Transparência e comunicação: abertura e diálogo entre investidores sociais

Por: GIFE| Convidado| 03/08/2016

Artigo de Iara Rolnik e Mariana Moraes publicado no Censo GIFE 2014. Confira outros artigos e os resultados da pesquisa, aqui.

Relações mais transparentes entre os atores sociais são uma das bases para uma sociedade mais democrática e forte. Em um país como o Brasil, em que a burocracia e a forma como se delineiam as relações público-privadas por vezes favorecem práticas de corrupção, processos que levem à maior transparência nas relações entre os diversos setores da sociedade têm se tornado cada vez mais proeminentes. A presença desse tema na agenda política nacional fica clara a partir da criação de importantes marcos legais – tais como a Lei de Acesso à Informação, a Lei da Transparência, a Lei Anticorrupção, entre outros – que têm ampliado o debate e os mecanismos de acesso à informação e de controle social por parte da sociedade. Além disso, a sociedade civil tem contribuído de forma incisiva para o avanço do tema, dada a presença histórica e crescente de organizações voltadas ao controle social, como a Rede Nossa São Paulo, Meu Rio, Instituto Pólis, entre muitas outras.

Ainda que a maior parte da legislação e das iniciativas recentes esteja voltada a mecanismos de transparência e prestação de contas nas atividades governamentais, no uso dos recursos públicos e nas relações público-privadas, é crescente a demanda para que tais práticas se estendam e se desenvolvam também entre as organizações da sociedade civil (OSCs). Especificamente sobre essas relações, a demanda decorre, principalmente, da fragilidade e dispersão da legislação específica para regular as relações e o repasse de recursos do Estado para as organizações da sociedade civil e, sobretudo, em função do cenário de desconfiança pública relacionado às OSCs brasileiras. São a essas e outras questões que iniciativas como a recente sanção da Lei n. 13.019/2014 – que regulamenta as relações de fomento e colaboração entre organizações da sociedade civil e o Estado – procuram responder e nas quais pretendem incidir.

As organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, ainda que pertencentes ao universo do direito privado, também são suscetíveis ao escrutínio público uma vez que suas ações são voltadas ao interesse público. Isso se torna ainda mais sensível quando levamos em conta o fato de muitas delas, a depender de seu formato societário, natureza jurídica e tipo de certificação, gozarem de uma série de benefícios de isenção e imunidade fiscal.

No campo sem fins lucrativos, os institutos e as fundações que fazem investimento social privado ocupam hoje uma posição central. Não somente porque muitas dessas organizações são financiadoras de outras, mas, sobretudo, em função de seu importante papel como atores políticos de transformação social. Daí decorre uma enorme responsabilidade perante a sociedade, a necessidade de construção de legitimidade para essa atuação e a importância de fortalecer práticas mais transparentes que reforcem sua credibilidade.

Transparência no investimento social privado: qual a sua relação com a comunicação das organizações?

Uma das principais peculiaridades do campo do investimento social privado é a ambiguidade de sua própria natureza: os institutos e fundações são organizações de direito privado, porém com objetivos, resultados e impactos que devem servir ao interesse público, ao bem comum. Ainda que muitas das organizações possuam benefícios e imunidades fiscais, utilizando, dessa forma, recursos públicos, esse fato não faz com que sejam instituições públicas de fato – o que exigiria um tratamento semelhante ao do setor público em relação à transparência. Muitas organizações nesse campo, ao contrário, reivindicam o seu direito de continuarem privadas e “opacas”.

A questão, no entanto, é que a natureza do trabalho dessas fundações e institutos exige diálogo com um amplo e plural leque de atores sociais. A necessidade de maior transparência se impõe pela demanda da legitimidade e pelas relações estabelecidas com a sociedade, e não pelas exigências legais. Trata-se de uma dinâmica que diz respeito a toda a sociedade e que coloca o desafio de encontrar maneiras de se comunicar que sejam capazes de tornar as informações mais acessíveis e atraentes.

A transparência é vista, nesse sentido, como a capacidade dessas organizações de publicar e disponibilizar informações importantes para seus principais interlocutores (instituições apoiadas, grupos beneficiários das ações, seus pares, parceiros, fornecedores, conselhos e o próprio Estado) e o público em geral (European Foundation Centre, 2011). Para a Transparência Internacional (TI), “transparência é a característica de governos, empresas, organizações e indivíduos em serem abertos em relação à clara divulgação de informações sobre planos, regras, processos e ações” (Transparency International, s/d – tradução livre). A capacidade de uma organização ser transparente, portanto, deve ir além da publicação de um relatório anual com dados de projetos e informações contábeis, e está relacionada a uma postura e à responsabilidade exercitadas no seu cotidiano de gestão, frente ao seu público interno e externo. Trata-se de cultivar uma cultura de transparência, na qual se reconhece no outro um interlocutor relevante para o próprio aperfeiçoamento do trabalho da organização.

Essa visão sobre transparência se aproxima da prática de accountability. Tal conceito é definido por Samuel Paul (1992 apud Ceneviva, 2006) como a capacidade de manter indivíduos e organizações passíveis de serem responsabilizados pelo seu desempenho. Isso envolve noções de responsabilidade (objetiva e subjetiva), controle, transparência, obrigação de prestação de contas e justificativa para as ações que deixaram de ser empreendidas (Pinho e Sacramento, 2011).

A transparência não pode ser vista como um fim em si mesmo, mas como parte de um sistema maior de prestação de contas (Angelico, 2012). Implica, portanto, uma perspectiva relacional que sugere ações de abertura, comunicação e prestação de contas. Ou seja, o compartilhamento de informações, porém com fins de diálogo e relacionamento, de abertura: “Uma fundação transparente é aquela que compartilha, de forma ampla e honesta, o que faz, como faz e a diferença que faz. A transparência se traduz também em uma forma eficaz de prestação de contas para a sociedade e de construção de relacionamentos sólidos entre investidores sociais e suas partes interessadas – beneficiários, governo, mantenedores, outros investidores e organizações da sociedade civil” (Foundation Center, 2014).

É nesse sentido que acreditamos que entender a comunicação e a transparência de forma conjunta permite perceber as relações intrínsecas entre essas duas esferas das organizações. Comunicar é abrir-se e, acreditamos que, compartilhar o que a organização faz e a diferença que faz de forma honesta, acessível e oportuna é torná-la mais transparente.

Grande parte do impulso que a transparência tem recebido nos últimos tempos como elemento proeminente de discussão vem também das mudanças na forma de comunicação. Na era digital, manter-se isolado é quase um desafio a mais. As organizações têm percebido cada vez mais que é preciso reposicionar a comunicação em suas estratégias. Se, historicamente, a área de comunicação era vista como meio, hoje passa a enfrentar o desafio de ser parte integrante das estratégias dos projetos.

Além disso, a comunicação, antes unilateral com os receptores da informação, passa a evitar a relação professoral e de pouco ou nenhum diálogo. Esse tipo de comunicação pouco combina com a era digital, em que a troca e a escuta são elementos fundamentais para engajamento e compartilhamento da informação produzida. O sentido hoje é o de democratizar a comunicação ao máximo, buscando trabalhar outros elementos que a compõem e a facilitam: mais do que a forma de se comunicar, reposicionar a comunicação e torná-la estratégica e entendê-la como instrumento de transformação.

O que o Censo GIFE 2014 trouxe sobre comunicação e transparência

O Censo GIFE 2014 trouxe alguns resultados que contribuem para pensar sobre a conexão e as possibilidades de fortalecimento mútuo entre comunicação e transparência, quando percebidos como faces de uma mesma moeda.

Um primeiro ponto se refere ao tipo de informação que os associados costumam divulgar e para quais públicos. Os resultados mostraram que, de forma geral, quanto mais estratégica é a informação, menos é divulgada de forma pública. Ou seja: 96% dos respondentes divulgam em seus sites ou outros veículos de acesso público informações sobre áreas de atuação, 92% divulgam a missão e visão da organização, 81% sua estratégia de atuação e 80% seus relatórios de atividades. No entanto, apenas 19% publicam o estatuto da organização, um pouco menos da metade dos respondentes (56%) publicam a composição do seu conselho deliberativo, e somente 35% divulgam os resultados das avaliações de projetos/programas (ainda que 50% dos respondentes divulguem esses resultados para públicos específicos).

Mesmo que 77% dos respondentes divulguem o contato da área de comunicação no site, os dados do Censo mostraram pouca divulgação pública de outras informações aparentemente simples como essa ou como a composição da equipe (tornada pública apenas entre 53% dos respondentes), o que pode revelar que, apesar de fáceis de serem expostas, não são vistas como elementos passíveis de divulgação ou que precisem ser compartilhados. Da mesma forma, informações que ampliariam a visão sobre a forma de operar os projetos das organizações – tais como editais para seleção de projetos, divulgados apenas por 42% dos respondentes, ou os critérios para essa seleção, divulgados publicamente em 45% dos casos – também não ecoam como elementos prioritários para abertura de informações em relação ao público. Quando adentramos na divulgação de elementos igualmente relevantes, considerando a atuação dessas organizações em ações de interesse público, vemos que apenas 57% das organizações tornam públicas suas demonstrações financeiras e 42% os pareceres de auditorias.

Um recorte sobre os perfis das organizações respondentes revela que as maiores, do ponto de vista de orçamento (com investimento de mais de cinquenta milhões de reais), têm maior facilidade para comunicar sobre suas ações: 92% divulgam o relatório de atividades ou balanço social no site (contra 80% da amostra geral) e um número maior divulga as informações contábeis e financeiras (77% contra 57% da amostra geral). Esse dado pode revelar que essas organizações podem ter uma maior estrutura para tal tipo de prática ou talvez sentem mais responsabilidade no compartilhamento de dados em função do volume de recursos.

Em relação ao tipo de institutos e fundações, vemos que as organizações familiares cujos recursos são, em geral, próprios das famílias fundadoras, são as que divulgam menos itens, ainda que estejam entre os investidores que mais compartilhem dados sobre alguns aspectos importantes, tais como a composição do conselho consultivo e o estatuto. Os institutos e as fundações independentes e comunitários, por sua vez, são aqueles que mais divulgam informações publicamente – o fato de dependerem mais fortemente de captação externa pode contribuir para entender as razões para tal. As áreas de investimento social de empresas, por sua vez, possuem um maior número de obrigações legais em relação ao compartilhamento de informações e, talvez por essa razão, também apresentam um “índice” de  compartilhamento de dados maior: são campeãs em divulgação das estratégias de atuação, critérios para seleção de projetos apoiados, e contatos com a equipe de comunicação, por exemplo.

Ao lado dos institutos e fundações empresariais, as áreas de investimento social de empresas são também as que costumam fornecer informações sobre sua organização ou sobre a mantenedora para relatórios e indicadores externos. Oitenta por cento de ambos os tipos de associados divulgam informações para alguns desses relatórios, tais como o Global Reporting Initiative (GRI), o Guia Exame de Sustentabilidade ou os Indicadores Ethos (os mais recorrentes). Talvez até pela inexistência de mecanismos similares aplicáveis a institutos familiares ou mesmo independentes – menos influenciados, em geral, pelas práticas empresariais –, esses dois tipos de organizações são os que menos se submetem a esses modelos de relatório ou sistema de indicadores.

Informando sobre a estrutura institucional de comunicação das organizações, o que ajuda a entender parte dos resultados apresentados, os dados do Censo mostram que apenas 50% dos respondentes têm equipe interna destinada especificamente à comunicação, 33% possuem equipe de comunicação terceirizada contratada diretamente pelo associado respondente e 45% dividem a estrutura de comunicação com a empresa mantenedora. Nesse último caso, ressalta-se o quanto o compartilhamento da estrutura de comunicação com a mantenedora pode prejudicar a comunicação da atuação social da organização, dada a dificuldade de encontrar comunicadores que compreendam o setor e possam evidenciar práticas sem cair em leituras mais restritas como as de cunho assistencialista, por exemplo. Chama a atenção, ainda, que 5% dos respondentes não possuem nenhuma estrutura de comunicação e 3% afirmam não fazer nenhum tipo de ação de comunicação².

Entre os canais de comunicação mais utilizados pelos respondentes, sites, blogs, redes sociais ou outros espaços virtuais abertos são os mais recorrentes (86%), seguidos de boletim on-line ou newsletter (64%) – em geral voltados a públicos específicos ou pré-selecionados – e e-mail marketing (59%). Chama a atenção que 45% dos respondentes também fazem ações de comunicação através de meios de comunicação de massa (TV, rádio, jornais, revistas). O último dado talvez explique porque, quando perguntados sobre o público que procuram atingir com suas ações de comunicação, 74% dos respondentes têm como um de seus públicos-alvo a sociedade em geral.

No entanto, é relevante observar que os beneficiários e parceiros e as redes vinculados aos programas e beneficiários de programas são também alvo das ações de comunicação (citados por 66% e 71% dos respondentes, respectivamente). Mantenedores, acionistas, conselheiros, gestores da mantenedora são alvo de 65% das ações, e colaboradores da mantenedora, de 55% delas. Esses resultados mostram a amplitude, dispersão e heterogeneidade do público–alvo, variando entre um público interno (como é o caso de conselheiros) e a sociedade em geral.

A comunicação parece ser uma área que ainda apresenta uma série de desafios para as organizações: é relevante observar que, quando questionados sobre a sua autopercepção em relação às ações de comunicação, apenas 13% dos respondentes do Censo acreditam que sua ação pode ser destacada como referência por seus conhecimentos e práticas nesse campo, enquanto 45% acreditam estar prontos para avançar mais, a partir do conhecimento e práticas de outros associados. É interessante observar com atenção que 11% dos respondentes percebem oportunidades de melhoria na sua atuação, mas não priorizam esse aspecto neste momento.

Essas leituras do resultado do Censo parecem mostrar que a associação entre ações voltadas à transparência e aquelas direcionadas à comunicação não parece ser direta. Enquanto a transparência tende a ser vista como divulgação burocrática de relatórios fechados e pouco compreensíveis, a comunicação pública não parece ter como foco estabelecer relação com a abertura de dados. Aparentemente, as organizações não observam que revelar a forma de atuação é ser mais transparente e que esse casamento é também uma forma de legitimação, de fortalecimento público da organização e de diálogo com a sociedade.

Outra questão do Censo voltada a entender a participação de atores e partes interessadas nos processos de decisão – “Em que instâncias os diferentes stakeholders estão representados e participam, ainda que apenas com aconselhamentos e sugestões, dos processos decisórios do associado?” – ajuda a evidenciar os significados de abertura das organizações. Seus resultados mostram que quanto mais centrais são as instâncias de decisão, menos as organizações estão dispostas a permitir o diálogo com pessoas fora de seu círculo mais próximo, tais como acionistas das empresas e colaboradores da mantenedora. Ainda que organizações da sociedade civil ou mesmo instituições públicas parceiras possam vir a ser consultadas prioritariamente em grupos de trabalho ou instâncias informais de decisão, os beneficiários diretos das ações, ou mesmo voluntários, estão bastante distantes dos círculos de decisão ou mesmo dos processos de diálogo das organizações.

Para concluir

Este texto procurou mostrar o quanto a abertura dos investidores sociais ainda se apresenta como um grande desafio a ser trabalhado, considerando o caráter público dessas organizações. O desafio, portanto, vai muito além de saber comunicar e ser transparente, mas estar verdadeiramente disposto ao diálogo. Para dialogar é preciso ouvir. Esse tem que ser o fim para aproximar o investimento social de seu sentido público.

Entendemos que a maior transparência por meio da comunicação é capaz de beneficiar, ao mesmo tempo, aqueles que são objeto do investimento  social e os próprios investidores e suas relações com a sociedade como um todo. Isso acontece porque as ações ativas de transparência podem: (i) reforçar a credibilidade dos investidores sociais; (ii) aumentar a confiança pública nessas organizações; (iii) melhorar as relações com mantenedores, parceiros, colaboradores, comunidades, governos e públicos beneficiados pelo investimento social; (iv) facilitar o engajamento e a colaboração para enfrentamento de problemas coletivos; (v) aperfeiçoar a própria atuação; (vi) alimentar toda a comunidade com conhecimento e aprendizagens compartilhadas e melhores práticas entre os investidores sociais.

Nesse sentido, em um ambiente em que predomina a desconfiança e a fragilidade das organizações da sociedade civil, a transparência pode se tornar um grande diferencial das organizações sérias, considerando a credibilidade como um de seus principais valores.

Iara Rolnik é socióloga pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Demografia pelo Núcleo de Estudos da População (NEPO) da Unicamp. É gerente de Conhecimento do GIFE.

Mariana Moraes é formada em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), com pós-graduação em Jornalismo pela Cásper Libero e em Comunicação Digital pela Universidade de Sydney. É gerente de Comunicação do GIFE.

Referências bibliográficas

ANGELICO, F. Lei de acesso à informação pública e seus possíveis desdobramentos à accountability democrática no Brasil. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Escola de Administração de Empresas de São Paulo – Fundação Getulio Vargas, 2012.

CENEVIVA, R. Accountability: novos fatos e novos argumentos – uma revisão da literatura recente. Anais do EnAPG, 2006.

EURO PEAN FOUNDAT ION CENTRE. Exploring transparency and accountability regulation of public-benefit foundations in Europe. Bruxelas: European Foundation Centre, 2011.

PINHO, J.A.G.; SACRA MENTO , A.R.S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, nov./ dec. 2009.

FOUNDATION CENTER (GRANT CRA FT). Abertura: desmitificando a transparência de investidores sociais. GrantCraft/GIFE, 2014.

TRANS PARENCY INTERNAT IONAL. Anti-corruption glossary. Disponível aqui. Acesso em: nov. 2015.

Notas

1 Texto inicialmente escrito como documento referência para o Painel GIFE de Transparência  – iniciativa do GIFE para ampliação dos mecanismos de transparência entre investidores sociais – e adaptado para esta publicação.

2 Entre os respondentes 8% não responderam à questão.

Recorte de comunicação do Censo

Para acessar os dados de comunicação no Censo, clique em: Dados de comunicação_censo2014.

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