Desafios, avanços e perspectivas rumo a uma filantropia brasileira decolonial
Por: GIFE| Notícias| 07/10/2024Andrea Pineda fala sobre os traços hegemônicos coloniais que ainda ditam as regras na filantropia no Brasil e como isso tem impactado a relação doador/receptor. Através de um olhar otimista, ela também pontua os pequenos avanços que o setor tem trilhado a favor do comprometimento efetivo com a justiça social
Valorização da diversidade, decisões coletivas sobre financiamentos e modos plurais de avaliação dos resultados. Esses são alguns dos caminhos de ruptura com as lógicas dominadoras que permeiam a filantropia no Brasil e põem em xeque o protagonismo de organizações da sociedade civil, aponta Andrea Martini Pineda. Doutora em Administração Pública pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP/FGV), ela atua há mais de 20 anos no terceiro setor.
De acordo com ela, a redistribuição de poder é uma das peças chave para uma transição eficaz do modelo hegemônico para o decolonial. No entanto, é aqui onde está um dos principais obstáculos. “Quem dos grupos historicamente privilegiados irá ceder o espaço?”. Confira a entrevista completa com Andrea Pineda.
Quais práticas coloniais você observa na filantropia brasileira e como isso tem atrapalhado o potencial transformador do setor?
É possível observar práticas filantrópicas que ainda não consideram a diversidade de grupos entre seus públicos atendidos, tampouco a pluralidade de saberes produzida por eles, e se impõe a partir de força financeira. É possível pensar a relação entre uma instituição que financie projetos com juventude, por exemplo, mas não percebe/valoriza a diversidade presente ali (colonialidade do ser), e impõe uma forma única de avaliar os resultados (colonialidade do saber), sem abrir espaço de decisões coletivas sobre os financiamentos (colonialidade do poder).
Como a filantropia decolonial pode transformar as relações de poder tradicionais entre doadores e comunidades receptoras?
Entendo que há uma assimetria de poder financeiro que está dada nessas relações, e justamente por isso que a perspectiva decolonial incomoda ao propor uma mudança profunda nessas relações. A decolonialidade propõe que filantropos mudem suas práticas de financiamento, passando por quem financiam e como. Repetidamente os dados do Censo GIFE indicam que ainda se doa de forma tímida para a sociedade civil e que os grupos marginalizados e invisibilizados pela sociedade, também o são pelos investidores sociais.
Quais são os principais desafios que organizações filantrópicas enfrentam ao buscar adotar condutas decoloniais?
Um primeiro passo importante já vem sendo dado há pouco mais de uma década, com o olhar para a diversidade nas equipes, com políticas de reconhecimento das diferenças. Este é só um primeiro passo e já mostra que para ser realmente transformador, é mais complexo do que parece: toda instituição que se propõe a receber grupos sub-representados em sua comunidade, logo percebe que dar acesso não é suficiente. É preciso ofertar uma rede de suporte – psicológico e material – para sua continuidade.
Quais estratégias são necessárias para desafiar o setor filantrópico a reconhecer as limitações do modelo tradicional e a abraçar práticas decoloniais?
Dois anos atrás, as pesquisadoras indianas Shonali Banerjee e Urvi Shriram publicaram um texto na Alliance em que propunham algumas ideias para descolonizar a filantropia que dialogam muito com o Brasil: capacitar as comunidades e indivíduos; focalizar nos grupos historicamente marginalizados; promover diversidade interna e transparência – que passa pela questão central de conselhos e instâncias de decisão mais diversas e, por fim, mas não menos importante, falam das relações de confiança e menor controle nas doações/investimentos.
Como você tem observado o papel que instituições de alta renda possuem no processo de transformação decolonial da filantropia?
Quero destacar que é importante reconhecer o papel crucial de incidência política que o grupo tem feito coletivamente por algumas agendas – como educação e meio ambiente. Mas, dado seu poder político e força econômica, e as demandas sociais do Brasil, estas instituições poderiam estar se envolvendo mais com problemas que eu considero estruturais, como a fome, falta de saneamento básico e a disseminação de desinformação, por exemplo. Não fazê-lo, também é uma forma de perpetuar desigualdades.