Pesquisa mostra relação de confiança e financiamento de longo prazo como pré-requisitos para maior impacto da sociedade civil e promoção da democracia

Por: GIFE| 11º Congresso GIFE| 05/10/2020

Publicado em agosto, o estudo Impacto da Covid-19 nas OSCs Brasileiras: da Resposta Imediata à Resiliência revelou que, na ocasião, 46% das organizações da sociedade civil (OSCs) respondentes tinham caixa para operar por no máximo mais três meses e 69% precisavam de recursos para manter os custos operacionais. Desenvolvida no contexto da pandemia, a pesquisa reforça ainda mais a necessidade de organizações do terceiro setor receberem, de forma contínua, investimentos mais flexíveis, ou seja, desvinculados de projetos, para que o recurso seja destinado ao desenvolvimento institucional dessas organizações. 

Uma boa relação entre financiador e financiado é um dos pré-requisitos para isso. É o que aponta o relatório Financiamento Baseado em Relações de Confiança, encomendado pela Citi Foundation e produzido pelo Synergos. O estudo, traduzido para o inglês, espanhol e português, contou com mais de 50 entrevistas e apresenta o caso de quatro organizações que atuam em suas respectivas comunidades para demonstrar como o financiamento operacional geral (FOG) e os recursos para desenvolvimento de competências institucionais (DCI) podem melhorar a quantidade e a qualidade dos resultados. 

Silvia Morais, diretora do Synergos no Brasil, explica que uma percepção recente da organização, que possui uma rede mundial de mais de 100 filantropos associados e trabalha mundialmente para qualificar a filantropia, é a diminuição dos recursos doados para organizações da sociedade civil. “Ao longo de sua trajetória, o Synergos percebeu que um dos fatores que mais tem poder de estreitar relações entre os setores é a confiança. Ou seja, ter atores distintos operando com o princípio da construção de uma relação de confiança é quase uma condição fundamental para a construção de soluções disruptivas capazes de efetivamente transformar”. 

O trabalho desenvolvido durante o processo de elaboração do estudo, como conta a diretora, mostrou que o financiamento flexível é, em si, um capital de confiança e esse aporte de recursos para OSCs tem um poder transformador sobre elas.

A potência do financiamento institucional no longo prazo 

Um dos principais achados da pesquisa diz respeito à duração do FOG e dos recursos para DCI. Se, atualmente, esse período varia de um a três anos, o novo padrão, segundo o relatório, deve ser de cinco a sete anos. Isso porque fortalecer uma organização e observar os resultados alcançados a partir dessa ação é um processo que leva tempo.

“Investir recursos para que uma organização se desenvolva institucionalmente constitui uma visão estratégica e de longo prazo, o que confere ao doador maior potencial de impacto sobre seu investimento porque amplia também o potencial da organização influenciar sobre a causa ou desafio social”, explica Silvia. 

Financiadores dispostos a percorrer esse caminho têm maiores chances de observar bons resultados a partir da aplicação de seus recursos, uma vez que organizações que recebem FOG e DCI em longo prazo podem representar um padrão de excelência, como afirma a pesquisa. “Hoje, grande parte das organizações tem como foco a sobrevivência e a captação de recursos. É claro que ainda vão continuar focando em sua sustentabilidade financeira, mas os recursos flexíveis permitem que elas tenham a capacidade de implementar ideias antigas e descobrir novas possibilidades, já que sua equipe terá condições de estar muito mais alinhada à própria causa do que concentrada na sobrevivência”, reforça a diretora. 

Dessa forma, a diretora pontua que a organização apoiada consegue se desenvolver institucionalmente no campo em que atua, além de aumentar seu potencial e poder de influência, ter mais espaço para inovar, maior conexão com as políticas públicas relacionadas ao seu tema, bem como mais contato com a comunidade na qual está inserida e com outras organizações que trabalham com a mesma agenda. 

A importância das relações de confiança 

Ao entrevistar financiadores, intermediários e organizações sem fins lucrativos com experiência em financiamento institucional e realizar uma pesquisa junto a representantes das quatro organizações escolhidas, o estudo observa que é difícil rastrear o impacto do FOG e dos recursos para DCI nos resultados. Isso porque, na maioria dos casos, os processos avaliativos não são atrelados a metodologias que estabeleçam relação entre o financiamento do DCI e resultados. No caso do FOG, sua própria natureza flexível dificulta linhas de bases e cronogramas para avaliar os resultados do investimento. 

É justamente por isso que o relatório reforça a importância da construção e manutenção de relações de confiança entre investidor e investido. Ao fornecer um recurso mais flexível a uma organização, o investimento, tido como capital de confiança, promove um efeito em direção ao equilíbrio na relação entre financiador e organização financiada, criando uma comunicação eficaz onde todos os envolvidos no processo podem aprender e realizar ajustes necessários nas ações e programas desenvolvidos. Para Silvia, todo esse processo de confiar na organização e investir para que ela se desenvolva tem efeitos diretos na qualidade da ação, iniciativa ou projeto a ser desenvolvido posteriormente. 

“Construir uma relação de confiança é deixar que as aspirações e desejos emerjam mais das organizações apoiadas do que de nós filantropos. É muito poderoso quando um doador doa recursos flexíveis a uma organização porque, com isso, ele está dizendo ‘eu confio em você, você está alinhado a minha causa, objetivo e missão enquanto filantropo e estou te dando o poder de decidir o que é melhor para você’. Ao delegar poder, delega-se também autonomia de decisão, o que traz uma responsabilidade muito grande sobre o que será feito pela organização”, reforça a diretora. 

Esse processo de financiar e, ao decorrer do tempo, acompanhar a aplicação dos recursos e o consequente desenvolvimento da organização contribui para a construção de uma relação mais de parceria entre instituições e menos de prestação de contas. “Esse tipo de investimento desburocratiza as relações e deixa as donatárias mais à vontade para compartilhar suas dificuldades, o que é muito importante para um investidor. É uma relação de profunda liberdade e menos controle. Além disso, um relacionamento estreito com as organizações permite que os doadores estejam mais próximos também de suas causas, atuando mais estrategicamente no ecossistema.” 

Oportunidades para o campo 

Para Silvia, alguns achados do estudo indicam caminhos possíveis quando o assunto é doação, filantropia, sociedade civil e democracia. Segundo ela, apesar de serem poucos os doadores que olham as organizações sob uma perspectiva de longo prazo, a demanda por organizações mais doadoras no país indica uma janela de atuação para o fortalecimento da sociedade civil brasileira e, consequentemente, da democracia. 

“A maior parte das políticas públicas que garantem direitos no Brasil são conquistas da sociedade civil organizada. Então, se temos um relacionamento diferenciado entre doador e donatário, fortalecemos a sociedade civil e as estruturas que garantem exercício de direitos, que, por sua vez, fortalecem a democracia e trazem soluções para os maiores problemas do país.” 

Vale ressaltar, entretanto, que nenhum setor, seja governo, iniciativa privada, sociedade civil ou filantropia, tem a capacidade de resolver todos os desafios sozinho. Por isso, é relevante reconhecer a existência de relações de interdependência entre eles. Silvia pontua ainda que a pesquisa mostrou que deve-se observar as organizações a partir de suas potências e não fragilidades, bem como a importância de investir no fortalecimento e desenvolvimento das instituições doadoras para que estejam aptas a fazer investimentos flexíveis.

“Para doar recursos dessa natureza, precisamos ter um time operacional preparado, assim como uma governança aberta para lidar com expectativas de tempo até que os resultados dos investimentos apareçam, bem como para olhar para o potencial das organizações e não apenas para projetos e dar espaço para o prazo do campo e não das estruturas organizacionais do doador.” 

As versões em inglês e espanhol do relatório estão disponíveis neste link. A versão em português pode ser consultada aqui.


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