casos de trabalhadores sujeitos a condições abusivas que, de acordo com a lei brasileira, são análogas à escravidão, como trabalho forçado ou condições degradantes de trabalho); entre outros.

Para a Human Rights Watch, esse cenário atual se torna ainda mais complexo diante de discursos de ódio propagados por autoridades governamentais. Porém, ao mesmo tempo, a organização aponta que há uma crescente tendência global – inclusive no Brasil – de confrontar os abusos de autocratas que dominam as manchetes. Neste sentido, as organizações da sociedade civil desempenham um papel fundamental de resistência, de denúncia e participação ativa, a fim de que os direitos humanos sejam de fato garantidos e retrocessos não ocorram.

“Garantir a atuação das organizações que trabalham com direitos humanos é fundamental em uma sociedade democrática e plural. Em primeiro lugar, é necessário que essas organizações possam atuar na legalidade, sem sofrer ameaças ou intimidação. Defender esse espaço de atuação é o papel da sociedade civil como um todo, incluindo fundações, setor privado, imprensa etc.”, destaca Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch.

Confira a entrevista completa com a diretora sobre os detalhes do relatório e de que forma a Human Rights Watch aponta o papel relevante do Investimento Social Privado (ISP) para a atuação das OSC em direitos humanos no Brasil:

RedeGIFE: O relatório produzido pela Human Rights Watch traz como destaque que há uma crescente tendência global de confrontar os abusos de autocratas que dominam as manchetes. Como vocês avaliam essa tendência no Brasil?

Maria Laura: O relatório nos lembra que mesmo em democracias consolidadas, governos autoritários têm ganhado espaço, e lançado mão de discursos de ódio e de ameaça aos direitos humanos. Essa tendência se verifica em países em diferentes contextos geográficos e ideológicos, como Venezuela, Hungria, China, Estados Unidos, Itália e mesmo o Brasil, com a eleição do atual presidente.

De fato, o resultado das eleições de 2018 soou como um alarme para a defesa dos direitos humanos no Brasil, ameaçados em diversas esferas. Em primeiro lugar, porque a nossa experiência global nos mostrou que, em outros lugares do mundo, os líderes normalmente fazem aquilo que prometem durante a campanha. Ou seja, o discurso de ódio não é apenas um discurso e normalmente traz consequências graves. Em segundo lugar, porque algumas políticas do presidente, como a flexibilização ao acesso às armas e a defesa do uso de arma letal por forças de segurança, impõem enormes riscos aos direitos humanos, em um país que já apresenta altíssimas taxas de violência e de abusos policiais.

Apesar desse cenário sombrio, avaliamos que não somente há espaço para uma resistência por parte de setores da sociedade civil, da mídia, do judiciário, e outros atores comprometidos com as pautas dos direitos humanos, como isso já tem se demonstrado na prática. Nossa experiência pelo mundo nos mostra que essa resistência pode ter vigor suficiente para colocar os direitos novamente em debate e reverter uma onda autoritária.

RedeGIFE: O reporte sobre o Brasil traz vários dados bem preocupantes, como o fato da violência ter atingido um novo recorde no Brasil, com cerca de 64 mil homicídios em 2017; a violência doméstica continuar generalizada; o enfraquecimento da rede de proteção da mulher; milhares de casos a cada ano não são devidamente investigados; entre outros. Quais foram as questões que mais se destacaram como desafiantes para a garantia dos direitos humanos no país? Por quê?

Maria Laura: Uma das questões centrais e mais desafiadoras para a defesa dos direitos humanos no Brasil é a impunidade. Grande parte das violações de direitos humanos que documentamos no Brasil, seja na área da violência policial, tortura e outros abusos, seja no campo da violência generalizada e epidêmica contra as mulheres, especialmente no espaço doméstico, a impunidade tem sido a regra. Mas não somente aí. Há impunidade nos casos de violência contra defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, e contra comunicadores. Há falhas muito graves do Estado brasileiro, em todas as suas esferas, na investigação desses abusos, na interação das diversas autoridades responsáveis pela persecução penal e, consequentemente em alcançar a respectiva e fundamental responsabilização dos perpetradores, o que poderia ajudar a interromper o ciclo de violência que é tão perverso no Brasil.

Veja o caso da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, mortos em março do ano passado por assassinos profissionais. Até o momento este caso tão assustador, que chocou o Brasil e o mundo, está pendente de solução, gerando extrema desconfiança em relação à capacidade do Estado brasileiro de fazer justiça, e reparar as vítimas de abusos.

Conflitos relacionados ao meio ambiente e à terra também são fontes de bastante preocupação. Em 2017, 71 pessoas envolvidas em conflitos de terra morreram de forma violenta no Brasil, o maior número desde 2003, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica. Além disso, no ano passado, a HRW documentou casos de intoxicação aguda pela pulverização de agrotóxicos altamente perigosos em comunidades rurais, indígenas e quilombolas. Os moradores destas comunidades temem represálias de grandes proprietários caso denunciem intoxicações.

RedeGIFE: Há alguma área que podemos dizer que ocorreram avanços ou ainda os desafios são os que prevalecem?

Maria Laura: Obviamente que os desafios prevalecem, mas podemos apontar sim alguns avanços importantes nos últimos anos e fundamentais para o cumprimento das obrigações internacionais do Brasil em relação aos direitos humanos.

A implantação no Brasil das audiências de custódia em 2015, por exemplo, pelo Conselho Nacional de Justiça foi talvez um dos maiores avanços vistos no sistema de justiça criminal dos últimos tempos. Por meio de uma normativa dirigida aos juízes, o CNJ determinou que todos os detidos em flagrante no Brasil deveriam ser levados dentro de 24 horas após a prisão para uma audiência, a fim de determinar se devem permanecer em prisão preventiva ou aguardar o julgamento em liberdade. Na ausência dessas audiências os presos frequentemente esperam meses para ver um juiz pela primeira vez, contribuindo para um dos maiores problemas do sistema carcerário que é a superlotação. Os desafios de institucionalizar definitivamente essa iniciativa por meio de lei, e de ampliar sua aplicação para todas as comarcas brasileiras, permanecem.

Além disso, no ano passado, o Supremo Tribunal Federal determinou que mulheres grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou de crianças e adultos com deficiência, presas preventivamente por crimes violentos devem aguardar julgamento sob prisão domiciliar, exceto em situações excepcionalíssimas. Essa decisão, quando implementada na sua inteireza, terá um impacto fundamental para muitas famílias e crianças brasileiras, frequentemente desamparadas pela prisão da mãe, que muitas vezes é quem sustenta toda uma família emocional e financeiramente.

No campo da migração e do refúgio, a aprovação final da lei de migração em 2017, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, com ampla participação da sociedade civil, e incorporação de princípios fundamentais de direitos humanos e o acolhimento por questões humanitárias, também foi um importante passo.

RedeGIFE: Quais seriam então as causas mais urgentes em que é preciso uma mobilização e atuação dos vários setores da sociedade brasileira para avançarmos na garantia de direitos básicos aos brasileiros?

Maria Laura: Tendo em vista a interdependência dos direitos humanos, é difícil estabelecer a priori uma área de maior relevância ou urgência. De todo modo, existem questões estruturais nas quais verificamos abusos e violações sistemáticas e que, portanto, merecem atenção especial na agenda de direitos humanos. É o caso da segurança pública que, como mencionamos, parte de um patamar já muito ruim e pode piorar com políticas públicas que não atentem para a complexidade do problema e tendem a oferecer soluções simples.

O projeto de lei “anticrime” recentemente proposto pelo atual governo, por exemplo, poderia aumentar o número de execuções extrajudiciais pela polícia. O projeto permite a juízes reduzirem ou deixarem de aplicar a pena a condenados por homicídio que alegarem legítima defesa no julgamento, uma vez que se determine que agiram com “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Nossos estudos no Brasil indicam que frequentemente os policiais justificam execuções extrajudiciais alegando falsamente que agiram em legítima defesa após criminosos atirarem contra eles. Execuções antagonizam comunidades que deixam de cooperar com a polícia no combate ao crime, alimentando o ciclo de violência, inclusive contra os próprios policiais.

Outra área muito sensível é a violência epidêmica contra as mulheres no Brasil. Nesta área é preciso acabar de uma vez por todas com o mito de que as mulheres permanecem em relacionamentos abusivos porque querem. Essa é uma percepção intrínseca na sociedade brasileira, no âmbito de um contexto histórico de desigualdade de gênero e machismo. Para isso, é preciso acabar com os obstáculos que as mulheres enfrentam para denunciar uma situação abusiva, levando a sério e investigando toda denúncia, contra toda forma de violência, desde a psicológica, física, moral, e as ameaças e ampliar as possibilidades de acolhimento e apoio jurídico, psicológico, social e financeiro.

Estes são dois temas nos quais a HRW tem trabalhado de forma mais próxima, o que não significa que outros não sejam igualmente sensíveis e urgentes, como a violência contra a população LGBT, a violência no campo e contra os defensores dos direitos humanos.

RedeGIFE: Diante deste cenário atual em que vários direitos fundamentais estão sendo ameaçados, qual seria o papel das organizações da sociedade civil?

Maria Laura: Em um momento como o atual, as OSC têm a responsabilidade de defender os direitos conquistados e evitar retrocessos. É muito importante que a sociedade civil organizada mostre a sua potência e sua importância, monitorando casos de graves violações, fazendo declarações públicas, sendo ativa e vocal.

Acreditamos também que a atuação das organizações internacionais, como a Human Rights Watch e outras, é de maior importância. Essas organizações conseguem dialogar com a comunidade internacional, mobilizando pessoas, recursos, opiniões e, consequentemente, causar pressão vinda do exterior. Além disso, organizações internacionais às vezes são menos vulneráveis a mudanças no contexto local, portanto sua atuação pública é relevante para manter o espaço de ação da sociedade civil vivo e protegido.

RedeGIFE: Mas como garantir que elas continuem desempenhando o seu papel com qualidade se as OSC que atuam com direitos humanos estão entre aquelas que mais enfrentam dificuldades em conquistar apoios, doações etc.?

Maria Laura: Garantir a atuação das organizações que atuam com direitos humanos é fundamental em uma sociedade democrática e plural. Em primeiro lugar, é necessário que essas organizações possam atuar na legalidade, sem sofrer ameaças ou intimidação. Defender esse espaço de atuação é o papel da sociedade civil como um todo, incluindo fundações, setor privado, imprensa etc.

Em segundo lugar, é claro que para poderem desempenhar o seu papel com qualidade essas organizações necessitam de recursos humanos e financeiros, esses cada vez mais escassos. Por um lado, é necessário que as grandes fundações internacionais continuem atuando no Brasil e apoiando organizações brasileiras, uma vez que historicamente são esses os maiores financiadores da causa dos direitos humanos.

Por outro lado, o trabalho do GIFE e de outras entidades que buscam ativamente despertar o interesse do investimento social privado para os direitos humanos também é fundamental. É preciso continuar fomentando uma cultura de doação para causas estruturais e não assistenciais – como os direitos humanos – e também uma cultura de aportes para instituições como um todo, não restritos a projetos específicos.

É preciso que as doações sejam direcionadas para a gestão das OSC, incluindo folha de pagamento, infraestrutura, despesas com viagens etc. No trabalho de uma organização como a Human Rights Watch, por exemplo, cuja atividade base é a pesquisa e advocacy, quase todos os custos são relacionados à remuneração de pesquisadores, advogados, tradutores etc.

RedeGIFE: De que forma então o investimento social privado (ISP) pode colaborar para reverter este quadro?

Maria Laura: O investidor social privado brasileiro deve entender que para reduzir as desigualdades e garantir um futuro mais justo para todos, é imperativo investir em mudanças estruturais e de longo prazo. Esses investidores podem fazer isso apoiando organizações de direitos humanos. O ISP tem um papel fundamental nesse sentido, já que permite que as organizações de direitos humanos atuem de forma independente e sustentável.

Organizações que atuam denunciando abusos cometidos pelo poder público, como a Human Rights Watch, não podem receber nenhum financiamento público e nem de organizações internacionais que representem os Estados, pois isso representaria um conflito de interesse. Para garantir a nossa imparcialidade, a HRW só recebe financiamento de investidores sociais privados. Além disso, fundações e institutos privados também têm a vantagem de poderem repensar as formas tradicionais de atuação, de monitoramento e de prestação de contas, podendo criar inovações que fomentem o campo da OSC e trabalhando junto com essas organizações na construção de melhores estratégias de atuação.

RedeGIFE: Como você mencionou, garantir a liberdade de atuação das OSC é fundamental para uma democracia plena e plural. Porém, há uma discussão no país da possibilidade de termos uma medida provisória que prevê o monitoramento e a coordenação de ONGs e de organismos internacionais. Como vocês avaliam essa iniciativa e quais são os benefícios e/ou perigos para a autonomia das OSC se a medida for aprovada?

Maria Laura: Para a Human Rights Watch, esta medida é extremamente preocupante e perigosa. Não foram estabelecidos critérios claros para esse monitoramento e há muitas brechas para que seja realizado de forma arbitrária. O governo tem total legitimidade para exigir transparência e prestação de contas por OSC que recebem recursos públicos. No entanto, a forma como a proposta foi escrita extrapola essa prerrogativa, ameaçando avaliar de forma discricionária a atuação de qualquer OSC atuante no território nacional. Isto fere frontalmente a liberdade de associação e livre funcionamento no país, e impõe um clima de vigilância sobre as OSCs.

Para a HRW, a medida sugere uma falta de compreensão do papel independente que essas entidades desempenham em qualquer sociedade aberta e democrática.


Apoio institucional