Iniciativas da periferia do Recife (PE) tentam furar a bolha do elitismo no cinema brasileiro

Por: GIFE| Notícias| 17/06/2024

Espaço Cultural Ladobeco - Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

De um lado, um rapper que administra um espaço cultural de cinema na sua própria casa, sem acesso a recursos. Do outro, uma produtora periférica que desenvolveu um edital pensado para cineastas da periferia

No dia 19 de junho de 1898, foram realizadas as primeiras gravações cinematográficas do Brasil. A data hoje é celebrada como o Dia do Cinema Brasileiro. Mas o acesso à sétima arte ainda é restrito. Dados de 2021 da Agência Nacional de Cinema mostram que 32% das salas do país estão apenas em São Paulo. 

Para contrapor esse cenário, fazedores de cultura das periferias se desdobram para operar iniciativas de cinemas sociais, que oferecem exibições comunitárias, formação a cineastas locais e festivais. Como o Espaço Cultural Ladobeco, gerido pelo rapper e arte-educador Okado do Canal na sua própria casa.

Ele vive na comunidade do Canal, Zona Norte do Recife (PE), onde comprou um terreno, usando parte do seu cachê como ator no filme Rio Doce – eleito o Melhor Filme do Festival Internacional de Curitiba –, com o sonho de construir a escola de cinema da comunidade. 

“Os festivais que acontecem nos grandes cinemas são cineclube de amigos. Já fui abordado na frente do cinema pela polícia na estreia de um filme que eu atuei. O centro não é pra gente, o cinema não é pra gente”, desabafa.

Okado não se conforma em ver as histórias do povo negro e periférico serem retratadas de forma caricata nas telas sob a lente de quem não conhece essa realidade. De acordo com a pesquisa Raça e Gênero no Cinema Brasileiro, dos 240 filmes nacionais produzidos entre 1995 e 2018, 84% foram dirigidos e 71% roteirizados por homens brancos. Entre diretores e roteiristas, não foram encontradas profissionais pretas. 

A frustração do rapper é ver que sempre os mesmos grupos aprovam nos editais. Criado em 2017, o Ladobeco só conseguiu oferecer quatro oficinas financiadas. Todas as outras foram voluntárias.

Para Marcelo Araújo, diretor do Instituto Moreira Salles (IMS), o cenário observado pelos números, e ilustrado por Okado, reflete um complexo entrelaçamento de fatores econômicos, sociais, culturais e geográficos. Em janeiro deste ano, o IMS recém inaugurou um cinema no seu centro cultural em Poços de Caldas (MG). Ele afirma que a experiência revela que “o investimento em infraestrutura, preços acessíveis de ingressos e uma programação edificada em diálogo aberto com as diversas populações locais trazem resultados.” 

Solução perpassa por melhor distribuição de recursos 

Dados do Censo GIFE 22-23 mostram que cultura e artes são a segunda área com mais investimento (R$ 420 milhões). Mas esse recurso não chega para todos. 

Atentos a esses desafios, um grupo de produtores culturais das periferias de Recife criaram o Cine Maré. Um projeto viabilizado com recursos privados de entusiastas do audiovisual, que pré-selecionou 10 projetos de produtores independentes para realizar um curta-metragem sobre a cultura Hip-hop.

Tássia Seabra é produtora cultural do Ibura, periferia de Recife, e criadora da Seabra Produção que, junto a Umbral das Artes, executa o projeto. Ela é taxativa ao afirmar que a burocracia é a principal responsável por impedir que produtores da periferia avancem. “O audiovisual das produtoras brancas coloca os projetos na rua tendo recursos para todas as etapas, do roteiro à distribuição, porque conhecem as burocracias.”

Para ela, o principal saldo do Cine Maré é dividir conhecimento, e permitir que novos cineastas da cena periférica tenham mais oportunidades que ela. “O cinema é a bolha mais elitista do mundo. Eu levei seis anos para aprovar um edital para o documentário que estou produzindo agora. É uma espera que dói.”

Um possível caminho apresentado por Okado, é o estabelecimento de cotas nos editais. “Acho importante a elite do cinema que aprova em editais todos os anos concorrer entre eles, enquanto as novas iniciativas concorrem entre si, seria mais justo”, sugere.

Ainda sobre o papel da filantropia, Marcelo Araújo acredita que o diálogo com populações locais e o investimento em cultura que não precisa de retorno comercial – com ingressos acessíveis e programação gratuita – podem ser excelentes ferramentas para ampliar alcance e repertório em termos de produtos culturais fora dos grandes centros urbanos. 


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